PARTE 2 de 5

Entre a Glória e a Vergonha

Memórias de um consultor de crises

Mario Rosa com exclusividade para o UOL

Entre a Glória e a Vergonha

Memórias de um consultor de crises

Foto: Jorge Araujo/Folhapress Foto: Jorge Araujo/Folhapress

NOSSOS VIZINHOS

A grande coisa dos tempos de hoje é que todos agora somos públicos, mesmo que não famosos. A pessoa comum acabou. Somos todos incomuns. Porque a nova esfera pública - que surgiu com as redes sociais, a internet e o aparato de câmeras, celulares e monitoramento perpétuo de nossas vidas - subverteu o conceito do que é ser um cidadão comum. A rigor, todos nos tornamos incomuns porque estamos expostos a tudo e a todos o tempo todo, mesmo no aconchego enganoso de nosso WhatsApp ou nas mensagens privadas de nosso computador. Privadas é?

Nunca nossos erros estiveram tão perto dos outros. Porque nunca antes os outros estiveram tão perto de nós. A escala do erro mudou. Simplesmente porque, vistas mais de perto, nossas falhas ficam muito maiores do que pareciam ser no passado. É uma questão de ótica,  não só de ética. O fato é que essa nova ótica está produzindo uma nova ética. Foi sempre assim. Há um novo mundo entre nossas rotinas e nossas retinas.

Mesmo que a gente não perceba, todos no mundo estão de olho em nossas vidas: o banco, o Google, o governo, a polícia. Até no elevador, se você reparar bem. A vida privada, portanto, acabou. Hoje, fazemos parte, mesmo que involuntariamente, desse novo território social, a nova vida pública.

A vida pública - a vida de todos nós nesta etapa da humanidade - pode ser definida como um terreno que possui dois vizinhos, um de cada lado: a glória e a vergonha. Vivemos no terreno do meio e pulamos essa cerca quase sem perceber. Um pequeno evento pode mudar nosso endereço social e a glória se torna vergonha sem que nem tivéssemos imaginado.

No caso dos grandes escândalos, esse é o território em que as crises acontecem. Foi exatamente essa faixa estreita que habitei como consultor: atendia pessoas que tinham alcançado a glória e estavam indo rumo à vergonha.

Vi muitos gloriosos envergonhados. E vi também envergonhados gloriosos.

Profissionais, carreiras, trajetórias, reputações podem trafegar de um lado para o outro desse terreno, entre esses dois vizinhos, num simples toque da campainha às seis da manhã.

Nessas horas, podemos nos ver instados a tomar decisões no calor das circunstâncias. Foi assim que o ?especialista? em crise começou a rasgar seu manual de procedimentos técnicos, logo que defrontado com uma escolha:

- O senhor tem o direito de chamar um advogado - disse-me o policial.

Eu perguntei:

- É uma obrigação?
- Não, é um direito seu.

Na primeira decisão, eminentemente intuitiva e certamente equivocada do ponto de vista técnico, respondi:

- Não me sinto bem de ter um advogado às seis horas da manhã na minha casa. Acho estranho.

Depois, amigos advogados me chamaram de irresponsável.

Mas é aí que os cases não servem para pautar a vida.

Sentia-me inocente de qualquer coisa que viesse a ser atribuída a mim. E a presença do advogado, mesmo que racionalmente certa, não me faria bem.

Então, a busca que se estenderia pelas próximas quatro horas não teria advogados. Sei que não segui os protocolos, mas a vida da gente não é um case e me sentia melhor daquele jeito.

- Cadê o cofre? Cadê o dinheiro? O cofre, o dinheiro? - perguntaram logo os agentes.

Não tinha cofre nem dinheiro, respondi. Mas eles esmiuçaram tudo. No chamado síndrome de Estocolmo, os sequestrados passam a sentir uma profunda admiração pelos sequestradores.

Talvez, de alguma forma, tenha sentido isso. Graças a Deus, os policiais que investigaram cada centímetro de minha casa o fizeram de uma maneira profissional, sem qualquer excesso. De minha parte, tomei calmamente assento na sala de jantar, enquanto as equipes fuçavam cada gaveta, cada armário, cada espaço, equipamento ou papel de minha casa de 700 metros quadrados.

Por mais que saibamos ou imaginemos saber o que guardamos, sempre nos surpreendemos com fragmentos imprevisíveis. A certa altura, o delegado que comandava a operação me apresentou umas folhas de cheque de um banco no exterior. Não fazia a menor ideia de que estariam ali.

- O que é isso?

Vi e reconheci. Respondi que eram de uma empresa nas Ilhas Virgens Britânicas, proprietária de um apartamento que possuo em Miami. Nessa hora, apresentei minha declaração de imposto de renda, mostrando que a aquisição havia sido feita através de operação regular, via Banco Central, nos idos de 2009, 2010. Não tinha a mais pálida ideia de que aquelas folhas (usadas para pagar o condomínio) estavam em algum lugar da casa.

Ao longo dos anos - tenho 52 -, iniciei o hábito de adquirir obras de arte: esculturas internas, esculturas para o jardim, móveis antigos, peças de prata, quadros. Entendia que, além do prazer, era uma forma de poupança. Mas obras de arte são também um recurso usado para deter patrimônio frio, dado o seu elevado valor concentrado.

Então, um dos policiais questionou:

- Cadê os atestados das obras de arte?
- Não tenho.
- Não tem?
- O que tenho e posso lhe mostrar é que todas estão declaradas ao imposto de renda, pelo preço efetivo, pagas todas através de transferências eletrônicas, cujos beneficiários aparecem listados também.

Dei a ele uma cópia de um trecho de meu IR e assinei. Como meu dinheiro era quente e eu tenho um contador chato (conselho: tenha sempre contadores chatos), não fazia o menor sentido eu esfriar dinheiro. Comprava via TED e declarava tudo. Dei sorte de meu auge profissional ter acontecido num momento em que meus clientes faziam questão de que emitisse notas fiscais. Podia ter sido diferente. Graças a Deus, não foi.

E assim as horas foram passando, naquela busca e apreensão. Tudo muito rápido.

A certa altura, o delegado me perguntou de forma cuidadosa:

- O senhor trabalha ou trabalhou para alguma empresa ligada à Lava Jato?

Referia-se à operação de combate à corrupção mais famosa de todos os tempos no Brasil, até o meu tempo.

Minha resposta foi um tanto desconcertante e imagino como pode ter soado estranha naquele contexto:

- Várias.

- Várias?

- Esse é o meu trabalho: prestar consultorias para empresas que estão abaladas por acusações.

Senti que não estava fácil para os meus visitantes entender exatamente o que eu fazia. Era mesmo esquisito.

No final, inúmeros papéis, celulares, computadores foram listados no auto de busca.

Nos primeiros minutos depois que saíram, uma sensação estranha tomava conta de mim: estava tudo bem, mas minha vida tinha mudado para sempre.

Chamei os funcionários à sala e tentei explicar o ocorrido:

- Vocês me conhecem mais do que ninguém. Sabem como é o meu dia a dia. Conhecem a minha intimidade totalmente. Sabem o que eu faço e o que eu não faço. Então fiquem tranquilos, pois no final vai dar tudo certo.

Falei tranquilo, mas a convicção exposta a eles era maior do que a que sentia em mim. Afinal, algo muito sério acabara de acontecer.

Cumprida essa etapa, dirigi-me normalmente para o próximo encontro do dia: um almoço com uma repórter do Jornal ?Folha de S.Paulo?, marcado casualmente uns dias antes. Nessa ocasião, iria rasgar mais um dos dogmas que sempre profetizei para os clientes, em situações semelhantes. Hoje vejo que a cobaia já estava sendo testada no laboratório: o laboratório da vida.
 

Foto: Renato S. Cerqueira/Futura Press/Folhapress Foto: Renato S. Cerqueira/Futura Press/Folhapress

PAI ROSA

Ao longo dos anos, após livros publicados, resenhas elogiosas na mídia e uma rotina de palestras ao redor do pais (onde sempre sobrava espaço para uma entrevistazinha numa rádio aqui, um artiguinho publicado ali, uma gravaçãozinha numa TV acolá), fui sendo procurado por tudo quanto é tipo de gente. E achava uma delícia. Problemas dos mais variados. O ?consultor de crises? aprendia muito com esses contatos. Não cobrava, mas ganhava muito mais com essas pessoas do que dava. Sou grato a todas elas pelo repertório de soluções e abordagens que permitiram expandir minha compreensão.

Meu ?modelo? de atendimento era híbrido, desde o início. Eu tinha uma categoria que era uma espécie de plano de saúde. Era o pessoal que me pagava: aqueles clientes (privados, sempre privados, nunca ganhei dinheiro público) que me contratassem, eu cobrava não digo caro, mas bem. Eram poucos clientes por ano, cinco, seis, em contratos normalmente anuais.

Já qualquer outra pessoa que me procurasse, de qualquer atividade, eu buscava sempre atender, mas não cobrava. Achava aquilo um treino. Eu tinha o tempo livre que meus poucos clientes me proporcionavam e podia gastá-lo como bem entendesse. Essa segunda categoria eu chamava de SUS, comparando com o Sistema Único de Saúde, gratuito e universal. Como o SUS de verdade, o meu vivia lotado.

Apelidei minha casa de cabana do "Pai Rosa". Acho que encarnei muitas vezes mesmo uma espécie de entidade espiritual de assessoria de imprensa. Era uma tenda de atendimento espiritual de imagens públicas misturado com consultoria mediúnica de comunicação, digamos assim. Algumas vezes, confortei a aflição dos chefes das tribos, de leões feridos que vinham apenas atrás de um afago na crista.

?Pai Rosa? estava sempre lá, com seus búzios.

Respeito imensamente todos os que acolhi naqueles despachos de catarse. Embora a expressão ?Pai Rosa? seja uma forma alegórica de tratar essas situações angustiantes e melindrosas, a busca da cura é sagrada e muito mais importante que o curandeiro. Representei algumas vezes esse papel de depositário da esperança alheia, sem menosprezar os meus interlocutores. Tentei ajudá-los dando o meu melhor aconselhamento ou, quando nada, a minha solidariedade pessoal.

Você já imaginou estar no lugar deles? Sua cara dia e noite estampada em todo lugar, sua família acuada e, o que é pior, uma vida inteira resumida e difundida pelo viés de uma única pecha que lhe pespegaram? Se você acha, ?bem feito?, tudo bem. Mas e se fosse com você? E se você se sentisse inocente? Bem feito? Cada um sabe onde o calo aperta.

Um dia, eu morava na Bahia, quando a então deputada Jaqueline Roriz foi até Salvador atrás do ?Pai Rosa?. O mandato dela estava por um fio por causa da divulgação de um vídeo em que um delator premiado aparecia dando um valor a ela e ao marido. Era dinheiro para campanha política. Mas a imagem estava em todas as TVs, e um processo de cassação do mandato dela, em curso. No final, ela manteve o mandato, mas naquele dia estava muito abalada.

Jaqueline pertencia a uma dinastia política, iniciada por seu pai, Joaquim, diversas vezes governador do Distrito Federal. Ela veio, almoçou e, de repente, começou a passar mal. Levei-a para o quarto de hóspedes. Ela ficou a tarde toda ali, muitas vezes chorando. Pai Rosa apenas orou por ela.

