PARTE 3 de 5

Entre a Glória e a Vergonha

Memórias de um consultor de crises

Mario Rosa com exclusividade para o UOL

Entre a Glória e a Vergonha

Memórias de um consultor de crises

Foto: Alan Marques/Folhapress Foto: Alan Marques/Folhapress

BOLA PRA FRENTE

Caneco na mão e com a quinta estrela cerzida sobre o escudo, o jogo tinha recomeçado para Ricardo. Ele detestava os políticos do PSDB, os tucanos, a quem atribuía seus infortúnios políticos. Mas não tinha portas abertas com o provável candidato eleito, em 2002, o líder do Partido dos Trabalhadores, Luiz Inácio Lula da Silva. Foi chegando pelas beiradas.

Em 2002, eu já conhecia bem o então candidato a senador pelo PT do Mato Grosso do Sul, Delcídio do Amaral. Ele não era exatamente um petista. Fora inclusive do PSDB. Tínhamos nos aproximado quando ele era diretor da Petrobras no governo Fernando Henrique. De lá, saiu para disputar uma eleição improvável pelo partido da oposição, então nas graças do eleitorado, o PT.

Falei de Delcídio para Ricardo e combinamos de fazer um gesto, de certa forma até desproporcional: o primeiro lugar onde o troféu da Copa de 2002 foi exposto veio a ser Campo Grande, terra de Delcídio. Fizemos uma cerimônia na casa do candidato. Ricardo foi e levou o caneco, que ficou exposto um dia inteiro no quintal daquele lugar remoto do mapa político nacional.

Não era uma entrada pela porta da frente do petismo, mas era a disponível. Os dois se tornaram amigos pelos anos seguintes, muito antes de Delcídio ou qualquer um de nós supor que o futuro senador um dia se tornaria líder de um governo petista e delator judicial do regime do PT, vejam só, nos escândalos da Petrobras lulista. Quem poderia imaginar?

Ricardo, vazei para a “Folha de São Paulo”, declarou voto em Lula no segundo turno. Posicionou-se, mas a distância continuava glacial. O PT era o símbolo da ética na política, e Ricardo era estigmatizado, claro. Alguns conselheiros de Lula, já presidente, em 2003, atiçavam o presidente para que mantivesse o cartola brasileiro na geladeira. E assim ficou todo o primeiro ano do governo.

O ponto de inflexão aconteceu no início de 2004. O advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, muito amigo do todo-poderoso ministro José Dirceu, marcou um café da manhã em sua casa. Fui com Ricardo, Kakay já estava lá com Dirceu. O gelo foi quebrado.

Dirceu criou uma oportunidade política ao mencionar que era interesse do governo brasileiro realizar um jogo amistoso no Haiti, então devastado por uma crise social. Ricardo topou na hora. Foi marcado um encontro entre Lula e o cartola. Já no primeiro contato, Lula foi Lula. Pegou na perna de Ricardo, soltou um palavrão e ficou falando de futebol, uma de suas paixões. A conversa engrenou e, dias depois, o “jogo da paz” foi anunciado para Porto Príncipe, capital do Haiti.

Como filho bonito tem muitos pais, alguns do entorno de Ricardo saíram plantando na imprensa a paternidade daquela sacada magistral. Mas fui testemunha do que aconteceu. Dirceu foi o pai da ideia. Aceitamos de imediato, mas justiça seja feita a ele.

Fui com a seleção e Ricardo para a República Dominicana, país vizinho do Haiti na ilha espanhola, no Caribe, onde havia melhores acomodações para nossos craques. Ficamos lá uns dois dias. Estava com Ricardo quando o presidente Lula veio visitar o nosso hotel e ficou na sala dos jogadores. Brincou, tirou fotos, gravou rápidos vídeos. Dali em diante, a relação fluiu magnificamente.

No dia seguinte, pegamos um voo para Porto Príncipe. Os jogadores foram em cima de tanques das Nações Unidas. Eu também, logo atrás dos ídolos. A distância de dez quilômetros entre o estádio e o aeroporto estava coalhada por milhares e milhares de haitianos em festa. O percurso demorou mais de uma hora. Se o povo quisesse, tomava os tanques e sequestrava os ídolos. Não havia segurança capaz de evitar essa calamidade, tal era o mar de gente por todos os lados. A cidade estava destruída, o cheiro era intenso, a pobreza tocante, mas nada era maior que a euforia daquela massa.

O Brasil jogou e goleou o time da casa. Mas o povo vibrou do mesmo jeito. O jogo da paz fora um sucesso. Mundial.

O passo seguinte de Ricardo foi articular internamente para trazer a Copa de 2014 para o Brasil. Ele estava forte na Fifa e a Copa foi uma compensação de Joseph Blatter para que se sagrasse candidato único em sua própria sucessão. Ricardo e Blatter tinham muitas afinidades. A maior delas é que, quando tinham uma conversa realmente séria, falavam em francês

Lá por 2007, o projeto embrionário da Copa no Brasil começou a se tornar irreversível. Em 2008, ele me nomeou diretor do Comitê Organizador da Copa, Era responsável pelas relações institucionais e só me reportava a ele. Participei de todas as conversas dele com todos os governadores, prefeitos, ministros e o presidente da República nesse período. Viajamos o Brasil todo, com grande cobertura de mídia.

As relações de Ricardo com a rede Globo, antes fraturadas, já haviam sido recompostas com uma engenhosa articulação comandada por ele. Forte como estava na Fifa, a emissora brasileira só poderia recorrer a ele para solucionar um problema milionário. É que a Globo havia comprado e pago com antecedência os direitos de transmissão para as Copas seguintes da agência credenciada pela Fifa, a ISL. Mas a ISL havia quebrado e a Fifa não era necessariamente obrigada a reconhecer essa transação. Ricardo trabalhou duro e fez a Fifa reconhecer o negócio. Isso tirava uns 200 milhões de dólares de negativo do balanço da Globo, um número estratosférico então, já que a empresa devia dez vezes isso. Com uma única tacada, Ricardo transformou em pó 10% do debito da empresa.

Logo depois, foi recebido pela família Marinho num jantar formal na chamada Casa dos Flamingos, onde vivera o patriarca e fundador do império.

Os problemas do passado eram página virada.

Ricardo adorava políticos, mas ainda não estava com jogo de cintura para tratar com tantos deles, de tantos lugares. Eu ajudava nesse meio de campo. Lembro que fomos ao Recife onde o então governador, Eduardo Campos, queria e precisava que a capital fosse uma das sedes da Copa. Estava com Ricardo no hotel, o governador ligou e Ricardo ainda hesitou. Não esquecia que Campos fora um dos seus algozes mais contumazes na CPI da Câmara, anos antes. Ele me disse:

- Acho melhor eu não ir.

- Presidente, vá. O senhor não tem nada a perder.

Fomos para a ala residencial do Palácio das Princesas, sede do governo do estado. Campos nos recebeu com uma garrafa de uísque na mão e foi logo pedindo desculpas:

- Ricardo, eu errei muito com você, eu era jovem, mas agora quero fazer tudo direitinho.

Eles ficaram horas, até a madrugada. Entornaram outras garrafas. Saíram bêbados e aliados.

Continuei seguindo Ricardo em todos esses convescotes. À medida que foi se acostumando a conversar com tanta gente importante, foi pegando o traquejo.

Participei de todas as conversas dele com Lula. Certa vez, Lula quis demonstrar gentilmente que poderia ajudar na conquista da Copa, através da diplomacia.

Atalhei, de maneira abrupta:

- Essa questão vai ser resolvida dentro da Fifa. Ricardo é o único eleitor. Diplomatas não têm nenhum voto.

Eu era abusado.

Viajamos todas as cidades-sedes candidatas, sempre com alto grau de cobertura das TVs, inevitavelmente a favor. A notícia era boa mesmo.

O fato é que Ricardo ganhou musculatura, a maior desde que começara na cartolagem. E começou também a se permitir certas regalias. Compraria um avião privado para a CBF apenas para seus deslocamentos -- quando o conheci, nas CPIs, andava ainda de avião de carreira. Depois veio um helicóptero biturbinado. Uma Mercedes blindada.

Em 2009, decidi tirar um ano sabático em Nova York para me preparar melhor para o desafio. Ricardo concordou, mas acho que não gostou da distância. Fui assim mesmo.

Um dia, em Nova York, marcamos de nos encontrar no restaurante Peter Luger, no Brooklin. Saí da aula e segui com a roupa que estava: uma mochila, uma camiseta e uma sandália. Era julho e o tempo fica abafado na cidade. Eu era da família. Ao chegar, estavam lá apenas sua então mulher, Ana, e sua filha Antonia. Ana eu conhecera alguns anos antes, quando engatara com ele, menina modesta que viera de Campos dos Goytacazes, interior do Rio. Devia ter uns 20 e poucos, mas eu sempre a chamei de dona Ana. E ela nunca contestou. Naquele dia, ela me recebeu de forma brusca:

- O que é isso? Olhando para as minhas havaianas.

- Calor, dona Ana.

Ela repetiu:
- O que é isso?

Eu respondi:
- Verão, dona Ana.

Ficou com a cara emburrada pelas horas seguintes. Ricardo ficou calado. Mas, eu sabia, quando calava, falava.

O fato de não ter dito “que é isso, Ana, você não sabe como o Mário é?” significava que apoiava a manifestação da esposa. Significava que, se ele havia se ordenado rei, devia à moça um tratamento de rainha.

Saí dali desconcertado e fiquei encafifado.

Era aceitar a nova ordem ou cair em desgraça. Mas conhecera um Ricardo frágil e nossa amizade havia se firmado justamente na presunção de que não podia ficar cheio de dedos com ele, para o bem dele. Já tinha muita gente subserviente ao redor. Agora, ele propunha uma mudança no jogo. Se eu precisasse daquilo, talvez topasse. Mas não precisava.

Me divertia mais do que ganhava financeiramente. E minha relação única com ele era o grande diferencial para me manter conectado. Num dos auges das CPIs, lembro que gritei e o xinguei, numa ida para o aeroporto de Brasília. Não tenho orgulho desse rompante. Mas ele engoliu a grosseria e isso serve para mostrar a conexão que havia.

Noutra ocasião, na véspera do anúncio do Brasil como país-sede da Copa de 2014, jantamos com o então governador de São Paulo, José Serra, num restaurante em Zurique. Havíamos definido que a Copa não poderia ter um viés partidário. Não poderia ser de um partido, sobretudo do PT, que comandava o país. Então, fomos fazendo gestos para o lado da oposição. Batalhei muito para que o governador de São Paulo, o maior símbolo da oposição, estivesse no evento de anúncio do Brasil como sede. Ficou combinado que ele sairia do país, atravessaria o Atlântico, mas teria de ter um lugar de destaque na foto do evento. Combinei isso com Ricardo. Ele topou.

Na hora H, aquela gentarada toda, Brasil anunciado, presidente da República, ministros, governadores, mídia pra todo o lado e noto que o governador de São Paulo está numa cadeira do auditório, meio de lado. Eu atravesso aquele burburinho, vou até Ricardo e lembro a ele:

- Presidente, o governador Serra.

Ele me olha com cara de bravo:

- Tô ocupado!

Eu olho fixamente nos olhos dele e urro:

- Não fale assim comigo.

Ato continuo, trago o governador para a foto ao lado de Ricardo e dos demais. Tudo isso acontecia com muita naturalidade. Fazia porque era o melhor para ele. Essas relações têm de ter uma sincronia perfeita. E, se não podia ficar desafiando à toa por mera vaidade, também não podia ter medo. Nas crises, é preciso falar o que é necessário e não só o que é lisonjeiro. Já estava acostumado e essa era a base de minha ligação com ele.

Um jornalista amigo meu me lembrou, quando estava escrevendo este livro, como o apresentei a Ricardo, lá pelos idos do ano 2000. Era tarde da noite e Ricardo estava numa mansão que a CBF tinha na capital da República:

- Presidente, este aqui é o Fernando Rodrigues. Ele acha que o senhor é ladrão…

Fazia essas coisas meio por irresponsabilidade, meio por estilo, meio para quebrar o gelo e aproximar as pessoas. Fiz barbaridades como essa com vários indivíduos. Hoje, não me orgulho tanto. Acho que tinha um pouco de vaidade, de crueldade. Mas funcionava. Em geral, era tão surpreendente que todos relaxavam.

Terminei meu sabático em dezembro. Tinha ido justamente para me preparar para os cinco anos seguintes em meu papel no comitê da Copa. Mal voltei ao Brasil, em janeiro, e comecei a me defrontar com um desfecho imprevisível: talvez eu tivesse que me mandar daquilo tudo, embora tivesse acabado de chegar de um ano de preparação para o novo desafio. Coerência zero, mas percebi Ricardo diferente. A rigor, não houve nada, nenhum episódio. Foi tudo na intuição.

Um mês e pouco depois, pedi que almoçássemos juntos. Ele foi. Usando a assinatura do psicopata que existe dentro de mim, fui de camiseta e sandálias. A mesma roupa daquele almoço em Nova York. Disse que estava saindo, em caráter irrevogável.

- Olha, Ricardo, a Ana é minha amiga. Entre amigos, se um faz ou fala uma bobagem, toma um fora e encaixa. Mas, se é a mulher de meu chefe que fala uma bobagem, tenho que respeitar. Só me tornei diretor desse comitê da Copa porque somos amigos. Daqui a pouco, não seremos nem amigos, nem parceiros de trabalho. Foi por isso que decidi sair.

Ele ficou calado. E calado falava. Entendi que tínhamos chegado ao fim.

Sou eternamente grato por tudo o que me ensinou. Mas nunca mais falei com ele.

Foto: Luiz Costa/Hoje em Dia/Folhapress Foto: Luiz Costa/Hoje em Dia/Folhapress

ESCÂNDALO MEU

O caso policial nebuloso em que eu estava envolvido se chamava Operação Acrônimo. Basicamente, a polícia apurava suspeitas de corrupção envolvendo o então ministro da Indústria e Comércio do governo Dilma Rousseff, Fernando Pimentel.

Muito antes do caso existir, eu cruzara com Pimentel algumas vezes por causa da Copa do Mundo no Brasil. Tinha estado com Pimentel numa das centenas de cerimônias públicas de que participei. Aperto de mão e nada mais. Anos depois, eu o conheci -- ou melhor, ele me conheceu, pois era homem público e conhecido havia muito tempo. Desconhecido era eu.

Claro, foi por causa de um escândalo. Na campanha presidencial de 2010, ele foi derrubado da coordenação geral depois que surgiu uma denúncia de que havia um escritório da campanha especializado na produção de dossiês. Ele caiu, continuou na disputa por uma vaga de senador em Minas Gerais, em que foi derrotado pelo ex-presidente Itamar Franco.

Meses depois, com a presidenta já eleita, mas ainda não empossada, recebo a ligação de minha amiga, Daniele Fontelles, para que fosse a uma reunião com Pimentel. Devia ser ali por novembro de 2010. Ele estava cotado para assumir algum cargo no governo e tinha algum receio daquelas denúncias da campanha serem ressuscitadas de alguma forma e criarem algum embaraço político. Botei ele na cota do SUS e fui até lá.

Na reunião, estava também uma jovem assessora de imprensa, Carolina Oliveira. Muito antenada. Tinha trabalhado com ele na campanha e talvez viesse com ele, em caso de indicação. Era mais uma conversa em minha vida: o leão ferido vinha, mostrava as feridas, eu olhava, fazia alguns diagnósticos, recomendava alguns remédios e seguia para a jaula seguinte do dia.

Pimentel foi nomeado e eu e Carolina começamos a nos falar de vez em quando: eu era o consultor mais velho, e ela, uma profissional jovem, cheia de gás. E isso foi pelo ano de 2011 inteiro. Pimentel, ministro, sofria algumas acusações – e ela ligava pedindo conselhos de como responder para a imprensa. Trocávamos telefonemas, eu dava alguma dica  para a crise da ocasião e foi indo. Eu admirava muito a garra dela. Ela já tinha trabalhado na maior agência de comunicação do país, já tinha estado no epicentro de uma campanha presidencial, já tinha participado de uma eleição de senador (perdedora, em que sempre se aprende mais) e já estava como assessora de imprensa de um ministro de Estado. Ela me parecia dedicada.