Noutra vez, um ministro do Supremo Tribunal Federal na época foi à cabana do Pai Rosa. Angustiado, porque estava apanhando muito pelas posições que adotara, nem sempre seguindo a maré dos editoriais. Ficou ali, tomando vinho, pedindo ?dicas?. Pai Rosa falou algumas palavras de apoio, alguns diagnósticos otimistas sobre o futuro. Foi quase um passe magnético e o ilustre magistrado foi levando a vida. Apresentei alguns colunistas a ele. Foi o máximo que fiz. Até as togas não são blindadas, sobretudo por dentro.

(Muita calma nessa hora: não quero ser jocoso apenas por ser. Pai Rosa, repito, mostra a busca desesperada da cura e não a eficácia do curandeiro, nem seu gracejo contra os desesperados. A autodepreciação foi um traço meu a vida toda. Não deveria estar nas minhas memórias? Além disso, dada a grandiosidade dos personagens, é melhor sair do salto alto. Por fim, se muitas vezes vi um certo tom autolaudatório de como a imprensa se vê e se descreve, por coerência tinha de sentar o pau em mim, não? Ou, talvez, seria a forma como um jornalista imparcial poderia descrever o consultor. Lembra-se? Fui jornalista. Vai ver que foi por isso.)

Pouco tempo depois, foi lá outro ministro, na época no STJ, a segunda mais alta instância da magistratura. Esse sofria mesmo. A bala perdida de uma associação ruim tinha ricocheteado em seu gabinete. Homem bom, estava ali prostrado.

Vamos aliviar um pouco, usando uma pequena gracinha: posso resumir a complexa aula magna de princípios universais do gerenciamento de crises que ministrei com uma simples palavra que simbolizaria metaforicamente tudo:

- Saravá!

Depois desse despacho, Pai Rosa desincorporou e o juiz voltou pra casa e pra vida com um pouco mais de paz. Quase como num ritual, algumas palavras de incentivo podem ajudar nessas horas. Não é enunciando tratados pseudotécnicos que podemos tranquilizar alguém. Às vezes, quase como num sacerdócio mesmo, um conceito de vida aqui ou ali reanima o ouvinte. Foi nesse sentido que usei a alegoria do Pai Rosa.

O médico Claudio Lottemberg, que já fora presidente do prestigioso hospital Albert Einstein e voltaria a ser, um dia me procurou com um problema que para ele era um sintoma grave. Pra mim, nem um resfriado. Médicos de altíssimo, altíssimo nível podem imaginar que qualquer arranhãozinho de imagem é uma fratura exposta gigante. Todo cuidado é pouco.

No caso daquele grande médico, o receio era como administrar a saída dele da Secretaria Municipal de Saúde, no governo do então prefeito, José Serra. Ele deixara a presidência do Einstein, fora para o governo com idealismo, mas desistira de continuar. O receio dele era que, você sabe como é a política, algum espertinho detonasse ele na saída. Qualquer arranhão?

Era madrugada quando ele me ligou. O meu SUS atendia a qualquer hora e, como você vê, até mesmo médicos. Na minha escala de enrascadas, aquele problema era como um selinho nos lábios no arsenal afetivo de Messalina. Eu disse:

- Quem tem de ficar com medo são eles. Parte pra cima. Se sentirem que você está frágil, vão lhe bater. Mas, se você ranger os dentes, vão sacudir o rabo.

Daí combinamos o texto da carta pessoal ao prefeito, o modo como ele deveria conduzir a conversa de desligamento. Eu escrevi um montão de coisas para ele. Falei ao telefone uma dezena de vezes. Foi tudo bem. Sem ruído.

Isso mostra que, muitas vezes, funções como a minha são a daquele cara que fica no canto do ringue gritando pro peso-pesado: ?Mete a porrada, esquiva, calma, não doeu!?. Qual o valor dessas coisas? Sei lá. Meu SUS era assim: eu ia cobrar por minuto? Preferia fazer de graça, às vezes, coisas que me tomavam muito mais tempo. Aliás, quando minha mulher teve câncer na tireoide, fui com ela para o Einstein. Sabia que Lottemberg ia cuidar de mim. Banco de Favores.

Se Deus usasse uniforme, certamente seria um jaleco. Pelo menos aqui na Terra. O consultor de crises conviveu com muitos médicos poderosos. Mas os vi de um prisma que nenhum paciente costuma: no leito da crise. Vi gigantes, que serão gigantes quando eu precisar deles, tremendo como meninos assustados. Eu os ajudei, sem cobrar, mas com um sentimento de amargo privilégio: o de poder ver de perto a fragilidade de quem está acostumado a ser visto como a imagem da salvação.

Uma vez, um desses gigantes me procurou desesperado. Não vou dar o nome e serei um tanto genérico. Ele não tinha culpa. Você certamente o viu inúmeras vezes na TV naqueles tempos. Uma cirurgia tinha tido uma pequena complicação. O paciente sobrevivera, mas a esposa tava aprontando poucas e boas. Tava chamando o Deus ali na minha frente de açougueiro. Muito articulada, a mulher tava causando, criando marolas.

O doutor estava em pânico, sobretudo depois que a madame fez a história circular nas redações. Alguns jornalistas ligaram  para o consultório. Que sofrimento o daquele cara! Preparamos uma estratégia, recolhemos os prontuários, mas mais uma vez o fundamental foi o apoio no canto do ringue. Foi ajudar a separar o que era angústia, o que era possibilidade e o que era impossível. Era antecipar como a mídia ia tratar aquilo. Não saiu uma linha. Era só boato. Nessas horas, não é preciso ligar para jornalista nenhum, não é preciso criar nenhum plano mirabolante. É só chegar ao leito e sussurrar baixinho  para o sujeito entubado:

- Está tudo bem?

O resto é com Deus.

Já que estamos falando de médicos, vamos falar de mais dois. Nos próximos capítulos, vou continuar falando do meu pronto socorro de reputações traumatizadas com outros atores. Por ora, os deuses. Médico é uma profissão pavorosa. É como piloto de Fórmula 1: do pódio ao túmulo em fração de segundo. Tanta gente o tratando como Deus por tanto tempo? difícil segurar a onda.

A dramaturgia já popularizou a bipolaridade que ronda os profissionais de medicina, no arquétipo de ?O Médico e o Monstro?, com Dr. Jekyll e Mr. Hyde (?hide?, em inglês, não por acaso, quer dizer esconder). Em termos de reputação, a alternativa ao médico é virar monstro. É descobrirem que existe um demônio escondido no jaleco. É o céu ou o inferno. Quando tá tudo bem, é doutor pra cá, o senhor salvou minha vida pra lá. Qualquer coisinha e pode ser assassino, monstro e por aí vai.

Por favor, peço agora um pouco de sua atenção. Vou tratar de algo muito delicado. Não poderia, em respeito aos seus sentimentos, fazer uma passagem abrupta para o próximo tema. Creio que devo preparar um pouco sua sensibilidade e pedir que tente sintonizar a melindrosa frequência que iremos acessar. É preciso fazer uma transição cautelosa neste ponto da narrativa.

Não iria jamais menosprezar sua forma de sentir e de pensar, seus princípios de humanidade. Mas convido-o a tentar entender a perspectiva muito singular com que vamos observar uma situação. Melhor recorrer a uma metáfora.

Um funcionário do IML é certamente alguém com sentimentos e emoções, alguém como nós. Mas, no dia a dia, por força das contingências do destino, ele acaba adquirindo uma forma peculiar de conviver com corpos sem vida, o tempo todo. Claro, para qualquer pessoa comum, como eu e você, é chocante a experiência de ver uma pessoa morta. Já, para um profissional do IML, é preciso adquirir uma forma de distanciamento da situação para não se deixar ser tomado pelas angústias inerentes à atividade.

Dessa mesma forma de lidar os correspondentes de guerra precisam dispor todos os dias, todas as horas, diante das brutalidades que encaram por força da profissão.

Ha determinados ofícios em que os sentimentos pessoais são colocados de lado, em circunstâncias extremas. Isso não significa de modo algum que a sua forma de encarar o mesmo fato seja menos correta, sobretudo ao ver um drama e se indignar com ele. O "distanciamento" profissional exigido de certas profissões não representa a negação daquilo que você considera certo ou errado.

É por isso que lhe rogo que veja a situação a seguir não apenas com o seu olhar, mas procure de alguma forma captar o de quem estava numa interação que não faz parte do seu mundo, como não faz parte nem do meu nem do seu lidar com a morte todos os dias.

Nosso sentimento de horror deve ser compreendido por aqueles que encaram a situação de luto como parte da rotina. Do mesmo modo, não podemos condená-los por se comportarem de uma forma diferente da nossa. Só conseguimos essa compreensão quando entendemos a natureza daquela atividade.

Vou fazer agora um breve relato sem adjetivos e sem muita emoção. Respeito profundamente o seu olhar, mas tente por favor também olhar através do ângulo em que vivi a situação.

Alguém sempre pode dizer que funcionários de IML e correspondentes de guerra exercem uma profissão de interesse público. Mas também é verdade que advogados que defendem seus acusados de algo hediondo só o fazem porque há um elevado princípio civilizatório que assegura a todos, sem distinção, o direito de defesa. Mesmo que uma sociedade esteja convencida em relação à culpa de um determinado réu, essa mesma sociedade assegura o amplo contraditório mesmo para esses símbolos que chocam os sentimentos de uma população.

Conheci o médico Roger Abdelmassih com a imagem já bastante destruída, mas ainda não terminal. Contextualizando: ele foi acusado de 52 estupros por uma lista de pacientes. Foi condenado em primeira instância e estava preso cumprindo pena de 278 anos, na cadeia de Tremembé, quando eu escrevia este livro. A acusação era  que tirara proveito das vítimas enquanto estavam sob efeito de sedativos.

Eu, como ser humano, pai de uma filha, me solidarizei sempre com qualquer vítima de abusos sexuais. É um crime inaceitável, intolerável, repugnante.

Roger nunca foi meu cliente. Acabou-se tornando, pode-se avaliar agora, numa perspectiva mais distante no tempo, uma espécie de objeto de estudo. Um instrumento de análise. Com isso, não quero negar-lhe a observância mínima de sua condição de indivíduo. Nem tenho essa divina atribuição. Fui um ser humano falho, imperfeito, com erros e acertos. E foi esse ser que conviveu com outro ser, nesse período. E não com uma coisa. Não foi desse modo que interagimos. Seria cinismo dizer que estavam ali uma pessoa e uma coisa. Nos relacionamos como dois seres, dialogando, ouvindo, falando. Convivendo.

Só agora, fazendo essa reflexão sobre o que vivi ali, é que lhe transmito sob esse ângulo -- distante, frio e analítico -- um aspecto do que testemunhei.

Nos contatos com ele, tive a estranha possibilidade de observar um ser na situação extrema em que se encontrava. Pude acessar percepções quase únicas de como é estar na posição que a vida o colocou.

Ele me foi apresentado por seu criminalista, meu amigo querido, José Luís de Oliveira Lima, o Juca. Almocei, jantei, estive com ele dezenas e dezenas de vezes. Acompanhei sua agonia, falei com ele ao telefone em incontáveis ocasiões, vi aquele homem outrora poderoso ir deslizando pouco a pouco pelo ralo do destino que o Criador lhe reservou.