Lá pelo fim de 2011, um dia, ela me liga e diz que estava pensando em sair do governo. Combinamos de conversar. Ela me contou que havia muitos boatos sobre algum tipo de envolvimento emocional entre ela e o então ministro. Claro, já ouvira esse zum-zum-zum também. Mas, na Corte, respiram-se boatos e oxigênio, nessa ordem. Então, não dava muita bola. Como dizia Ibrahim Sued, noutro de seus bordões sensacionais, “em sociedade, tudo se sabe”.

Nas poucas vezes em que estive com ambos juntos, comportavam-se ate então como assessora e assessorado. Sem toques, sem nenhuma intimidade além da profissional, na frente de terceiros. Como ela era jovem e tinha um acesso muito próximo a ele, os boatos pululavam. Pra mim, tanto fazia. Achava ela esperta, bem-informada, uma pessoa a mais com quem estar conectado nessa grande rede neural de percepções que compunham o meu SUS e o meu dia a dia profissional. Eu era útil para ela, sobretudo meus cabelos brancos. Ela era útil para mim, pois podia às vezes ter uma percepção mais refinada entre o que era o lugar-comum dos boatos e consistência etérea dos fatos bastidores.

Nos encontramos e ela disse que não queria mais ficar para não passar constrangimentos. Eu falei que tudo bem e que ela contasse comigo. Ela me disse que estava pensando em abrir uma empresa de assessoria de imprensa e se virar. Eu disse que, quando tivesse tudo arrumadinho, em termos de documentos, ela me avisasse. Assim como fiz com dezenas de jornalistas que saíram da profissão e foram para o mercado ao longo do tempo, disse a ela que poderíamos trabalhar juntos em algum caso. Um dia...

O tempo passou, dezembro, janeiro, fevereiro e ela um dia me avisa que a documentação da empresa já estava pronta. Falei que ia encaixá-la em algum trabalho. Assim, meio simpático. Estava no meu auge profissional naqueles anos. Estava bombando. Depois de mais uma década trabalhando nas crises do futebol, com Ricardo Teixeira e o sobe e desce da seleção brasileira, tinha arranjado desde 2010 tempo livre para rodar a catraca. O futebol não me dava muito dinheiro e tomava muito do meu tempo. Quando fiquei com tempo livre, passei a entender melhor o que queriam dizer com a expressão tempo é dinheiro. Passei a faturar mais porque passei a ter tempo disponível, a cobrar melhor e a ter mais clientes de crise de altíssimo padrão, do meu ponto de vista, claro. Enquanto isso, o SUS continuava a toda.

Sempre achei que consultores são como um beija-flor. Eles não produzem o pólen. Eles pegam o pólen de uma flor e o levam para a outra. Ou seja, na maioria dos casos, eu é que aprendia com os meus cadáveres de reputação, as minhas flores. E usava esse aprendizado, de forma adaptada, para outra situação, com outro personagem. E assim por diante. Portanto, quanto mais flores eu tocasse -- no caso, pessoas em desgraça pública --, mais pólen eu poderia carregar. No final das contas, consultores servem também para equalizar as práticas na floresta do mundo corporativo, levando de uma organização para outra as soluções que umas e outras encontraram de melhor. É um equalizador de melhores práticas.

Carolina vinha a calhar: embora jovem, tinha estado em posições de destaque . Já tinha vivido o poder por dentro. Era uma pecinha bacana no meu tabuleiro. Por que não usá-la? Atendia todo o mundo no SUS, mas só quem pagava as minhas contas eram os poucos -- e caros -- clientes privados de quem cobrava. Jamais trabalhei para governos, repito, sejam estaduais, municipais ou federal. Seja na administração direta, seja na indireta. Jamais trabalhei para empresas estatais nos três níveis. Jamais recebi dinheiro de agências de propaganda ligadas a contas de governo. No século 21, jamais recebi dinheiro de campanhas políticas. Era 100% privado. Dinheiro público zero.

Das 30 empresas com que trabalhei entre 2010 e 2015, a maioria delas gigantes, em casos cabeludos, como veremos, a empresa de Carolina me atendeu em dois deles. Ela recebeu 5% do meu faturamento quinquenal ao longo dos 30 meses em que me serviu. Cinco por cento da minha grana e 2 em 30 dos meus clientes. Era nessa proporção que via a Carolina. E não é que daí é que viria a maior confusão?

Houve questionamentos sobre o valor que minha empresa pagou à empresa dela, ao longo desses 30 meses -- não 30 dias nem 30 semanas: 30 meses. Para entender isso, era preciso primeiro ter como premissa que essa foi a maior guerra de comunicação, em termos de despesas e contratação de profissionais, que jamais existiu no Brasil. Era preciso também ter como referência o momento estratosférico de minha vida profissional. Comparado com o salário médio de um brasileiro, os valores pagos a Carolina podiam ser considerados altos, sim. Comparados com meu próprio ganho, porém, representavam apenas 1 de cada 20 reais que ganhei nos cinco anos de meu apogeu profissional. Era dinheiro privado, declarado, tributado e para serviço efetivamente prestado. Não via problemas?

Apenas para você ter uma ideia do momento fora da curva e a maneira fora da curva com que eu lidava com as coisas: paguei ao meu contador naquele período 1 milhão de reais. Oficialmente e tributariamente documentado. Dinheiro demais para um contador que emitia cinco, seis notas por mês? Talvez. Mas, olhando do meu ponto de vista: era o cara que sabia cada detalhe de minha vida, que tinha de recolher todos os impostos e fazer tudo correto. Já imaginou ele me vendo ali bombando, sabendo do meu momento profissional e eu tendo de confiar nele totalmente? Defini então um prêmio anual, além de um fixo razoável por mês. No final de um quinquênio, deu sete dígitos somados. Não era meu dinheiro? Quanto valia pra mim ter a segurança de que podia contar com a confiança de meu contador? Aliás, Evaldo fez tudo certinho e isso foi muito importante para mim.
Uma das jornalistas mais perfurocortantes que conheci, a Malu, me disse assim:


- Você precisa explicar a contratação da Carolina...


Tá bom, Malu, lá vai...
Afinal de contas, como explicar por que contratei Carolina? Primeiro, porque ela era procurada o tempo todo por jornalistas econômicos e da politica de primeira linha. E por que eles a procuravam? Porque tinha sido assessora de imprensa de um ministro e, assim, se tornou conhecida e conheceu todos eles. Mas é claro, óbvio, ululante, que a proximidade dela já fora do governo com o então ministro de Estado fazia com que fosse acionada por jornalistas que a consideravam uma “fonte” muito bem informada. Bem informada por quê? Pela proximidade com Pimentel e, a partir de 2012, pela relação pessoal que os dois passaram a assumir publicamente. “Todos” sabiam disso nos bastidores. Por isso, ela era uma baita fonte.

Exatamente por ser uma “fonte” de jornalistas, o fato é que Carolina era uma interlocutora estratégica para qualquer batalha de comunicação: os jornalistas a consideravam “neutra” sobretudo em relação aos assuntos que não tinham diretamente a ver com o ministério. Como ela não era agente público, por que não contratá-la para difundir e checar informações do interesse de um cliente meu, sem que a imprensa a associasse diretamente a ele? Ela ajudava a saber o que a imprensa estava pensando e a espalhar boatos que eram bons que circulassem na imprensa. Por que não?

Carolina era uma grande checadora de informações junto à imprensa. E também disseminava temas que eram de interesse estratégico para influenciar o noticiário. Eu e ela fizemos dezenas e dezenas de interações desse tipo. Trocamos centenas de ligações no período de nossa relação de trabalho, documentadamente. Mantivemos incontáveis contatos pessoais, nos quais podíamos falar com segurança sobre as questões do caso. Claro, tivemos reuniões com nossos clientes, inúmeras. Era um atendimento especial, num caso especial.

Eu alertava um repórter ali, ela de lá, as informações coincidiam e pimba: a notinha emplacava. Eu precisava checar algum rumor dos bastidores e ela acessava repórteres fundamentais que não sabiam que, na verdade, era uma checagem para um dos lados do conflito. Através dela, eu atendi a um cliente que se sentia seguro de poder checar com precisão -- e com discrição -- se uma intriga publicada ou disseminada era ou não verdade, quem podia estar por trás dela. Com isso, qualifiquei meu próprio atendimento. E ainda ficava com tempo livre para atender meus outros clientes, em que atuava sem ela. Ou seja, na minha cabeça, o meu cliente estava pagando para que eu pudesse atendê-lo melhor, com o reforço de uma jornalista de minha confiança.

Ao longo de 2012, Carolina e o então ministro Pimentel resolveram assumir publicamente um romance. Ele se separou e eles passaram a namorar. Todo o mundo em Brasília tem algum tipo de ligação com alguém. Eu diria que todo o mundo no mundo tem alguma relação com alguma coisa. No meu caso, isso era indiferente.

(No caso Ambev, o controlador da companhia, Marcel Telles, era um dos nossos trunfos de comunicação. Ele tinha sido membro do conselho de administração da editora Abril anos antes da transação com a Interbrew e ajudara a empresa a desenhar soluções estratégicas em momento importante. Era conhecido pela alta cúpula da editora por suas excepcionais qualificações empresariais. Definitivamente, isso não era uma vulnerabilidade do ponto de vista de convencimento das publicações da editora. A história de qualquer pessoa conta. Sempre. Em qualquer lugar. De alguma forma.)

A relação dos dois foi se consolidando. No começo de 2014, ele sai do ministério, vira candidato a governador de Minas e vai para uma eleição fadada à derrota. Afinal, o mineiro Aécio Neves seria candidato à Presidência da República. Quem imaginava que ele fosse perder justo em casa? Os próprios aecistas diziam que ele sairia de Minas com 3 milhões de votos de vantagem.

Resumo da ópera: Pimentel ganha, vira governador em 2015 e resolve casar com Carolina em abril daquele ano. Eu não tinha contratado uma primeira-dama. Contratei a empresa de uma jornalista para ajudar meus clientes em dois casos pontuais. De repente, Carolina virou uma coisa enorme: era primeira-dama de um Estado importante, assim como já haviam sido figuras grandiosas como dona Risoleta Neves e Sarah Kubistheck. Quem poderia imaginar?

Pois, em maio de 2015, na esteira da Operação Acrônimo, fazem uma busca e apreensão na casa da então primeira-dama de Minas. Era o apartamento alugado em nome dela e frequentado também pelo então governador. Vão lá, levam documentos, entre eles o talonário de notas da empresa dela emitidos para a minha empresa entre março de 2012 e outubro de 2014, quando ela não era servidora pública, primeira-dama nem nada.

Suspeitaram que o dinheiro que minha empresa pagou pelos serviços dela, através da empresa dela, fosse alguma forma de mutreta. É como se dissessem que eu tinha virado comparsa de dona de dona Sara ou de dona Risoleta.

Meu nome entrou no radar. E o resto você já sabe. Foram bater lá em casa. Pois minha casa era sede de minha empresa, algo permitido pela lei. Teoricamente, então, foram à sede de minha empresa, e não à minha casa.

A hipótese era que eu , tivesse sido uma espécie de “operador” de recursos do BNDES para empresas privadas. O BNDES era subordinado no organograma ao ministério de Pimentel. Então, suspeitaram que os pagamentos a Carolina fossem de alguma forma propina. Ai meu Deus...

Nunca fui ao BNDES em toda minha vida. Poderia ter ido, isso não é ilegal. Mas por sorte nunca fui. Nunca liguei pra lá, não conhecia ninguém que trabalhava lá. Jamais recebi recursos do BNDES. Então, era tudo muito absurdo.

Tinha lidado com reputações leprosas o tempo todo. Poderia ter sofrido uma infecção social de inúmeras maneiras. Mas justo dali?

Foi ali que comecei a viver o grande momento de minha maturidade. Foi ali que pude experimentar, numa dose bastante suave comparada com as tragédias dos outros que eu vivi de perto, o que é realmente estar na mira do laser. Sentir, sentir. E não só pensar.

Foi aí que eu pude conectar uma porção de coisas que havia vivido e dar a elas um sentido razoavelmente comum. Este livro é uma tentativa de compartilhar um pouco disso com você, talvez apenas para entretenimento seu, talvez sobre alguma coisa que você possa adaptar e utilizar na sua vida ou talvez sirva apenas para você ver como funcionava uma parte desse iceberg chamado escândalo, quando eu o habitei.

Aqui não está um boçal cheio de frases feitas ditando regras, de cima para baixo. Aqui está um cara que viu uma porção de coisas e que as colocou em perspectiva, quando sofreu um beliscão.

No dia em que aquela jornalista da “Folha de S.Paulo” me arrancou uma entrevista que eu tecnicamente não deveria ter dado, mas que existencialmente foi um alívio, eu tentei descrever a ela como enxergava a minha atividade. Para variar, com uma metáfora.

Acho que eu fui uma espécie de carteiro trabalhando nos Correios na faixa de Gaza. No meu caminho diário do trabalho, como carteiro, cruzava com bombas caindo, caminhões explodindo, mísseis, rajadas de metralhadora. Vivia num campo minado, mas não era terrorista, inimigo, não era da CIA, nem de de Israel, nem palestino. Era só um carteiro trafegando na faixa de Gaza. Sabia que um dia poderia sobrar uma bala ou um tiro de canhão perdido. Por isso, tomava muitos cuidados e sabia que um dia um tijolo poderia cair em minha cabeça e eu jamais saberia de onde veio. É, partiu mesmo do lugar menos esperado...
 

Photo:Alexandre Meneghini Photo:Alexandre Meneghini

CACHORRO GRANDE

Meu SUS era coalhado de gente, mas o meu plano de saúde, para os meus efetivos clientes, era uma pedreira. Eram esses que pagavam meu sustento. Poucos, mas com muitos problemas. Não pagavam mal.

Tive o privilégio de viver crises empresariais, bem no epicentro delas, atendendo quase que exclusivamente donos. Presidentes de empresa, assim no sentido de executivos profissionais, só de vez em quando. O leque de sofrimentos alheios que eu acessava nos meus atendimentos gratuitos me ajudava muito a tratar meus pacientes de verdade. Todos eram de verdade, gente de carne e osso. Mas o “de verdade” aqui é no sentido de que eram esses que me pagavam. Tinha obrigação de servi-los e, na medida do possível, ser útil.

Lá pelo fim de 2011, fui procurado pelo dono de um robusto império que acabara de surgir. O empresário Marcos Molina era dono da Marfrig, um dos maiores frigoríficos do país. A Marfrig era patrocinadora oficial da seleção brasileira, um olimpo do marketing para qualquer empresa. Marfrig queria dizer Marcos Frigorifico: Mar-frig. Ele tinha começado num açougue, junto com a mulher Marcia, no interior de São Paulo. Vendia carnes com cortes especiais para restaurantes da elite. Foi indo, indo, indo, pegou a carona do milagre dos anos Lula e virou um megabilionário. A Marfrig chegou a ter o valor de… bilhões de dólares.

Molina usava um disfarce matador, sobretudo pros incautos: tinha cara de bobo, falava que nem caipira e caprichava para errar uma concordância. Nem sempre conseguia. Os que cruzavam com ele o subestimavam. Mas era uma águia. Naqueles tempos, ele estava sofrendo um ataque especulativo empresarial bastante sofisticado. É o que chamam de “shorteamento” de ações. Alguém no mercado financeiro começa a apostar que uma empresa com capital aberto em Bolsa vai quebrar, espalha isso o máximo que pode, tenta convencer os outros de que está certo e pimba: se a profecia se realiza, quem apostou contra a empresa arrebenta a boca do balão.

Era sob esse ataque que estava a Marfrig. Molina me contratou para contra-atacar. Trabalhei para a empresa entre novembro de 2011 e outubro de 2012. Doze meses fechados. Cobrei a minha bandeirada. O caso era bom. Em resumo, um site de análises econômicas estava descendo a borduna na Marfrig. Semana sim, outra também. Previa o fim da empresa (o que, passados cinco anos quando escrevo este livro, a propósito, não aconteceu).

A internet não estava ainda na pré-história, mas tinha um certo ar charmoso de mistério, principalmente para os jornalistas. Era como se fosse um depositário de informações assim meio que misteriosas. Então, a campanha do site contra a Marfrig tinha, como teve, o potencial de contaminar a empresa junto aos “formadores de opinião”, uma casta abstrata formada por colunistas econômicos, editores de cadernos de finanças, comentaristas. O site vazava uma avaliação aqui ou ali, isso circulava, fisgava o formador de opinião (que publicava), daí o site repercutia e a engrenagem girava. A empresa que se virasse. E se virou.