Ter estado com ele nunca significou da minha parte ser condescendente, de qualquer forma, com as acusações terríveis que lhe imputaram dezenas de mulheres, descrevendo o sofrimento atroz que registraram em seus depoimentos pungentes.

Fui movido exclusivamente pela curiosidade profissional e também por um impulso, de alguma forma, humano. Eu não era como um padre que visitava um condenado e lhe dava bençãos antes do corredor da morte. Mas pratiquei, de alguma forma, um gesto humano. Testemunhei, assim, um ângulo dessa dolorosa história e agora posso examinar sob a ótica de um personagem central de uma tragédia. Vivi para contar.

Roger morava num palacete, numa rua nobre do bairro dos Jardins, em São Paulo. Fizera fortuna como um dos pioneiros da técnica de fertilização in vitro, para reprodução humana. No auge, era o médico das celebridades: o rei do futebol Pelé, a rainha dos baixinhos Xuxa, o apresentador Gugu Liberato. Era a encarnação do médico ?do bem?. Bonachão, gente bacana em volta.

Roger levava a vida em grande estilo. Me contou detalhes de suas estadas na Europa, quando alugava aeronaves privadas para o deslocamento da família, fretava embarcações para cruzeiros pelo Mediterrâneo, ficava em hotéis dos endinheirados. Ele acelerava.

Minha sensação é que, em algum momento, como um balão de gás, ele se soltou na atmosfera.

Sempre negou as acusações para mim. Inúmeras vezes jantei com ele e a mulher, Larissa, uma ex-procuradora federal simpática e entusiasmada que entrou na vida dele depois do escândalo e era fervorosamente defensora do marido. Ela conhecia o processo de cor e alegava que Roger tivera a situação jurídica agravada por uma legislação nova que ampliava o conceito de estupro para coisas que antes não eram consideradas assim. Tiveram duas filhas.

Ele tinha sido uma pessoa pra cima, mas o vi sempre acabrunhado, sem nunca perder na minha frente um mínimo da compostura. Nunca chorou (vi tantos chorarem?). Nunca perdeu o equilíbrio e entendia perfeitamente que estava numa enrascada, embora lutasse para se salvar.

Eram mais sessões psicoterápicas do que qualquer outra coisa. E sessões de suporte, também, de certa forma. Era, sobretudo, um amparo. Não entrei jamais no mérito do que as vítimas atribuíam a ele. Ali, estive apenas presente vendo de perto uma ruína humana.

Nessas horas, as pessoas não têm com quem falar. Os amigos se afastam. No caso de Roger, até os filhos saíram de perto. Então, qualquer um que fizesse a caridade de apenas quebrar a rotina, era algum alívio. Se fosse uma pessoa de fora, como eu, então, tanto melhor.

Eu ia lá e prestava atencão a cada detalhe. Não sabia como aquilo ia acabar, mas achava, como sempre, que estava ali não apenas por mim, mas para compor um quadro que um dia poderia influenciar meus aconselhamentos ou para compartilhar essas percepções com outros, como o faço agora.

Poder conversar, ouvir, olhar. Pesquisar uma experiência viva. Para Roger, era bom: eu não ia vazar aquelas conversas para ninguém. Do meu ponto de vista, um treinamento numa situação extremamente complicada. Nunca desconsiderei sua condição, mas havia de alguma forma um exercício de minha prática forense de reputações.

Fui vendo, com o passar do tempo, as paredes irem perdendo seus quadros, as peças de decoração saindo da paisagem, a manutenção da casa decaindo ligeiramente, o serviço de jantar ficando longe da ribalta de outros tempos. Porque fiquei bastante tempo observando, fui vendo com uma grande angular a inclinação lenta e constante da ladeira de Roger.

Cheguei a vê-lo conversar com alguns jornalistas. Ele sempre mantinha a esperança de alguma cura milagrosa para seus males: pacientes são assim. Guardo a imagem de um homem carregando seu fardo e definhando lentamente à medida que a estrada se mostrava inapelavelmente íngreme e sem fim. O vi pela última vez poucos dias antes de ele decidir deixar o Brasil fugido. Soube disso pela imprensa. Foi para o Paraguai e, anos depois, foi capturado.

Ele gostava de fazer pequenas mesuras, mesmo nas condições precárias em que estava. Fazia questão de dirigir pessoalmente e de me levar até o hotel, próximo de sua casa. Logo no início em que me foi apresentado, ele insistia sempre em ter ?uma relação profissional?. Já conhecia aquela história.

Pessoas destruídas, mesmo em dificuldades financeiras, queriam contratar o consultor de crises e pagar alguma coisa, de alguma forma. Quando eu me recusava e dizia que estaria ali de graça, podia parecer que elas estavam tão leprosas que nem o enfermeiro queria tocar. Ou pior: que nunca mais veria o enfermeiro se, de alguma forma, não houvesse um vínculo financeiro. Então, eu declinava o contato financeiro, mas as aplacava não sumindo, estando presente regularmente e disponível.

Roger, ainda com algum garbo e não querendo se sentir tão por baixo, insistiu durante um ano ou mais com a tal da ?relação profissional?. Depois de dizer inúmeros ?não precisa, deixa disso, fique tranquilo?, naquele dia eu pontuei com um pouco mais de crueldade. Não sei se fiz certo:

- Doutor Roger, se o senhor tivesse estuprado o erário, as pessoas não iam gostar, mas o crime de colarinho-branco elas talvez até conseguissem entender. Se eu trabalhar para o senhor, não vou conseguir ajudá-lo e ainda vou me atrapalhar.

Ele sorriu um pouco amarelo e nunca mais voltou ao assunto. Um dia, mandou lá pra casa uma pequena escultura de cristal da marca Lalique. Refletia muito a estética dele. Guardei. Um torso feminino.

De fato, embora haja sempre uma onda de moralidade varrendo as sociedades, os crimes financeiros de alguma forma são vistos com menos horror do que os de sangue. Prova disso é que eu nunca vi um filme de assalto de banco em que a plateia torcesse para o banqueiro.

Com Roger, a vez que vi de forma contundente que tudo era muito mais grave foi quando ele me convidou para passar numa pizzaria de classe média alta, perto da casa dele. Ele queria cumprimentar a filha. Fui no impulso. Chegando lá, cruzando o salão, fui vendo a cara de nojo das pessoas em direção a nós numa escala que nunca vira antes. E olha que uma vez, no auge do mensalão, tinha ido encontrar o ex-ministro Jose Dirceu num restaurante e fomos recebidos com vaias, gritos, apupos do restaurante inteiro. Fiquei com medo de levar um tapa, mas foi diferente naquela vez com Roger. Não havia o mínimo, do mínimo de um mínimo de empatia com ele. Foi tudo silencioso, mas eu fiquei assustado.

Um caso bacana de meu SUS pessoal foi ajudar um grande médico a assumir uma responsabilidade espinhosa. Na véspera de tomar posse como secretário da Saúde do estado de São Paulo, o infectologista David Uip chamou o consultor de crises para um bate-papo que se estendeu até as duas da manhã. A posse seria horas depois. O então ministro da Saúde, Alexandre Padilha, era pré-candidato a governador de São Paulo pelo PT. Portanto, a área de Uip era uma frente de batalha crucial na guerra eleitoral do ano seguinte. Havia um programa do governo federal, o Mais Médicos, que era barato e politicamente arrasador: levava médicos para onde não havia.

Naquela noite, definimos as linhas do discurso de Uip: o de que ele era um médico indignado com a saúde do Brasil e que não acreditava em maquiagens. Ele estava cutucando o futuro adversário do chefe que o empossava, Geraldo Alckmin, do PSDB, politizando um pouco seu perfil, que sempre fora técnico.

O maior desafio de um conselheiro, nessas horas, é dizer o óbvio. As pessoas que estão no palco, diante da plateia, estão cansadas, com mil coisas para pensar. O consultor nessas horas não precisa ser nenhum gênio. Basta encontrar no meio daquilo tudo o óbvio e oferecê-lo para degustação.

Sempre tive bons amigos médicos. Quando eu estiver na UTI, espero que eles não me façam sofrer além do necessário. Uma mão lava a outra.
 

Foto: Sérgio Lima/Folhapress/Digital Foto: Sérgio Lima/Folhapress/Digital

ICEBERGS

Foi demitindo o dono que inaugurei minha turbulenta e emocionante rota como consultor de crises da companhia aérea Gol.

Note bem: não estou falando que demiti o comandante de um Boeing ou o presidente da companhia. Eu falei: demiti o dono.

Durante as tempestades de imagem, líderes e organizações com que convivi tomaram decisões que me impressionaram pelo pragmatismo, objetividade e raro senso prático. Em vez da lamúria das carpideiras, agiram sem firulas, direto ao ponto.

Vi muita gente derretendo na minha frente, no caldeirão das crises, mas vi também escolhas glaciais que me serviram de lição. Nunca esqueci algumas delas.

O "dono" da Gol se chamava seu ?Nenê?.

Nenê Constantino era um típico empreendedor brasileiro da segunda metade do século 20. Começou seu império dos ônibus municipais e estaduais antes de haver estradas no Brasil. Não era ph.D. em nada. A não ser na vida. Viu tudo, fez tudo e sempre se impôs: já pensou o que é comandar uma garagem de ônibus na periferia de uma cidade, cheia de peões?  A coragem pessoal de seu Nenê fazia parte do folclore.

Seu Nenê também sempre foi bom de conta. Uma vez, na escola primária, da qual não passou, a professora ficou impressionada com suas notáveis habilidades matemáticas. Reza a lenda que ele comentou:

- Professora, só sei somar e multiplicar. Não sei dividir nem subtrair.

Sempre comentei com os filhos dele, os quatro ?meninos? e as três ?meninas", que esse deveria ser o nome da biografia de seu Nenê: somar e multiplicar. Foi o que ele fez a vida toda. Nas vezes em que interagi com ele, era retraído, polido e muito humilde. Podia ser o silêncio assustador que antecede as tormentas. Mas o fato é que nunca o vi explodir.

Estava em Nova York com minha família fazendo um sabático (o nome que os consultores dávamos para passar um ano na vagabundagem). O telefone toca e um dos filhos de seu Nenê me convoca para o Brasil. Seu Nenê estava apanhando: era acusado de estar envolvido na morte de um ex-funcionário. Seu ex-genro também fazia carga acusando-o de cruel. Pra piorar, ao ir a uma delegacia prestar depoimento, ele fora flagrado num átimo segurando uma pedra com as duas mãos quando a estava jogando na direção do fotógrafo. A imagem era devastadora.

Seu Nenê era o presidente do conselho de administração naquele momento. Era visto como o fundador da empresa, reflexo inevitável de seu império rodoviário. Na reunião com seus dois filhos, Constantino Junior e Henrique, já cheguei brandindo a peixeira:

- Seu Nenê não pode continuar como presidente do conselho. Ele tem que se defender, mas fora, sem prejudicar a companhia.

Henrique ponderou:

- Nosso pai fez tudo por nós e não gostaríamos de chegar a esse ponto.

Menos de duas semanas depois, chegaram. Seu Nenê deixou a posição no conselho. Preservaram uma companhia aberta com aquela medida extrema. No campo pessoal, nunca abandonaram o pai. Cortaram na própria carne e deram um exemplo de sangue-frio.