Fui contratado para pôr em dúvida a imparcialidade do site, na época. Alguns colunistas e editores estavam entrando naquela armadilha e fazendo o jogo da especulação. Só que, no meio do caminho, a Marfrig descobriu que o mesmo site que publicava aquelas coisas tinha como um dos donos o controlador de um fundo de investimento, vejam só, que estava apostando pesado contra a empresa. Depois ele deixou de ser dono do site, mas na época dos ataques havia esse questionamento de conflito de interesses. Bem depois, as autoridades acabariam punindo o autor daqueles ataques à Marfrig.

Como muitas vezes fiz, chamei uma assessoria de imprensa para servir exclusivamente de balcão para aquela crise. Empresas muito especializadas tendem a se comunicar no dia a dia com o seu trade. No caso da Marfrig, os fornecedores, as publicações voltadas para a pecuária. Quando uma crise eclode, a empresa sofre o que chamo de deslocamento de caderno: deixa de falar com quem sempre falou na mídia e passa a ser tratada por gente que não a conhece, não é do ramo e provavelmente está com a pulga atrás da orelha.

Então, é sempre bom separar a comunicação do dia a dia e reforçar os canais com o tipo de jornalista que vai tratar desse assunto. Por isso, tínhamos um balcão para o dia a dia da empresa e outro apenas para tratar do problema. O disfarce de Molina em sua simplicidade, nesse caso, atrapalhava um pouco, já que os jornalistas que tinham contato com ele a primeira vez achavam que ele não era, assim, nenhum Steve Jobs. Ele não era um bom empresário porque tinha as manhas de como falar com a imprensa, ele era um bom empresário porque era.

Passamos um ano numa guerra danada. Uma nota aqui, uma fofoca acolá. Nos bastidores, eu e a assessoria de imprensa especializada íamos criando o antídoto, mostrando que o site não era assim tão imparcial, que tinha seus interesses etc. e tal. No meio dessa guerra, arranjei uma pontinha do meu contrato para a Carolina. Ela foi superútil. Como acabara de sair da área econômica do governo, era procurada o tempo todo por gente de primeira linha nas redações. Contratei ela para espalhar brasa pro nosso lado e contra os adversários. Como ninguém na imprensa a associava diretamente a nós, embora ela não estivesse mais no governo, era um bom jabuti para colocar na árvore do noticiário.  
Outro ponto forte é que os controladores da empresa, com um pé atrás danado com tudo e todos, como era natural, viam no perfil dela uma qualificação extra: quem já tinha sido do governo jamais ficaria vazando coisas à toa apenas para fazer um afago num amigo de redação. Ela era confiável, o que numa crise não é pouco. Jornalistas não são de guardar segredos (e este livro, de alguma forma, confirma isso até mesmo para um velho como eu). Carolina era boca fechada. E isso, além da competência e das conexões de imprensa dela, tinha um grande valor.

A ciranda do noticiário econômico funciona um pouco assim: alguém descobre um “tema", um ângulo, uma particularidade, faz uma reportagem e outros, quando repercutem, reconhecem a importância do tema e tentam avançar. Como muitas vezes acontece nessa batalha midiática, estabelece-se uma gincana: um tentando conseguir a prenda (o furo, a novidade) antes do outro. Desencadeadas essas engrenagens, o processo ganha pernas próprias. O que o site estava tentando fazer, e de certa forma fez com algum sucesso, era jogar essa pedra no lago para criar um maremoto.

A muito custo, apanhando bastante, sofrendo reveses, com o tempo fomos saindo do canto do ringue. Guardo ainda as dezenas, dezenas e dezenas e dezenas de mensagens trocadas com Molina, seus executivos, enfim todo o mundo envolvido no caso. Achei a Carolina jeitosa. Quem sabe não chamava ela de novo?

Aquele ano estava sendo demais. Nunca tinha lidado com confusões tão sofisticadas. Tinha sido treinado, ao longo dos anos, para a briga de rua. Agora, estava praticando esgrima. Numa linguagem mais chula, saíra da calçada e estava batendo ponto na boate.

Normalmente, os leões feridos que eu atendia haviam sido abatidos pelos caçadores de sempre: promotores, parlamentares em CPI, delegados. Naquela fase em que a economia do Brasil estava causando, comecei a ser chamado para conflitos não entre instâncias oficiais e empresas, mas contenciosos entre as próprias empresas.

Foi assim que tive de interromper umas férias em Miami, em julho de 2011, para vir às pressas ao Brasil para conversar com um ícone do meu tempo, o empresário Abilio Diniz.

O rei do varejo, como era conhecido, se convertera em lenda por méritos próprios. Transformara um pequeno comercio de origem familiar na maior rede de supermercados do Brasil. Alguns anos antes, em 2005, vendera o controle de sua máquina de vendas para um investidor baseado na França, Jean-Charles Naouri. Pelo acordo, recebera uma bolada bilionária em dólar e teria de passar o bastão de controlador… para seu colega francês.

No dia 28 de junho daquele ano, Abilio surpreendeu a todos com um lance ousado: anunciou que iria obter recursos do BNDES para formar uma empresa nova. Essa empresa se somaria às forças de todo o grupo Pão de Açúcar com o dinheiro do governo e, juntos, eles passariam a ter uma posição de destaque no board mundial do Carrefour.

A equação era simples: Pão de Açúcar + dinheiro do BNDES = um pedaço do Carrefour mundial.

Na prática, Jean-Charles Naouri ia ficar chupando o dedo: nesse arranjo, o dinheiro que ele tinha pago pelo controle do Pão de Açúcar ia virar fumaça e ele seria dissolvido, tornando-se minoritário de uma heterodoxa sociedade entre o dinheiro público e um empresário que havia vendido sua empresa.

Como o Brasil estava se achando, essa ideia de criar uma multinacional verde-amarela das gôndolas tinha seu apelo. O governo era nacionalista, coisa e tal. Podia colar. O ex-ministro da Casa Civil, Antonio Palocci, descobriu-se muito depois, havia prestado uma consultoria milionária para Abilio no ano anterior. Embolsara 6,5 milhões por um trabalho de poucos meses, antes de assumir função central na administração federal. O próprio Abilio era membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico, o Conselhão, um fórum com sede no Palácio do Planalto. Abilio tinha trânsito total no coração do governo.

Apesar de toda a credibilidade e o respeito que Abilio despertava, a operação anunciada por ele foi impiedosamente bombardeada por todos os lados. A imprensa, então, ficou enfurecida. A oposição estraçalhou a iniciativa. A crítica, central, é que o governo estava querendo usar dinheiro público para criar um novo “campeão nacional”, que era invasão do Estado na seara privada, que o BNDES tinha que gastar dinheiro com outras prioridades. A lista de objeções era grande.

Jean-Charles Naouri também se abespinhou. Disse que era uma tomada de posição indevida do governo e que o resultado prático da operação era colocar dinheiro público para ajudar um empresário, no caso Abilio, a não cumprir um contrato que havia assinado. Naouri disse que não aceitava embalar aquele bebê de Rosemary de jeito nenhum.

Diante da gritaria geral, o BNDES (através de sua empresa de participações, a BNDESpar) anunciou no dia 12 de julho que o negócio estava morto. O governo voltou atrás de forma oficial e definitiva.

Foi só depois disso, às 11 horas e sete minutos do dia 14 de julho, que eu recebi uma mensagem por e-mail da suave e habilidosa filha de Abilio, Ana Maria. Ela me convidava para ir a São Paulo. Expliquei que estava fora do país e que poderia fazer um bate e volta. Combinamos o encontro para o dia 20 de julho, ao meio-dia. Avisei, antes de ir, que, por um dever de lealdade, tinha de informar que havia sido procurado por um executivo do Casino. Não havia estado com ele ainda. Ana Maria disse que tudo bem.

Encontrei Ana Maria e Abilio na sede da holding familiar, a Península. Ficamos os três durante algumas horas. Uma coisa muito intimista, numa salinha pequena. Abilio, realmente um gigante. Ana, uma dama muito atilada.

Voltei para Miami com uma saborosíssima banana para descascar: Abilio ou Casino?

Era uma situação única em todos os meus tempos de consultor. Na prática, teria de arbitrar qual grupo escolher, fazer uma espécie de julgamento antecipado, pois aquele caso apresentava posições de comunicação tão cruciais que teria de assumir qual das duas eu me sentiria mais confortável para defender.

Síntese dessas minhas reflexões foi o e-mail mandado para Ana Maria Diniz às 15 horas e 27 minutos do dia 24 de julho, quando já estava de volta a Miami. Começava agradecendo pelo privilégio de ter estado com aquele ícone, Abilio, como também por ter contado com a gentileza daquela grande dama, Ana.

A partir desse ponto, discorri um pouco mais sobre mim mesmo e sobre como enxergava o exercício de minha atividade.

Disse que social e economicamente minha missão seria sempre a de defender o status quo.

(Eu não era um lacaio?)

E onde a defesa do status quo parecia mais nítida para mim naquele caso? Embora a associação de um grande empresário brasileiro a uma gigante internacional do varejo fosse um feito notável; embora o formato oficial de aporte de dinheiro público brasileiro já tivesse sido rechaçado, esse movimento teria como consequência ferir um princípio básico do status quo: o cumprimento de contratos.

A meu ver, o status quo era respeitar a venda já formalizada pelo Grupo Pão de Açúcar ao grupo Casino. Disse que essa era a minha posição pessoal e que, se o Casino não viesse a me contratar, então ficaria fora do caso, pois não teria condições de defender uma posição que não fosse de meu convencimento pessoal, mesmo admitindo que nunca fui dono da verdade e que pudesse estar errado.

Tinha pulado de um barco, mas ainda não havia entrado no outro.

Às 17 horas e seis minutos daquele dia 24 de julho, Ana ainda me perguntou se havia fechado com o Casino. Disse que não, mas que iria entabular tratativas mais definitivas a partir daquele ponto.

Comecei no Casino reportando-me ao executivo Ulisses Kameyama. Ele passaria a ser meu imediato, mas eu participaria também de encontros periódicos com o braço direito de Jean-Charles Naouri, Arnaud, e posteriormente com o presidente do Casino Brasil.

A guerra em torno do Pão de Açúcar foi a maior batalha de comunicação, imprensa e relações públicas de que participei em todos os anos nesta atividade. Tudo era diferente, maior, mais sutil. Até aquele momento, tinha sido a maior disputa comercial privada do país.

Fui contratado diretamente pelo Casino França, o que me exigiu remeter notas fiscais regularmente pelo Banco Central. É um processo burocrático: os valores das “invoices” são cotados em dólar e remetidos, no caso da França, após o fechamento oficial dos valores. Para facilitar, fazia essa “exportação” de serviços quatro vezes por ano. Comecei a trabalhar no Casino no final de julho de 2011, recebendo a gentileza de embolsar meu primeiro ganho como se contasse do dia primeiro do mês. Fiquei até o fim de 2014 nesse caso.

Tivemos inúmeros desafios para que esse modelo de crise pudesse se integrar. Era tamanha a quantidade de profissionais de comunicação, consultores e empresas de relações públicas contratados pelos franceses que esse vasto time teria de atuar de maneira harmônica e complementar.

Havia também uma força bastante poderosa, com alguns dos maiores escritórios de negócios e de assessoramento jurídico.

O Casino não economizou migalhas e mobilizou todos os recursos humanos possíveis para a batalha.

Nosso único objetivo nessa transação eminentemente privada era tornar inevitável -- pela pressão, pela resposta, pelo questionamento se fosse o caso -- que o grupo de Abilio em algum momento capitulasse e se dispusesse a passar o controle do GPA, nos termos assinados anos antes e pelo qual o Casino pagara escrupulosamente o valor combinado.

O grande entrave é que Abilio imaginava ter aceitado aquela negociação quando as perspectivas do Brasil não eram tão animadoras quanto haviam se tornado. Recebera a sua parte inicial, mas queria ou desfazer o negócio -- já formalizado -- ou receber uma compensação adicional, já que o país estava em pleno boom das commodities.

Tínhamos de monitorar, de todas as formas, as ações do outro lado, assim como estávamos sendo monitorados também.

Havia uma paranoia constante de espionagem e as salas onde nos reuníamos eram regular e previamente inspecionadas pelo pessoal de segurança para detectar equipamentos de monitoração. Isso foi citado no livro “Abilio”, da jornalista Cristiane Correa, em que meu nome inclusive aparece como um dos que auxiliaram na comunicação dos franceses nessa batalha.

A confiança, sempre essencial, nesse caso era questão de vida ou morte.

As informações eram compartimentadas. Somente quem estava no topo decisório da hierarquia do Casino tinha uma noção geral de tudo. Nós, fornecedores, sabíamos do nosso quintal específico, mas do do vizinho não fazíamos ideia. Essa era uma cadeia de interações e informações na qual nada era mais fundamental do que a confiança absoluta que precisava existir. Se qualquer um de nós se tornasse informante do outro lado, mesmo que involuntariamente, isso teria consequências sérias, e talvez decisivas. Era um clima permanente, e longo, de guerra fria. Soviético era soviético, ianque era ianque. E, no meio disso, a ameaça nuclear diária de ambos os lados.

Um dos primeiros gestos do Casino foi dar uma demonstração de força: adquiriu mais de 1 bilhão de dólares em ações sem direito a voto do GPA. Estava economicamente mostrando as garras e sinalizando para Abilio que aquilo era briga de cachorro grande.  Abilio nunca cruzara com um contendor tão poderoso e obstinado e aquele ranger de dentes bilionário tinha uma mensagem que ia muito além da aquisição em si das ações: Naouri começara o jogo movendo uma pecinha secundária na casa do bilhão de dólares. Estava disposto a lutar pelos seus direitos. O outro lado sentiu o recado.

Na superfície do noticiário e mesmo dos tribunais, nada estava acontecendo. Mas, sob a placidez das aparências, uma correnteza intensa se deslocava com força nos bastidores: eram boatos diários que precisavam ser checados mesmo que precariamente, avaliados e uma potencial reação estudada. Isso acontecia o tempo todo. Uma pequena notícia, uma declaração, uma afirmação indireta, tudo tinha de ser interpretado cuidadosamente.

A maior conquista que tive nesse caso foi ser gradativa e progressivamente mais e mais consultado. Era tanta gente que poucos -- relativamente -- participavam dos debates cruciais. Relativamente, é claro. Participei de dezenas e dezenas de reuniões com o mesmo formato: executivos do Casino, inúmeros advogados, equipes de relações públicas, consultores. Enchia uma mesa grande. As conversas eram sempre em inglês e duravam muito. Eram meticulosas e dissecavam o fantasma do dia ou da semana.

Qual era o grande objetivo do Casino? Que acontecesse o que aconteceu: que os dois atores privados, numa negociação eminentemente privada, sem intervenção nenhuma de qualquer instância estatal, sentassem um dia à mesa, fizessem um acordo e o controle do GPA trocasse de mãos. Foi isso o que acabou ocorrendo no dia 6 de setembro de 2013. Abilio e Naouri puseram fim à disputa. Abilio chegou a contratar um especialista em negociações de guerra -- guerra de verdade -- para assessorá-lo.

Era o fim de um desgastante processo. Naouri tinha força, mas estava lutando no campo adversário. Morava em Paris, a dez mil quilômetros dos centros de decisão do embate, no Brasil. Por isso, reforçou sua tropa. Já Abilio jogava em casa, diante da torcida. Era um insider.

Para se ter uma noção das dificuldades enfrentadas pelo empresário francês, durante o conflito, o Casino chegou a enviar um pedido formal de audiência para a presidente da República, Dilma Rousseff. O pedido foi desconsiderado, sob a alegação de que ela não queria tomar partido enquanto a disputa não tivesse chegado a um resultado final. Enquanto isso, Abilio ia ao palácio presidencial várias vezes, inclusive como membro do Conselho Econômico do governo.

Terminada a guerra, o Casino entende que Naouri tinha de vir ao Brasil para apresentar à presidente os planos de investimento do grupo para os próximos anos. O pedido de audiência não foi atendido, mais uma vez.

Finalmente, usando seu prestigio pessoal, Naouri consegue se colocar como membro de uma engenhosa Comissão Empresarial França-Brasil e vem na comitiva do presidente francês François Hollande, na visita oficial ao Brasil. Mais: ele consegue no protocolo francês ser um dos apenas cinco integrantes de uma mesa com apenas outros cinco integrantes brasileiros, ministros, capitaneados pelos dois presidentes.