Companhias aéreas estão para o gerenciamento de crises como Las Vegas está para os cassinos. É uma atividade em que, todos os dias, em todas as horas, em todos os lugares, há perigo no ar. Por isso, é o setor que mais se prepara e tem uma cultura neural de reação a crises. É uma usina de decisões pragmáticas em escala. Trabalhei no setor seis anos. E aprendi muito.

Um vez, fui com os Constantinos à sede da Boeing, no estado de Washington, nos Estados Unidos. Percorri os hangares de montagem e vi a enorme tela com o mapa-múndi e pontinhos piscando e se deslocando no monitor como um enxame de abelhas: cada um daqueles milhares de pontinhos era uma aeronave, cheia de vidas.

Embora as tragédias aeronáuticas é que marquem o imaginário coletivo, cada dia numa empresa aérea é um salve-se quem puder. Qualquer mínima polêmica vira um escarcéu de potenciais e bíblicas dimensões midiáticas.

Lembro a vez em que os equipamentos da banda musical Calypso acabaram, por um errinho qualquer no despacho de bagagens, indo parar em outro pais. E lá se vai algum funcionário abnegado para alugar guitarras e percussão lá numa cidade longínqua para evitar ídolos falando mal de você e cancelando um show por sua causa.

Noutra ocasião, um tarado se masturbou no banheiro e espalhou tudo no compartimento. Coitados dos comissários, esses gigantes. Faltou cadeira de rodas uma vez e um portador de necessidades especiais saiu descendo sem amparo, se arrastando, num aeroporto em Cuiabá. Alguém fotografou e pronto: uma polêmica nacional.

Num voo, certa ocasião, a coreógrafa Deborah Colker achou que seu neto foi discriminado pela tripulação. Ele era portador de uma doença não contagiosa e os tripulantes pediram explicação. Veja bem a agilidade das aéreas quando o assunto é crise: era um voo Salvador-Rio e sabe em quanto o tempo o presidente da companhia em pessoa estava num celular da aeronave pedindo desculpas pelo transtorno à ilustre passageira? Questão de minutos.

A informação saiu da base remota, percorreu toda a hierarquia, atingiu o topo em São Paulo, foi processada e o procedimento ideal foi adotado. Em pouquíssimos minutos. Neural. Isso não evitou a repercussão instantânea e ampla do incidente, mas quantos setores têm tanta agilidade?

Um querido amigo meu, Helio Muniz, que foi diretor de comunicação da Gol e depois foi ocupar a mesma posição no McDonald?s, definiu bem o contraste em termos de adrenalina entre vender sanduíches e trabalhar na aviação:

- A diferença é que, agora, se meu produto cai no chão, eu apenas peço outro e o problema tá resolvido.

Cruzei com muita gente pragmática neste mundo. Mas a capacidade de assimilação daquele empresário bem-apessoado eu jamais esqueci.

Em 2012, desabou lá em casa Wilder Morais, suplente do senador, àquela altura cassado, Demóstenes Torres. Wilder estava aflito. O titular, Torres, havia sido cassado por conta da revelação de gravações telefônicas entre ele e um bicheiro chamado Carlinhos Cachoeira. Torres havia construído a carreira sobre o pilar da defesa intransigente da moralidade. A proximidade com o ?esquema Cachoeira?, portanto, era fatal. Tornada pública sua amizade com o bicheiro, ele foi para a cadeira elétrica.

Pois bem: Wilder ainda não havia sido empossado e andava angustiado. No dia anterior, surgira uma gravação em que ele próprio aparecia conversando com o bicheiro. Naquele contexto, poderia ser fatal e ele perder a senatoria nunca antes tão próxima.

Ele começou me explicando que se casara anos antes com uma moça e que, ao longo do tempo, o casamento se desgastara. Os dois moravam na mesma casa, mas não eram mais um casal. Até que ela conheceu e se envolveu com Cachoeira. O senador suplente usava esta história para mostrar que os dois homens se conheciam, mas, até pelas circunstâncias pessoais, não eram próximos. Meio anarquista, meio provocador, eu brinquei:

- O senhor tem que chamar a imprensa e dizer: se o esquema Cachoeira funcionava dentro da minha casa e eu não sabia, imagina fora?

Um pouco para minha surpresa, ele disse:

- É isso mesmo!

Saiu dali, foi para o Congresso, deu uma entrevista repetindo a frase e sugerindo uma admissão pública rara de se ver: se era pra ser malfalado, era melhor dizerem que foi marido traído (o que não foi)  do que carregar a mancha da bandalheira. Achei de um pragmatismo incrível. Foi empossado.

Na minha primeira conversa profissional com o senador ACM, no contexto da crise dos grampos telefônicos da Bahia, eu estava com o diabo na ponta da língua. Fomos para a varanda do apartamento dele em Salvador. Éramos eu, ele e o empresário Carlos Laranjeira, que os inimigos de ACM consideravam um tanto cítrico, embora comigo tenha sido sempre um doce de pessoa.

ACM adorava uma briga, pública ou privada. Dias antes, mandara um de seus antológicos bilhetinhos, xingando uma famosa colunista política que o criticara.

Meu diagnóstico era que ACM precisava segurar a onda. De nada adiantaria tentarmos salvá-lo se ele continuasse brigando com todo o mundo.

Resumidamente, foi assim que pontuei:

- Seu comportamento público, pessoal e político tem sido ridículo.

Um silêncio interminável varreu a varanda. Algumas horas depois, falei ao telefone com Laranjeira. Assim, como quem não quer nada, perguntei o que ele tinha achado da reunião. Ele comentou:

- Depois que você saiu, o senador disse que, ?quando a gente tá precisando, ouve qualquer coisa?.

Virei fã do senador. Até a morte dele, me chamava pelo carinhoso apelido de ?manga rosa?. Quando encontrava algum conhecido, perguntava: ?Cadê o manga??. Ele sobreviveu àquela crise e fomos amigos para sempre.

Trabalhei com o empresário Carlos Jereissati durante todo o escândalo da telegangue (de novo, como era chamado o caso das suspeitas de corrupção da privatização da telefonia. Carlos era um dos controladores da maior empresa do ramo, lembra?).

Naquele final de semana, o senador ACM tinha dado uma entrevista de capa para uma revista. Rompia, então, com o governo Fernando Henrique, fazendo duras acusações. A mais pesada era que tomara conhecimento de que Carlos Jereissati havia pago uma propina de 90 milhões de dólares a um alto funcionário do governo, muito ligado ao presidente da República e responsável pela formatação dos consórcios de privatização.

Carlos se mantinha sempre frio em horas como essa. Não reagia por impulso. Não se desesperava e mantinha sempre um raro senso de equilíbrio e humor. Naquela situação, preferiu não falar nada, para não amplificar a polêmica.

No dia seguinte, fui encontrá-lo em seu escritório, em São Paulo. Sério, fez um comentário que me surpreendeu:

- Essa acusação acabou com minha reputação.

Eu perguntei o porquê.

- Perante os meus pares, vou ficar com a fama de otário. Imagina, pagar 90 milhões de dólares de propina para não ganhar nenhum privilégio? Vou ficar com a pecha de que pago muito e recebo nada. Os outros empresários vão dizer que sou um pateta.

Ele fez a tirada e começou a rir. Desanuviou imediatamente o ambiente. Era o Carlos de sempre, firme e engraçado de sempre. Mantivemos uma postura de reação passiva em termos de mídia e o escândalo rapidamente se esvaziou. Às vezes, a forma como encaramos os problemas é decisiva para influenciar os desfechos.

Luiz Estêvão eu conhecia havia duas décadas e desenvolvi uma ligação baseada no respeito. Ele era forte física e mentalmente. Havia décadas que apanhava na imprensa de forma inclemente. Quando o vi nesse dia, tinha acabado de sair de um período de seis meses na cadeia. Algum tempo depois, perdeu seus últimos recursos e estava às voltas de ter tolhida a liberdade novamente. Jornais, TV e revistas moíam-no noite e dia. Ele parecia resignado e apresentou sua interpretação para aquilo tudo. Pragmático, como sempre:

- Um bom filme se faz ou com um bom roteiro ou com um bom personagem. Sou um bom personagem. Se não há uma boa história para contar, basta botar meu nome no meio que aí tudo se resolve, a reportagem fica boa.

Falava isso sem mágoa. Achava que era isso o que acontecia: o personagem dele atraía notícias fortes, mesmo que o enredo não justificasse. Claro, a audiência nunca o viu com a mesma autocomplacência.

Presidente do PSDB , o senador Teotônio Vilela estava preocupado. É que uma auditoria na fundação que levava seu nome identificara uma série de irregularidades com o dinheiro gerido pela instituição. Os desvios tinham ocorrido na gestão de um diretor. Teo não era responsável pelo dia a dia. O ?Correio Braziliense? estava cobrindo o assunto e expondo negativamente a instituição, o que atingia diretamente o senador. Como explicar que não era ele quem tinha poder de gestão sobre a Fundação Teotônio Vilela?

Numa longa e tensa reunião em Maceió, na sede da empresa familiar do senador -- a Sococo -- , os demais executivos tinham receio de fazer uma caça às bruxas internas. Para mim, era a única forma de nos afastarmos da polêmica. Sugeri realizarmos a auditoria e partirmos para a linha de frente, inclusive nos tornando parte da acusação junto com o Ministério Público. Foi o que fizemos, não sem antes deixar traumas internos.

Teo Vilela, que sempre fora um homem bom, encampou aquela guinada que não era só de mídia, mas judicial também. No fim, apesar dos percalços internos, a conduta teve bons resultados. O conselho da Fundação se apresentou como lesado e, junto com os promotores, patrocinou as medidas para recuperar as perdas.

Teo Vilela, de vilão, acabou sendo visto como vítima dos desmandos. Tinha pulado a fogueira.

Manter a mente fria em momentos de combustão à volta é uma proeza para poucos. Certa noite, fui jantar na casa do senador Jader Barbalho. Ele estava prestes a ser degolado da presidência do Senado. Era o escândalo da vez. O acusavam de tudo. Sempre muito carinhoso e gentil, me chamou para jantar com ele e a mulher. Antes, me puxou de lado e disse:

- Eu sei exatamente o que me aguarda. E sei que meu destino já está traçado e as coisas vão piorar ainda mais. Mas minha esposa está muito angustiada. Por favor, dê aquela injeção de ânimo no jantar. Diga que vê saídas, que vai dar tudo certo, que vai acontecer o melhor. Pelo menos ela ganha alguns dias de esperança.

Fui lá e fiz o meu papel. Jorrei otimismo. Sempre adorei Jader.

Renan Calheiros tinha passado do ponto naquela vez. Propusera uma CPI contra a editora Abril. Esse tipo de atitude drástica um líder político só toma se tem controle total sobre o desfecho. Renan não tinha. Cutucou a fera, mas outros a salvaram. Ficou com um passivo que demorou anos para superar. Essa história da CPI foi lá por 2007, no auge do escândalo de Renan, então. Claro, a relação entre ele e a publicação ficou azedada por muito tempo.

Lá pelos idos de 2012, Renan enxergou uma oportunidade de cicatrizar velhas feridas. Durante a CPI do caso Cachoeira, alguns parlamentares ligados ao governo queriam convocar um editor da revista para depor. Era uma covardia inominável. Cachoeira fora fonte do jornalista e trocara ligações com ele, naturalmente. O jornalista fizera apenas o serviço profissional, o de falar com todo o mundo que possa ter notícia. Notícias não vêm só do paraíso.

Só que, para constranger a publicação e ferir o repórter, queriam convocá-lo para se sentar como se fosse um investigado, com toda a sombra ruim que os holofotes de uma CPI podem proporcionar. Renan aproveitou a deixa e trabalhou ativamente para evitar aquele absurdo constrangimento. De inimigo pontual tinha virado aliado de primeira hora da revista e da editora. Deixou o sangue quente no freezer e fez o que tinha de fazer.

O presidente Fernando Henrique era uma águia nos detalhes. Tinha uma rede complexa de cruzamentos de informação de todos os lados. Ainda moleque, eu fazia parte colateral dela. Quando presidente, me recebia (em geral nos domingos à noite) no Palácio da Alvorada, residência oficial. Preocupado com as grandes questões nacionais, de vez em quando parava a agenda e ouvia a rádio de fofocas que existia dentro de mim. Peças difusas do quebra-cabeça de Brasília que, junto com milhares de outras, ele tinha prazer e dedicação em montar.

Numa dessas vezes, comentei numa noite de domingo que um amigo meu acabara de assumir como editor do ?Jornal Nacional?. Dei o número dele, sei lá por quê. No dia seguinte, me liga Amaury Soares, editor-chefe do ?JN?:

- Recebo aqui uma ligação e do outro lado da linha se apresenta o presidente Fernando Henrique. Ligou diretamente. Você é doido, é?

Fiz apenas uma boa intriga, mas o presidente mostrava que estava atento a tudo. Foi o pragmático mais sedutor que conheci.

Já Ricardo Teixeira jogava como um centroavante rompedor. No auge de sua guerra nuclear com a rede Globo, durante as CPIs da virada do milênio, articulou pessoalmente um punch no meio de um round. Era um jogo Brasil-Argentina, a maior rivalidade do futebol sul-americano e, portanto, um paiol de audiência. Vi pessoalmente Teixeira combinar com Julio Grondona, presidente da Federação Argentina, a definição do horário para as oito da noite. Esse horário era uma bomba: era exatamente a hora do ?Jornal Nacional?. Isso afetava diretamente a grade de programação da emissora. Em outras palavras: prejuízo.

Ricardo não podia ser culpado de nada: tinha sido o presidente Grondona que havia mandado um oficio definindo o horário. Como na Argentina não havia uma líder tão isolada de audiência como a Globo, para ele tanto fazia. Mas, para a emissora brasileira, era um estrago.

- Vou mandar um comunicado oficial para o Grondona contestando o horário e exigindo uma reconsideração. Mas você sabe como o Grondona é: é muito difícil ele voltar atrás...

Ricardo me dizia isso com um sorriso maroto. Os dois eram parceiros de carne e unha. Grondona usava um anel vistoso na mão esquerda com os dizeres: ?todo pasa?. Mostrou várias vezes esse anel nos momentos de angústia de Ricardo.

Ricardo não queria brigar por brigar. Queria apenas demonstrar que, na briga, todos têm algo a perder. O jogo foi transmitido às oito da noite. As relações entre ele e a emissora, com o tempo, foram voltando a se ajustar. Tudo passa.

Crises de comunicação são como icebergs: o que você vê no noticiário é a ponta, mas existe um maciço gigantesco submerso. Ali, há peixes que conseguem navegar na água fria.

Foto:Mastrangelo Reino/Folhapress, ILUSTRADA Foto:Mastrangelo Reino/Folhapress, ILUSTRADA

BONS COMPANHEIROS

Era madrugada e eu ainda morava na Bahia. Ouvia aquele sonzinho das ondas batendo de leve entrando pela varanda enquanto degustava meu charuto diário. Olhava e reolhava aquele contrato que acabara de firmar. Como é que podiam me pagar tanto?

Lamento, meu caro, mas não é exatamente verdade que sofri o diabo para ganhar algum cascalho. Fui feliz pra burro, me diverti à beça, encontrei malucos dos mais variados extratos -- e ainda por cima faturei algum.

Se um dia eu merecesse um obituário, gostaria que estampasse aquela que considero a minha mais espetacular conquista, entre todas, no campo social: eu fui jurado de Miss Brasil. Sim, em 2012. Participei da escolha da representante da beleza brasileira no concurso de Miss Universo.

Você não deve saber (eu não sabia), mas existem ?missólogos?. Caras especialistas em preparar candidatas a conquistar a coroa. São consultores de crise, de outro jeito. Colegas. Eu devo ter tido o meu meticuloso processo de decisão esquadrinhado. Alguém, em algum lugar, pode ter decifrado minha propensão para escolher esta ou aquela miss. Virei objeto de estudo.

Uma nota do site UOL me colocava no panteão:

?Onze jurados e uma sentença: saiba quem escolherá a miss Brasil 2012?.

?Direto de Fortaleza

?Em primeira mão, segue a lista dos jurados do Miss Brasil 2012!

?O ranking de notáveis inclui gente do calibre do idealizador do São Paulo Fashion Week, Paulo Borges, e da jornalista especializada em moda, Maria Prata. Segue a lista completa??

Está lá o nome do magistrado aqui, na sexta posição.

Alcancei meu ápice, com a toga de jurado de miss e com direito a transmissão em rede nacional de televisão. Entrei nessa apenas e exclusivamente por conta do velho e bom compadrio. Fui chamado para essa missão crucial por um sujeito decisivo em minha vida adulta, de quem sou fã de carteirinha e carteirona. Um dos promotores do evento era o empresário Carlos Jereissatti (que também era dono do império dos shoppings Iguatemi e, durante mais de uma década, meu patrão na aventura dele de controlar a maior empresa de telefonia do pais, a Telemar. Depois eu conto?).

Carlos estava preocupado com o risco de que o julgamento não fosse totalmente meritocrático e queria gente em quem confiasse, para que fizesse a escolha mais técnica possível. E lá fui eu.

Concurso de miss é uma coisa espetacular. Começa porque, quando eu era menino, via aquilo pela televisão preto e branco de classe média baixa lá de casa e achava a coisa mais sideral do universo. Pois agora eu estava ali, durante minha própria vida, não apenas para assistir in loco, mas para participar da decisão. A vida tem muitas métricas. Essa é uma das que mais me convenciam de que minha vida foi divertida.

Só pra terminar esse tópico, mais interessante ainda que concurso de miss, é o depois. Você sai do estúdio e vai para um hotel distante para encontrar 26 jovens e deslumbrantes mulheres arrasadas, com a autoestima lá embaixo. Enquanto a 27ª está sem entender nada, com a coroa na cabeça. Obrigado, Carlos, pelo privilégio.

As relações nesse etéreo nível de decisão do poder, sobretudo o econômico, são cheias de sutilezas. O filho de datilógrafa que eu fui foi descobrindo essas nuances aos poucos, conforme minha carreira pegava o rabo de foguete que pegou.

Adoraria dizer que as crises de reputação de grandes proporções que vivi de perto são peças da ciência. Na verdade, são obras humanas, com seres com sentimentos, fragilidades, angústias profundas. E, quando se tem acesso e se vivencia isso de perto, você de alguma forma passa a ser parte da paisagem. Um pouco da família, exagerando um tantinho.

Nunca me vendi. Sempre fui comprado. Atendia ao objeto de desejo do meu cliente, que se tornaria meu amigo. A técnica é oferecer aconselhamento. A amizade é saber como fazê-lo e como lidar e respeitar a paúra que aquele ser poderoso não quer expor para mais ninguém. É como se os leões escolhessem o veterinário para cuidar do ferimento deles. E as pessoas, nessas horas, têm que gostar de você. Gostar, porque você vai estar ali vendo elas peladas.

Por que afinal me contratavam? Tinha uma suspeita. Não era contratado para falar. Mas para ser ouvido. A diferença? Todo o mundo pode falar tudo e, na minha atividade, tem muita, muita gente que podia falar exatamente o que eu ia dizer: ?dois mais dois são quatro?. Então, o que a gente diz não importa. Importa é o que os outros ouvem. E caras poderosos criam uma barreira entre o mundo e o ouvido deles. Porque tudo o que eles ouvem tem consequência. Influencia.

Então, entendia que minha lógica de cobrança era inclusive uma espécie de fiança: um preço que o contratante pagava para tomar a decisão de me ouvir. E, como o valor dele e de tudo o que ele representava era elevado, minha cobrança era, digamos assim, infinitesimalmente proporcional.

Quando você está numa crise braba e você é que sussurra no ouvido do craque para que lado bater o pênalti, o peso é às vezes opressivo. Aquela sugestão, quando ouvida pelo Olimpo, tem consequência enorme no mundo dos mortais. Se tinha uma coisa que me dava agonia era quando alguém confiava em meu julgamento para tomar uma decisão crucial. Hoje, é gostoso lembrar, mas na época, hum?

Uma coisa é vender seu corpo. Outra coisa é beijar na boca. É uma imagem chula pela qual me desculpo. Mas era assim mesmo que via as coisas dentro de mim. Embora não seja nada lisonjeiro, estou sendo fiel ao modo como pensava e o expondo, sem retoque, a você.

Percebi que, embora estivesse vendendo meu ?conhecimento?, ainda assim no nível mais elevado de decisão há um jogo para conquistar também o seu coração. Olha que incrível: era cortejado por pessoas que eu adorava e ainda me pagavam milhões. Como diz o cabeleireiro de minha mulher, morra!

Como trabalhava na maioria dos casos para donos de empresas, eu me considerava uma espécie de empregado doméstico. Ou como me definia: pobre de estimação. Eu me comparava com aqueles pilotos de um daqueles iates que ficam ancorados nas ilhas gregas e que o empresário só passa ali dez dias por ano. Aquele piloto tem um emprego dos sonhos: vive num iate, come do bom e do melhor, vai a lugares incríveis. Mas é apenas um empregado. Um empregado que o patrão tem que se sentir bem ao lado, no qual tenha confiança, com o qual possa relaxar, tomar um porre e ter garantia de discrição. Eu me via assim.

Conhecia os filhos e a casa de meus patrões. Carlinhos Jereissati, Pedrinho, os filhos e netos do Caco, a família Constantino inteira, a sala de jantar dos Molina, a fazenda do banqueiro Ivo Lodo, o apartamento de Carlos (pai) em Nova York, a casa de praia dos Teixeira, os apartamentos e a casa de praia dos Cavendish, o récamier dos Abubakir?e por aí vai. Não frequentava apenas os escritórios, embora fosse ali que prestasse meu serviço. Virava prata da casa. Talvez bronze. Mais precisamente: lata da casa.

Logo depois que assinei o contrato com o grupo Camargo Corrêa para gerir a crise de comunicação do caso Castelo de Areia (depois a gente fala sobre isso), fiquei naquele estado de torpor: saboreando meu charuto e lendo e relendo as cláusulas, sobretudo a que rezava sobre o valor.

Mas não era só isso, embora isso fosse bastante. É como eu estava sendo tratado. Quando você falava ?Camargo Corrêa? para os ricos do meu tempo, eles provavelmente iriam dizer: esses são ricos. Era a essa estratosfera (a Camargosfera) que eu havia sido lançado por essa forçca estranha que era o destino.

O fundador do grupo, Sebastião Camargo, foi pai de três filhas. Elas se casaram e formaram a ?segunda geração?. Às vezes, eu encontrava durante a crise jovens entre 20 e 30 anos, ?a terceira geração?. Nos referíamos a eles assim mesmo: ?hoje teve uma reunião da terceira geração?. Ah, que privilégio?