Solicitação de Naouri: já que ele ia estar não apenas no Brasil, mas em Brasília, já que não apenas em Brasília, mas no palácio presidencial, já que não apenas no palácio presidencial, mas numa reunião bilateral com a própria presidente, então não seria possível na saída do encontro ele ter apenas cinco, não mais do que cinco minutos de bate-papo com a presidente? Numa cadeira qualquer, numa antessala qualquer, só para apresentar os planos grandiosos de longo prazo que o Casino tinha para o Brasil? Afinal, àquela altura, tornara-se o maior empregador brasileiro. Nem assim houve um encontro. Influência não era o forte do Casino por aqui.
 

Foto; AFP PHOTO/Marie HIPPENMEYER Foto; AFP PHOTO/Marie HIPPENMEYER

MODUS OPERANDI

Na guerra do Casino, havia um exército de línguas afiadas, olhos de lince e ouvidos de tisico.

A infantaria da comunicação era a de um império. O Casino havia contratado a maior agência de relações públicas do Brasil naquele tempo, a FSB. A segunda também estava conosco: a CDN. A terceira também: a In Press. No meio disso, incorporou-se também a Néctar, com papel decisivo e fundamental. Havia inúmeros consultores de comunicação. Os melhores disponíveis. Alguns foram contratados apenas a título de retenção: recebiam para não fazer nada, mas ficavam impedidos eticamente de trabalhar contra o Casino.

Era dinheiro de uma empresa privada e não havia a obrigação de apresentar qualquer contraprestação de serviço, se assim o contratante entendesse. Não trabalhar contra, em alguns casos, já era o próprio serviço. O orçamento daquele esforço era parrudo: cobrei minha bandeirada anual, relativamente robusta. Era relevante para mim, mas equivalia a menos de três meses da fatura da maior empresa de comunicação contratada. Ganhava bem, mas não era o item mais caro.

Havia grandes profissionais do ramo no nosso time, ícones como Roberto D’Ávila e Eduardo Oinegue. Eu tinha sido jogado no meio dessa salada de frutas. Fui, aos poucos, sendo mais e mais demandado. Via o evento das crises como um organismo neural, uma rede de sinapses de informação que precisam ser detectadas, processadas e respondidas continuamente. Já era assim que meu chefe no caso via as coisas e acho que ajudei a reforçar essa convicção.

Você vai conhecer aqui um pouco do modus operandi daquele consultor. Por sinal, modus operandi que não estava em nenhum manual. Acho que o de ninguém está, ao menos totalmente. Quando falo modus operandi, talvez fosse mais preciso dizer modo de pensar. Afinal, este livro todo é o meu modus operandi: como me relacionei com os clientes, com a imprensa, com as situações adversas. Mas, aqui, é como se você pudesse entender o processo interno de algumas decisões que tomei.

Certa vez, lá por 2002, utilizei o presidente da República como meu assessor de imprensa. É isso mesmo que você leu.

Um empresário do Paraná havia me procurado naqueles dias por causa do escândalo Lunus, que liquidou a candidatura presidencial da ex-governadora Roseana Sarney. Houve um flagrante e dinheiro foi apreendido num determinado local. A acusação envolvia o grupo político de Roseana e, por tabela, de algum modo, a empresa daquele paranaense.

Marcamos um almoço em São Paulo. Ele me comoveu com a história da morte de uma filha. Sem mais nem porquê, telefonei naquela mesma hora para o presidente Fernando Henrique. Falei com a secretária Fátima e ela, imediatamente, passou a ligação. O empresário na minha frente estava sem entender nada: de onde surgiu esse Mário?

Falei ao presidente do problema. Fernando Henrique estava sendo alvo de insinuações maldosas de ter tramado o flagrante. Disse a ele que, se nos ajudasse, seria mais uma prova de que não tinha nada a ver com aquilo. Dou meu testemunho, apenas agora, do que ele fez.

Pedi que nos recebesse no dia seguinte. Ele abriu um espaço na agenda e atendeu no Palácio da Alvorada. Dá pra imaginar a cabeça daquele médio empresário paranaense (nem lembro o nome dele, enquanto escrevo), vendo uma história improvável como aquela acontecendo? Que consultor era esse?

O presidente generosamente nos recebeu e eu pedi a ele que marcasse uma reunião entre o empresário paranaense e um dos controladores da rede Globo. O escândalo Lunus estava o tempo todo na mídia e o empresário com medo de ser arrastado para algo que não tinha nada a ver com ele.

O presidente ligou na hora e marcou para que fôssemos ainda naquela semana. Fui com o empresário à sala de João Roberto Marinho. Explicamos que a empresa podia ser destruída se houvesse qualquer erro de avaliação jornalística. Ele nos ouviu e ligou para o apresentador do “Jornal Nacional”, Willian Bonner, que nos recebeu ao lado do estúdio, acompanhado de sua esposa, Fátima Bernardes, também apresentadora, na época, do telejornal.

Sei lá por que eu me meti nessa história. Talvez por mera vaidade, talvez para me achar importante, talvez apenas por irresponsabilidade. Talvez, quem sabe, movido pelo genuíno desejo de ajudar um desesperado que me sensibilizou. Talvez por tudo isso junto ou por qualquer outra coisa que descubra no divã. Seja o que for, era problema meu: fazia com meu tempo o que bem entendesse. Aliás, não cobrei nada do cara de cujo nome nem me lembro. Só falei com ele naqueles dias. Nunca mais.

O fato é que situações como essa serviam para que eu fizesse meus experimentos profissionais. Daquele caso ficou a certeza de que o melhor assessor de imprensa pode não ser um jornalista. Pode ser o presidente da República, em determinadas situações. Ou qualquer outro interlocutor. Por isso, quanto maior fosse a minha rede de contatos, melhor seria a minha capacidade de atendimento. Tudo se encaixava num caleidoscópio íntimo e infinito que nem eu mesmo tinha ideia de como manipular.

Pode parecer estranho pra quem não está nesse jogo. Mas as interlocuções com a imprensa, sobretudo em momentos de aflição, podem vir de onde menos se espera. Tanto para cima quanto para baixo.

O presidente do Senado, Renan Calheiros, certa vez, recebeu um gesto parecido da presidente Dilma. Foi ela quem marcou um encontro dele com o editor da revista “Veja”, Eurípedes Alcântara. Ela tinha um bom diálogo com Eurípedes num certo momento, Renan sabia disso e ela se prontificou a ajudar: marcou uma conversa entre os dois e assim aconteceu. Renan já tinha feito gestos antes e a revista e ele quebraram um pouquinho mais do gelo.

Com o passar do tempo, fui percebendo que estava no epicentro de um território com três vértices: o triângulo da mídia, o da política e o das empresas. E eu ali, bem no meio. Esses três triângulos, sobretudo nas fronteiras, não são tão nítidos. Tem hora que a imprensa tem poder econômico ou político decisivo sobre alguém. Tem horas que a política é que tem poder sobre a mídia e sobre as empresas. Tem horas que as empresas é que são a locomotiva e puxam as composições midiáticas e políticas.

Então, no meio disso, eu tinha informações da política e da economia para os jornalistas. Tinha percepções da imprensa e da política para compartilhar com as empresas. E tinha, por último, algum pulso das empresas e da mídia para apetecer a curiosidade insaciável dos políticos, para compartilhar com eles.

Eu deitava e rolava. Não estava fazendo nada fora da lei.

Podia com isso potencializar minha capacidade de atendimento, baseada, como todas as atividades de comunicação, em informação. Não informações secretas ou sigilosas. Não na base de influenciar legislações ou me meter com liberações de verbas ou pagamentos.

O que me interessava era aquele burburinho rouco dos salões, sussurrado entre ouvidos, sobretudo nas épocas paranoicas das crises. Isso tinha o seu valor, no meu tempo. Um político podia me dar uma informação sobre de onde uma notícia tinha saído. Um empresário podia ser amigo de um jornalista. Um jornalista podia me ajudar a ter um bastidor que tivesse importância para um empresário. Era nessa faixa de Gaza que eu circulava. 

Relacionamento pode não resolver tudo, mas também não atrapalha totalmente. Graças aos ensinamentos providenciais do mago Paulo Coelho, cedo percebi a importância do Banco de Favores.