Eu fui convidado para a Castelo de Areia por uma das pessoas decisivas na minha carreira, um legítimo membro da segunda geração, Carlos Pires de Oliveira Dias, o Caco. Cada terço das herdeiras e controladoras do grupo interagia através dos ?genros?. Caco era um deles. Genro de? De Sebastião Camargo, muito aqui entre nós, pode chamar ?seu? Sebastião de "a primeira geração?.

Caco era uma delícia. Não tinha nenhuma afetação. Carinhoso, alegre. Sua paixão era a família. E o golfe. Ele foi o meu chefe em toda aquela crise. O ápice da crise foram os primeiros dois anos. Mas eu fiquei lá cinco.

Conheci Caco em Nova York. Ele um dia me mandou uma mensagem. Estávamos em 2009 e eu, com certeza, posso lhe assegurar que pelo menos até os 45 anos eu era um tapado, débil mental. Não fazia a menor ideia de quem era o Caco e o que ele significava dentro do establishment. Não vou falar mais sobre ele porque, além de tudo, ele detesta aparecer. Caco, foi mal?

Bom, mas voltando ao relacionamento que nasce nessas horas, encontrei o Caco num apartamento em Nova York e não sabia que havia uma diferença entre a Construtora Camargo Corrêa e o grupo Camargo Corrêa. A construtora era um gigante, mas o grupo era um ninho de gigantes. Na época, eram donos da Alpargatas, de fábricas de cimento, de empresas de transmissão de energia, de 10% do banco Itaú, de estaleiros, de empresas de concessão, shoppings. Ah, sim, o Caco ?na pessoa física? era dono da Drogasil, a gigante de farmácias. Desculpa aí, Caco.

E o paspalho aqui na maior ignorância e no maior salto alto. Pensei que ele era empreiteiro. Burro eu, né? Sei que uns dias depois ele manda outra mensagem querendo me encontrar. Disse a ele que já tinha ido embora dos Estados Unidos. Ele disse que também estava no Brasil. Galante, fez a primeira de uma infinidade de cortesias comigo:

- Eu mando o avião te buscar

Senti firmeza?

Eu ainda morava em Salvador (eh, que vidão...). No dia seguinte, fui para o hangar e enxergo um palácio voador. Era o avião (um dos) da Camargo, um Falcon 50. Pra encurtar a história, é daqueles jatinhos executivos em que o sujeito pode andar em pé. Imagina o colosso?

Fiz ida e volta, sozinho, naquela carruagem da nobreza do século 21.

Ao encontrar o Caco, não deixei de registrar:

- Eu reparei no avião que você me mandou. Você quis dizer, e eu entendi, que está me estendendo o tapete vermelho e me recebendo com um buquê de flores na mão. Eu sei ler esses códigos e saiba que estarei sempre lendo a linguagem dos seus gestos.

Sem falar, meu mais novo cliente estava dizendo que considerava minha vinda para o time importante. Estas coisas não estão em manual de comunicação ou de gestão nenhum, ao menos que eu tenha visto. A vida acontece nos silêncios, nos olhares, nas paranoias, nos erros e, quando uma crise acontece, é preciso criar uma sinapse no processo de decisão.

Os impulsos vão e voltam, se retroalimentam e são estancados ou potencializados, no centro do processo decisório. Eu era implantado como uma célula nesses tecidos de decisão corporativa, quando havia um problema no sistema. Tinha que me adaptar e ser assimilado, rapidamente, pelo organismo. E influenciar, com todo o perigo que isso envolve.

Tinha virado um pequeno predador, pisando de mansinho sobre as folhas secas da floresta, atento a tudo, sentindo o vento e pronto para o bote.

Era esse estado de vigília permanente que, sem perceber, passei a vender para os big shots que me contratavam.

Foto: Istock Photo Foto: Istock Photo

VILÃO?

Quando cheguei para conversar com a jornalista na hora do almoço daquele dia tenebroso, logo após a busca e apreensão que sofrera, o caso já se transformara no escândalo do dia. Meu nome aparecia envolvido com um dos símbolos da política nacional, com empresários, com milhões e milhões em dinheiro. O enredo surgia associado a suspeitas cabeludas e a expressões nada agradáveis, como lavagem de dinheiro, formação de quadrilha, corrupção e por aí vai. Sinceramente, você acha que a jornalista poderia acreditar em alguém que ostentava um escândalo desse tipo como cartão de visitas? O dia estava só começando.

A essa altura, a repercussão da operação policial já tomava grande espaço da mídia, sobretudo nas plataformas de tempo real. O profissional que passara a vida inteira lidando com as acusações e os desgastes públicos dos outros, estava, então, convertido em tema de reportagens do mais novo escândalo.

Eu havia entrado nessa confusão toda porque minha empresa, três anos antes, tinha contratado a empresa de uma outra jornalista, Carolina Oliveira. Juntos, havíamos trabalhado numa das maiores crises empresariais do país, a disputa pelo controle acionário do Grupo Pão de Açúcar. Uma batalha de bilhões de dólares, tendo no centro um dos maiores conglomerados do país, com mais de 100 mil empregos diretos.

Nessa guerra, um dos flancos de batalha permanente era o noticiário, sobretudo o econômico. Os dois lados se armaram com inúmeros escritórios de comunicação, consultores, assessores de imprensa. Uma batalha empresarial única, pelo porte e pela musculatura financeira dos contendores e por tudo o que estava em jogo.

Eu achava o máximo estar no meio daquela confusão. Só não sabia que a vida de Carolina, depois, seguiria um rumo inusitado, como veremos. E por conta disso eu seria levado também a reboque de uma sucessão de acontecimentos imprevisíveis. Ainda veremos onde isso vai dar.

Por enquanto, o importante é que as ondas de um tsunami midiático começavam a desabar sobre aquele que vivera até ali como salva-vidas. Rádios, jornais, blogs, sites, televisões. A enrascada em que eu estava era o tititi daqueles dias. E eu dentro daquilo.

O jornal ?O Globo? já noticiava em seus canais digitais:

?O jornalista Mário Rosa, que atua em gerenciamento de crises, foi um dos alvos da operação. A PF fez busca e apreensão na casa do jornalista?.

Outro editor, mais mordaz, disparou no Twitter:

?Polícia Federal na casa do lobista Mário Rosa!?.

Na revista ?Época?:

?Rosa é um dos consultores de imagem favoritos dos políticos, enquanto Carolina Oliveira era uma jornalista desconhecida do mercado?.

Rezam os manuais de comunicação que uma pessoa citada num escândalo que envolve muitos outros nomes deve adotar a cautela de não se expor. A técnica, que tantas vezes aconselhei, recomenda que, quando muitos são atacados ao mesmo tempo, a melhor atitude é a do caminhão cheio de japoneses. Você não chama a atenção e ponto final.

No outro extremo (lá vai outra metáfora) é o comportamento do judeu, que, em plena plataforma de embarque para o campo de concentração, resolve tomar satisfação com o soldado. Ele está com a razão. Na essência, ele está certo de reclamar contra aquele absurdo. Mas isso só o torna ainda mais alvo, talvez de uma agressão ou de um fuzilamento sumário para intimidar os demais.

Então, sempre acreditei que pessoas ou empresas expostas em processos de desgaste de múltiplas pontas devem jogar com as pretas -- não assumir protagonismo para não atrair uma carga desproporcional de atrito. Na teoria, parece lógico. Na prática, quando o alvo era eu, foi totalmente diferente.

Mal me sento diante da repórter e ouço o que não esperava:

- O jornal quer que eu faça uma entrevista com você.

Passei num moedor de carne naquele encontro. A jornalista me olhava fixamente, nos olhos. Parecia uma psicanálise, eu falava através de tudo, das expressões, dos silêncios. E me sentia sob um escrutínio pelo qual nunca havia passado. Foi intenso.

Ali, era vida real. Eu me defendendo como podia, numa situação desconfortável. Não havia manuais nem consultores a quem recorrer. Estava batendo um pênalti. O pênalti de minha vida. E a torcida não estava nem um pouco a favor. Senti o peso da camisa e a fraqueza das pernas naqueles poucos passos até tocar a bola. Foi uma pequena eternidade.

Mas vejo hoje que aprendi algo que conhecimento técnico nenhum poderia me ensinar. Vendo agora, percebo que estava passando por uma transformação. Finalmente sentia na pele a adrenalina e o pavor que meus assessorados devem ter vivido e que, embora ao lado deles, tantas e tantas vezes ao longo de tantos anos, jamais poderia acessar. Só vivendo. E vivi.

No final das contas, dei a entrevista. Contrariando todas as certezas do consultor.

Foto: Arquivo/Mario Rosa Foto: Arquivo/Mario Rosa

CARTOLA

Durante mais de dez anos, quase 4.000 dias, eu tive uma convivência intensa com Ricardo Teixeira, então presidente da Confederação Brasileira de Futebol e, na época, um dos personagens cativos do imaginário brasileiro, como comandante desse sonho, que é a seleção. Pois, ao longo de todo esse tempo, trocamos telefonemas diários, às vezes vários, fizemos viagens pelo mundo todo, tivemos bate-papos no avião, em estadas de fins de semana, participamos de reuniões, mas não me recordo de nem uma única vez que tenhamos falado de futebol. Assim, no sentido de esquemas táticos, jogadores etc. Apenas conversávamos sobre os escândalos do dia, dos quais muitas vezes ele era o protagonista, ou de política. Ele adorava política.

Conheci Ricardo em minha primeira etapa como consultor, aquela em que era assessor de imprensa de porta de CPI. E ele me chamou, indicado por um amigo, para cuidar de uma delas: a CPI da Nike, conduzida pela Câmara dos Deputados, em 1999. No ano seguinte, uma outra CPI, a do Futebol, foi instalada no Senado.

Para todos aqueles que forem estudar a História do Brasil um dia e examinarem as mazelas do país na virada para o segundo milênio, um aspecto peculiar de nossa cultura pode ser este: o Congresso brasileiro colocou no topo de suas preocupações investigativas, simultaneamente, em duas Casas, a questão do futebol. A propósito, a CBF não recebia um centavo de dinheiro público. Zero. Mas, ainda assim, estava sendo investigada com lupa pelo parlamento nacional. Questão de prioridades. Bom pra mim, que tinha o que fazer.

O Ricardo que conheci era meio rabugento, mas sabia ser agradável quando queria. Era um exímio contador de histórias, e seu estoque, interminável. Quebrava o gelo com causos de futebol. Era sua especialidade, nas conversas reservadas. Diante das câmeras, era turrão. Nos bastidores, um licor. Gostava de contar como os torcedores são volúveis. Certa vez, a seleção foi jogar no Piauí. A tribuna de honra era ao lado da arquibancada, separada apenas por um vidro. Antes do jogo, ao lado do governador do estado, alguns torcedores vinham, olhavam o político, batiam a mão no bolso e gritavam:

- Ladrão! Ladrão!

O governador, indignado, disse para Ricardo:

- Isso é tudo gente safada. Vieram a soldo. Foram mandados pelos meus inimigos políticos?

Termina o jogo, o Brasil ganha, a torcida feliz. Agora, os torcedores vinham e gritavam palavras de apoio. O governador exultava:

- Tá vendo, Ricardo, esse povo me ama!

Contava isso e soltava uma gostosa gargalhada.

Em público, sobretudo diante das câmeras, Ricardo tinha uma cara fechada, mais timidez que qualquer outra coisa. No mundo dele, aprendeu a ser implacável. Uma vez ele me contou a primeira lição que recebeu de Joao Havelange, seu então sogro, espécie de pai e, na ocasião, presidente da FIFA, a entidade máxima do futebol mundial. Ricardo acabara de ser eleito presidente da CBF, em 1989:

- Ricardo, quem pode mais fode mais - ensinou Havelange.

Foi nessa escola do chicote que se forjou o cartola que, durante mais de duas décadas, comandou o futebol brasileiro, tendo chegado a três finais de Copa do Mundo, duas das quais em que se sagrou campeão. Com Giovani, como chamava o ex-sogro, ele não apertava as mãos. Trocava um beijo simbólico, encostando as bochechas, como nos filmes da Máfia. Era assim que nos cumprimentávamos também.

Ricardo costumava dizer que as cinco estrelas do uniforme da seleção ?eram da família?: três conquistadas por Havelange, duas por ele.

Ricardo administrava seu feudo com mão de ferro e para alguns detalhes aos quais eu não dava a menor importância ele olhava com lupa. Nas vésperas dos jogos da seleção, havia um cerimonial decisório do qual não abria mão. Era uma avalanche de pedidos de ingresso nesses dias. Na véspera, ele despachava pessoalmente quais seriam os agraciados com sua cortesia. Tinha sempre um mapa com a localização exata das poltronas. Distribuía esses convidados de acordo com sua avaliação de poder. Mais próximo a ele estavam os mais prestigiados: políticos, empresários, artistas. Em mais de uma década no futebol, eu nunca fui a um estádio como torcedor. Ia só de terno, roupa exigida na tribuna de honra. Raríssimas vezes não entrei pelas garagens das arenas. Só fui saber o que era assistir a um jogo como um torcedor depois que saí de lá.

As idas para os jogos eram sempre um acontecimento. As ruas das cidades eram fechadas ao trânsito, por batedores, para a seleção passar. Integrei incontáveis vezes esse cortejo, num carro com motorista atrás dos atletas. Nunca fui ?boleiro?, como são chamados os fanáticos por futebol. Graças a Deus, porque senão não saberia como viver sem aquela coisa toda. É viciante, para quem é adicto.

De terno e gravata, entrei algumas vezes no santuário que é o vestiário da seleção: craques pelados, sem camisa, amarrando a chuteira, em silêncio. Qualquer coisa diferente chama enormemente a atenção. O uniforme do cartola é terno e gravata. Ia aos jogos, mas não sentia exatamente prazer. Para falar a verdade, sofria mais do que o torcedor comum. Afinal, se houvesse um desastre dentro de campo, a culpa era minha! Eu teria uma nova crise no dia seguinte para encarar.

Uma vez, logo depois do escândalo do mensalão, fui a um jogo do Brasil pelas eliminatórias de 2006. Desci longe da tribuna e tive que rodear o estádio, em plena tarde ensolarada e abafada do cerrado. Estava de terno e usava um broche da CBF na lapela. Já estava tão acostumado que nem percebi o quanto era mesmo estranho um sujeito, de terno, indo para um jogo de futebol. De longe, algum gaiato notou a cena inusitada e começou a gritar:

- E aí, mensalão! Mensalão!

Os sujeitos imaginaram que aquele cara todo enfatiotado, com broche na lapela e tudo, andando por Brasília, só podia ser um político. Era o auge do desgaste dos políticos, até então. Entrei na brincadeira e gritei de volta, batendo no peito:

- Me respeita, rapaz! Eu sou cartola, eu sou cartola!

Era curioso: depois de ver a cartolagem incinerada diante da torcida durante tantos anos, especialmente por comissões investigativas formadas por deputados e senadores, eu me ?defendi? da provocação engraçada daqueles estranhos dizendo que eu era dirigente esportivo. Ironias do destino.

Futebol não tem a menor importância, mas é importantíssimo. Como empresa, a CBF é muitíssimo menor do que a fantasia que a ?amarelinha? irradia. Mas futebol dá o que falar. Então, se dá o que falar, dá mídia. É uma espécie de Disneylândia em que a bruxa malvada é que comanda o espetáculo, no caso o cartola da ocasião.

Para mim, foi um privilégio conhecer esse mundo de perto. Viajei com Ricardo e com a seleção para todos os continentes. Fui à Fifa em inúmeras oportunidades. Participei do ritual de pomposidade frívola do mundo da bola: desci num aeroporto em Assunção (de um jatinho, é claro), no Paraguai, e embarquei já na pista numa comitiva de Mercedes-Benz pretas. Coisa de república das bananas, você vai dizer, mas vivi o mesmo em Zurique, na Suíça.

Participei de um comboio aéreo de inúmeros helicópteros, num sobrevoo sobre Brasília com dirigentes da Fifa e Ricardo, na época da escolha do Brasil como sede da Copa de 2014. Também estava em outro comboio, então de tanques das Nações Unidas, quando a seleção foi jogar no Haiti. Hotéis badaladíssimos, banquetes, limusines, capitais mundiais, eventos iluminados, primeiras classes, aeronaves particulares, bem-vindo ao mundo da fantasia do futebol.

Havia um glamour um tanto duvidoso nesse mundo da bola. Uma vez, em Barcelona, fora acompanhar meu amigo Geddel Vieira Lima, que estava prestes a assumir um ministério. Ele, por sua vez, ciceroneava o recém-eleito governador da Bahia, Jaques Wagner. Fomos jantar num bom restaurante com nossas esposas e me deu na telha de chamar para ali o presidente do Barcelona, Sandro Rosell. Era padrinho de Ricardo Teixeira e eu o conhecia muito bem. Passa um tempo, chega Sandro e faz um encontro entre nós e a maior estrela do futebol mundial naqueles dias, o jogador Ronaldinho, o gaúcho, R 7. Vi pouca gente não se encantar com essas coisas. A propósito, naquela noite, quando chegou ao restaurante, Sandro usava um vistoso relógio. Fã das complicações, o governador elogiou a beleza da peça. Sandro o tirou do pulso na hora e ofereceu de presente. O governador correu pro abraço.

Lembro-me de uma cena que me chamou a atenção e me deu uma dimensão dessa enorme fantasia que é o futebol. Estava em Zurique, na sede imponente da Fifa (um edifício que tem mais andares abaixo do chão do que acima da superfície, a propósito). Estava havendo uma reunião do Comitê Executivo, o corpo diretivo da organização em nível mundial, composto de 25 integrantes, dos quais Ricardo era um deles. Eu estava no térreo e notei o enxame de equipes de TV e repórteres do mundo todo. Eram centenas de profissionais. Ao lado, perfiladas uma a uma, mais de uma dezena de limusines pretas. Para que todo aquele alvoroço?

Parecia que algo importantíssimo estava sendo decidido. Parecia que um encontro de chefes de Estado estava em curso e que alguma decisão de impacto mundial estava para ser anunciada. Mas era apenas uma assembleia internacional de cartolas. O que de tão decisivo eles podiam anunciar? Que bola na mão dentro da área não era mais pênalti? Que falta por trás não era mais falta?

Ali, vi que a fantasia humana é coisa séria, capaz de magnetizar a atenção de bilhões de pessoas ao redor do planeta. Uma das mais poderosas plataformas de comunicação global. O futebol é uma coisa estranha, assim como nós, humanos.

Pra mim, o futebol era a forma mais agradável de fazer política o tempo todo, sem nenhuma responsabilidade maior e -- melhor -- sem dinheiro público. Você não precisa fazer hospital, escola, saneamento, mas está em contato com gente de todas as áreas, em tempo integral. E no imaginário do povo brasileiro existe o presidente da República e o presidente da seleção. Todo o mundo sabe quem é ou já viu. Quando não xingou.

E eu, porque conheci o Ricardo na pindaíba das CPIs, com o tempo fui podendo olhar de dentro e sem reservas esse mundo muito estranho. Sempre comparei meu serviço para ele como alguém que é amigo do dono de um circo. Quando você está no circo, o trapezista, o mágico, o engolidor de facas, o domador dos leões, o palhaço, todo o mundo acha superimportante sua amizade com o dono do espetáculo. Mas, fora dali, ninguém dá muita bola para um dono de circo. Era assim que me sentia: achava aquele tema leve, suave mesmo, sobretudo comparado com os problemas dramáticos que presenciava em outras situações que vivi.

Ricardo fazia gentilezas ou grosserias sem falar. Coisa de mineiro. Falava calado. Vi que eu estava forte quando me convidou um dia para ser membro da delegação brasileira junto à Confederação Sul-Americana de Futebol. Que diabos é isso? Ele me colocou como eleitor dele mesmo. Era eu, o filho dele Roberto e o tio, Marco Antônio, seu braço direito na época. Fui para a Assembleia Geral e sentei no meio daquela cartolagem toda, na bancada tríplice dos brasileiros. Terno e gravata, óbvio...

A eleição se dava de uma maneira bem curiosa: à medida que o cargo especifico era mencionado, algum representante levantava, pedia a palavra, elogiava o indicado e defendia que a eleição fosse feita por aclamação. E assim foi a chapa inteira: pipocava alguém elogiando e todos levantamos para aplaudir. Foi assim que ?elegi? Ricardo membro do Comitê Executivo da FIFA como representante da Conmebol.

Ao término do conclave, lembro-me de ter comentado com ele:

- Presidente, quero agradecer toda a autonomia que o senhor me deu. Em nenhum momento o senhor disse como eu deveria aplaudir. Se eu devia aplaudir sentado, de pé, aplaudir rápido ou lento, baixo ou alto. Eu pude aplaudir do jeito que achasse melhor. Obrigado!

Ele riu, né?

Dormi em todas as casas de Ricardo. Na fazenda, na cidade fluminense de Piraí, na casa de praia em Búzios, na casa de Boca Raton, na Flórida, na casa do Itanhangá, no Rio, onde tive a primazia de dormir no quarto do ?padrinho?, seu parceiro Sandro Rosell, então presidente do Barcelona. Tinha foto do Sandro na cabeceira. Se chegasse a qualquer momento, estava em casa. Coisas da cartolagem.

Na época das CPIs, o bombardeio era diário. Meu papel era obter o máximo de informações possíveis e modular as respostas e reações. Era uma batalha permanente. Nessa época, ainda falava com repórteres. Era assessor de imprensa e ?estrategista? ao mesmo tempo. Ter informação numa CPI não é tentar saber que documentos eles têm, mas tentar entender para onde está indo a correnteza, sobretudo do ponto de vista da mídia. Afinal, só existirá estardalhaço se houver repercussão. E só existirá repercussão se a imprensa cornetear numa determinada direção. Eram dezenas de ligações por dia. Um sufoco.

Naquele momento em especial, Ricardo estava no fundo do poço, sobretudo na relação dele com a rede Globo. Era ?Jornal Nacional? todo santo dia. Ou quase. Pra piorar, a seleção (que viria a ser pentacampeã) era um fiasco nas eliminatórias. O Brasil corria o risco de ser desclassificado. Culpa? Da cartolagem, claro. Era um coquetel bombástico.

Nesse atendimento inicial, treinei vários dos fundamentos que fazem parte do arsenal de um consultor de crises: preparação para entrevistas, simulação de depoimentos na CPI, produção de documentos contestando denúncias, cartas para jornais, gogó sem fim em horas de telefonemas com setoristas da Comissão, apurações informais com parlamentares com que cruzava em restaurantes, antecipação de cenários, criação de factoides. Ricardo me ajudou muito: seu caso era ao mesmo tempo enorme em termos de visibilidade e de impacto midiático e quase absolutamente irrelevante do ponto de vista institucional. O futebol é importante. Tudo é importante. Mas há coisas muito mais importantes, não é mesmo? Foi um treino magnifico. Era uma necropsia espetacular.

Ricardo estava no limite. Nas madrugadas, muitas vezes enrolando a língua, desabafava comigo suas aflições. Os lamentos, algumas vezes, varavam as horas até o amanhecer. Ali, ouvindo aquele leão ferido, algumas vezes usando a muleta de um golinho a mais aqui ou ali, fui aprendendo um outro significado para o meu papel nessas horas: simplesmente um ouvido confiável para um ser acuado poder descarregar os medos, as mágoas, as raivas, as incompreensões.

Tentávamos reagir como podíamos. No meio daquela muvuca toda, inventamos de anunciar com estardalhaço um feito incrível: o maior contrato de patrocínio do futebol mundial até então, da Ambev, para a seleção brasileira. Era um tiro de canhão naqueles que esculhambavam Ricardo. Se o futebol era uma bagunça e mal administrado, como é que uma das empresas mais respeitadas do país decidia - justamente durante as CPIs - fazer um anúncio bombástico daqueles? Economicamente era ótimo, mas o patrocínio foi um fato talvez ainda mais importante do ponto de vista político. E cacarejamos bastante.

Durante as CPIs, Ricardo costurou o chamado ?pacto da bola?. Anos antes, ele tinha entrado numa bola dividida com o rei do futebol, Pelé. Brigar com ídolo, ainda mais em público, é marcar gol contra. Ricardo se ferrou e o rei venceu, claro. Todo esfrangalhado pela cobertura impiedosa daqueles dias, criou-se um factoide a contento.

A síntese era uma foto eloquente: Ricardo, Pelé e o ministro do Esporte segurando uma bola. A imprensa esportiva ficou tiririca. Aquela foto era um drible e tanto. Vim no mesmo jatinho naquele dia com Ricardo e o rei. Durante o voo, um papo ameno danado. Parecia a coisa mais natural do mundo. Mas aquela aproximação, naquele momento, foi um nó tático naqueles que queriam ver o cartola no banco de reservas.

Outro exemplo de como a criação de fatos pode ser uma arma na guerra da sobrevivência em escândalos foi o anúncio da contratação de Luís Felipe Scolari, o Felipão, para técnico da seleção. Pela primeira vez na história e provavelmente pela última, o técnico da seleção foi anunciado em Brasília. Era um momento decisivo da CPI e fizemos aquilo por pura pirraça. Foi goleada. A mídia toda compareceu àquele acontecimento. O plenário da Comissão ficou às moscas. O noticiário dos telejornais e do dia seguinte foi todo Felipão. Era aquilo obra de algum spin doctor? Deixo a resposta para os especialistas.

O fato é que estava aprendendo.

Foto: Alan Marques/Folhapress /Digital Foto: Alan Marques/Folhapress /Digital

RETRANCA

Na minha encarnação futebolística (a primeira, pois acabei tendo outra), comi o pão que o diabo amassou. Era só pancada, o tempo todo. Mas?

O mundo e a bola são redondos. E dão voltas. Ricardo terminou a CPIs arruinado. Na noite da aprovação do relatório do Senado, que espinafrava com ele, lembro que passamos a madrugada juntos, num hotel em Brasília. Ricardo tinha 5 dos 11 votos. Faltava apenas um para conquistar a maioria e derrubar o texto. Até que o voto decisivo, do senador e ex-delegado Romeu Tuma, se definiu contra a CBF. Jogo encerrado. Perdemos.

Ricardo, àquela hora do dia, saiu ligando para os senadores que o apoiavam, sendo pragmático, como quase sempre:

- Vote contra nós. Já perdemos. Não vale a pena se desgastar à toa.

E, assim, no dia decisivo, o relatório foi aprovado por unanimidade: 11 a zero.

Ricardo ficou mal. E no dia seguinte me ligou dizendo que ia renunciar. Disse a ele que renunciar parecia assumir a culpa. Que pensasse um pouco. Ele me respondeu que recebera uma visita de João Havelange naquele dia, pedindo que renunciasse em nome dos netos, filhos de Ricardo. O cartola marrento que o Brasil conhecia ficou abaladíssimo com a posição do sogro.

Ricardo chegou a escrever uma carta de renúncia e a submeteu a alguns presidentes de federações estaduais mais próximos. Foi na casa dele, no Rio. Num certo momento, o então presidente da federação carioca, conhecido como Caixa-D?Água, rasgou a carta de Ricardo na frente dos outros. Disse que não aceitava a renúncia.

Mas Ricardo continuava disposto a largar tudo. Quem desempatou a parada foi o ex-presidente José Sarney, que falou com Ricardo ao telefone. Disse que ele entendia bem essas angústias do poder, que já tinha passado por isso e espertamente sugeriu:

- Olha, Ricardo, eu não estou pedindo para você não renunciar, não. Eu peço apenas para não fazer nada com a cabeça quente. Dê uns dez dias. Se no final você ainda estiver convencido, saia. Não muda nada?

Ricardo ficaria no cargo ainda pelos 11 anos seguintes.

Para tornar essa história ainda mais imprevisível, ganhou a Copa de 2002, embora tenha saído com um time desacreditado. Lembro que ele tomou um porre depois da final. E só dormiu com o dia clareando em Tóquio. Tombou na cama exaurido. Dormiu com o troféu da Copa do Mundo na cama.

Campeão do mundo, Ricardo começou a ser cortejado pelo governo. Ele achava, e com boa dose de razão, que uma parte considerável de seus pesadelos tinham sido de alguma forma estimulados pelo governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso.

O departamento de futricas, no caso eu, começou a espalhar que talvez ele não fizesse a escala da seleção em Brasília, no retorno ao país. Foi um deus que me livre. Era ano de eleição presidencial. Não parar em Brasília seria um estrago político. Até o presidente Fernando Henrique ligou para mim. Eu dei corda para a dúvida e disse:

- Presidente, o Ricardo não se sente à vontade para ir ao Palácio. Ele não se sente em casa.

Aperta pra cá, aperta pra lá, Ricardo topou ir. Foi decisivo o conselho de um amigo do peito dele, o então senador Tasso Jereissati, do mesmo partido do presidente FHC:

- Ricardo, seja magnânimo na vitória.

E ele foi. Do jeito dele.

No caminho para o Brasil, houve negociações intensas de protocolo. Ricardo era cabreiro. Em 1994, tinha chegado com o caneco do tetra na cabine, fez escala em Brasília, foi ao palácio e viu a festa ser estragada por uma ação da Receita Federal na bagagem da delegação, o chamado ?voo da muamba?, quando o time chegou ao Rio de Janeiro. Dessa vez, no penta, ele queria que o serviço alfandegário fosse realizado em Brasília, pra não dar chance ao azar. Vi o secretário da Receita Federal em pessoa, em 2002, cuidando do desembaraço das bagagens da seleção na Base Aérea da capital, onde o voo do penta desceu.

Cuidei pessoalmente de transmitir algumas exigências de Ricardo ao governo. Uma delas, inegociável: ele não queria papagaios de pirata na hora em que a seleção chegasse à capital da República. Ninguém. Apenas para que você entenda, num acontecimento midiático como a conquista da Copa, quando o avião da seleção chega ao país, as TVs transmitem ao vivo. Um dos ápices dramáticos é quando a porta do avião se abre.  Quem estiver na escada naquela hora pega uma carona no triunfo daquele circo todo. Participa da conquista, mesmo sem ter feito nada por ela. Combinei com a assessora de eventos e amiga íntima do presidente FHC, a publicitária Bia Aydar, que a seleção não ia ser recepcionada por ninguém. Bia sempre foi minha amiga querida. Sempre confiei totalmente nela.

Apesar da vigilância e do alerta todo da Bia, não á que, na hora em que o avião desce, com a escada encostada, o ministro do Esporte da ocasião e o número dois dele resolvem subir até o avião? Ricardo tinha pavor dos dois. A cena na televisão é meio patética: o avião da seleção termina o taxiamento, os dois sobem, a porta abre, eles entram um pouquinho e saem dali a pouco. O que o microfone não captou foi o recado de um jogador, tudo combinado com Ricardo:

- Ih, presidente, a gente não vai descer, não...

Os dois saem de fininho. Ricardo era turrão.

Foi aquela festa toda, os pentacampeões em caminhão aberto até o palácio, o povo feliz. A cambalhota do jogador Vampeta na rampa do Planalto virou história. Ele estava para lá de Bagdá, de tanta comemoração.

Mas os detalhes podem fazer toda a diferença nessas horas. Um deslize e a festa vira funeral. Tomamos nossas precauções naquele dia. Pelo protocolo, o ?gancho? oficial para os jogadores irem ao palácio era receberem uma condecoração das mãos do presidente da República. Condecoração que era devida também ao presidente da CBF. Agora, imagine o seguinte: o presidente da República na rampa do palácio, ladeado de ídolos idolatrados por uma conquista histórica, o microfone do cerimonial anunciando os nomes dos agraciados, a praça dos Três Poderes abarrotada de torcedores, muitos mamados, um sol desgraçado e, de repente, a voz anuncia o próximo da lista:

- Ricardo Teixeira, presidente da CBF?

De zero a dez, qual é a chance de uma vaia colossal? Bastava um gaiato puxar um ?uhhhhh?? e a multidão ia soltar a garganta. Manchete do dia seguinte? "Teixeira vaiado na festa do penta.? Resultado: Ricardo recebeu a comenda discretamente no gabinete presidencial. Já foi com ela no pescoço para a rampa. Seguro morreu de velho?

Ah, sim, um último registro. Só existe uma coisa mais volátil do que eleitor: torcedor. Eleitor muda de voto a cada eleição, torcedor a cada momento de uma partida. Naquele dia da volta do penta, depois de sair do outro lado do mundo, parar em Brasília, andar no meio do sol, ir ao palácio presidencial, a seleção ainda voou para o Rio, pegou um ônibus, circulou pelas ruas congestionadas para receber o carinho popular. Lá pela meia-noite, como o ônibus não conseguia andar tamanha a quantidade de pessoas, decidiu-se interromper o trajeto quando o cortejo estava na zona sul.

O ônibus foi apedrejado!

Não é que o ônibus foi apedrejado porque o Brasil perdeu a Copa, não é que foram apedrejados dez dias depois da conquista da Copa. Foram apedrejados no mesmo dia em que chegaram pentacampeões do mundo. Torcedor não perdoa.
 

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Mario Rosa

Mario Rosa é consultor de imagem, diretor da MR Consultoria, e jornalista formado pela Universidade de Brasília (UnB). Foi editor da revista ?Veja?, repórter do Jornal Nacional (TV Globo) e trabalhou também no ?Jornal do Brasil?. Venceu o Prêmio Esso por duas vezes. É autor de livros como ?A Era do Escândalo? e ?Reputação na Velocidade do Pensamento?. No marketing político, atuou e coordenou campanhas eleitorais no Brasil e na Argentina.

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