Foi essa instituição que me levou a acudir o senador Eduardo Braga, entre o primeiro e o segundo turno das eleições de 2014. Era meu amigo de muito tempo. Ele estava fadado a perder e o desafio àquela altura era apenas morrer com dignidade, não perder de tanto. Não destruir o capital político dele. Me chamou, eu fui e, como sempre, não recebi nem cobrei nada. Nunca recebi dinheiro de governos ou de políticos. Por opção pessoal. Nada contra. Não é ilegal.

Braga foi um dos três candidatos a governador que pediram ajuda ao consultor de crises naquele ano. O outro foi Renan Filho, que é mais ou menos assim da família, e Fernando Pimentel, de Minas Gerais. Ajudei todos. Fui a esses estados algumas vezes. Como sempre acontece na política, muito ti-ti-ti. O pessoal da província amazônica sapecou uma nota que ficou algumas horas na capa do portal “UOL”:

“Ex-favorito, Braga contrata gestor de crises no Amazonas”.

Nunca houve contrato nenhum. Mas o cara da “crise” desembarcando numa campanha era realmente um ótimo mau agouro a ser explorado pelos adversários. A mídia manauara me concedeu certa fama efêmera -- para atingir o candidato Braga, é claro. Disse um portal:

“Ao contratar uma pessoa com esse perfil, Braga admitiu que sua campanha está em crise”.

Já estava acostumado com esse jogo de ter sido “contratado” através da mídia, quando na verdade estava exercitando meu modus operandi de me divertir, aprender e ampliar minha rede de contatos. Foi assim em Minas, foi assim em Alagoas, foi assim também no Paraná, quando ajudei o governador Richa em meio à crise com os professores. "No pacote de soluções, o governador Beto Richa contratou a peso de ouro o jornalista Mário Rosa", dizia um site paranaense. Uma coluna, na “Gazeta do Povo”, também anotou: “Na noite de quarta-feira e, segundo boas fontes, fechou contrato”. E mais outro: “RIcha contrata consultor de escândalos”.

Sinceramente, eu não ligava pra essas coisas, por mais que não fossem exatas. O fato é que o acesso a políticos e a empresas de primeira linha reforçava também meu acesso a jornalistas de primeira linha. E vice-versa. Era esse o jogo.

O primeiro alicerce de meu modus operandi eu consolidei ao ler um livro de autoajuda. Sim, autoajuda, sim, por menos chique que isso seja. Um amigo, Alexej, me deu um exemplar de “How to Be a Successful Consutant” (Como ser um consultor de sucesso) quando eu estava engatinhando na atividade. O livro é de um consultor americano especializado em shopping centers. Nada a ver, mas exatamente por isso me chamou a atenção. Ele enumerava vários dilemas e desafios que eu, recém-lançado consultor de crises, já pressentia abaixo da linha do Equador. Um dos ensinamentos eu adotei na hora e nunca mais me esqueci dele:

“Antes de assinar o contrato, diga só o que vai fazer. Somente depois é que diga como”.

O “como” dessa profissão foi surgindo aos poucos, com base nas experiências, no que vivi, no que deu certo ou não. Essencialmente, eu acreditava que tudo se conectava no infinito e que, portanto, nada era em vão. No caso dos políticos, atendê-los e não cobrar deles me dava um diferencial e ainda permitia que, ao me conhecerem de outros Carnavais, quando os consultasse sobre alguma avaliação estratégica que dissesse respeito aos meus clientes, eles saberiam que não era um mercenário que estava ali se aproveitando da situação. Sobretudo quando uma empresa está sob intenso tiroteio, estabelecer interlocutores confiáveis que nos permitam minimamente saber (ou imaginar saber) para onde estão indo as coisas, isso não era pouco.

Crises são uma epidemia de boatos. Boatos que, na maioria das vezes, não viram noticia, mas que infestam o ambiente das redações e dos bastidores. Treinamos esses mecanismos de checagem e rechecagem de boatos, ao limite da exaustão, no caso Casino. Cada lado tinha sua artilharia e seus radares.

Do lado de Abílio, estava uma competentíssima profissional do ramo, Maristella Maffei, dona da Máquina da Noticia. O consultor Marcelo Onaga também estava lá, assim como Gustavo Krieger, que havia sido assessor de imprensa de Michel Temer na presidência da Câmara dos Deputados e depois se tornaria a principal face midiática do candidato a presidente Aécio Neves, em 2014. Todos tinham suas conexões.

No caso do Casino, dada a paranoia permanente com espionagem e a necessidade de aumentar nossa capacidade de acesso a jornalistas, fui eu que sugeri em dado momento que contratássemos a empresa da jornalista Carolina Oliveira. Já estava havia um ano trabalhando com os franceses e, sinceramente, não tinha muita paciência de ficar nessa moagem dos contatos com repórteres o tempo todo. Ela acabara de sair de uma assessoria na área econômica do governo, tinha uma alentada agenda de contatos com os principais colunistas do setor e me parecia discreta.

Ela foi avaliada por meus chefes e sua contratação consentida. Abriguei-a num aditivo de meu contrato, tudo devidamente registrado oficialmente. O fato de morar em Brasília facilitava muito nosso contato pessoal, condição de segurança fundamental requerida naquele contexto carregado de desconfianças. Ela disseminou e checou muitas notícias naquela batalha midiática. Plantava e colhia, como também faziam os do outro lado.

Muito tempo depois, quando aquela guerra já chegara ao fim, aquela relação profissional e privada foi colocada sob uma perspectiva que nunca existiu. Houve o preço de um desgaste pessoal. Viveria uma pequena polêmica que jamais imaginara, da qual retirei inúmeros ensinamentos, dos quais o estímulo de expor estas memórias profissionais é a parte mais visível.

Normalmente, atuava em contato com diversas áreas. Na questão da imprensa, especificamente, sempre com as empresas de relações públicas que já estavam atuando e, muitas vezes, chamando eu mesmo outros profissionais para me darem apoio. Foi assim que sugeri, e foi criada, a diretoria de comunicação da holding da Camargo. Indiquei Marcello D’Angelo para a nova função O mesmo eu fiz na empresa aérea Gol. Hélio Muniz ficou com o lugar. Atuei também como uma espécie de headhunter e participei da indicação e da escolha dos titulares. Indiquei vários profissionais e empresas ou subcontratei em certas ocasiões. O próprio Marcelo Onaga, que depois trabalhou com Abílio Diniz, eu havia indicado antes para dirigir a comunicação do banco BVA. Fazia parte do meu papel.

Numa crise, uma das formas mais complexas de agir é simplesmente não agir. Ficar em silêncio é uma forma de não agir, de reduzir a eletricidade do assunto, através da passividade ou da ausência de resposta. Não agir é diferente da inação. É uma decisão premeditada de que a melhor coisa a fazer é não fazer nada.

Quando alguém poderoso ou alguma organização poderosa fala, o assunto fica mais importante unicamente porque a fala confere relevância ao tema. Às vezes, falar ajuda a exterminar o assunto. Noutras, aumenta sua combustão. Então, não falar é uma forma extrema de tentar não contribuir para um destaque inconveniente de um questionamento.

Uma vez, uma empresa que estava para lançar ações na Bolsa de Valores me contratou unicamente para evitar marolas de mídia, como se eu pudesse fazer isso. Mas eu estava atento a tudo o que envolvesse a empresa. Qualquer ruído, em minhas constantes rondas com jornalistas de diversas áreas, o alarme iria tocar. Não foi o caso e a operação, com o tempo, nem foi realizada.

Como sempre fui pornográfico comigo mesmo e politicamente incorretíssimo nas minhas metáforas, em algumas situações de crise em que defendia ficarmos parados, eu usava uma imagem chula. Peço humildemente que retirem crianças e idosos da sala. Peço desculpas aos leitores que não querem cruzar com palavreado chulo, mas era assim que eu tratava as coisas, muitas vezes em ambientes sóbrios e sob olhares austeros, pouco acostumados a essas barbaridades verbais. Em nome da fidelidade aos fatos, foi assim que disse:

“Quando alguém enfia uma trolha em você, não se mexa. Se mexer, você faz o jogo do adversário. Ele chega ao orgasmo”.

O consultor de imagens tinha uma embalagem, no seu auge. Primeiro, nunca usava terno. Nem meia. Sempre camiseta preta e calças casuais. Era para ficar claro, claríssimo, indubitável, que eu não era dali. Tava só de passagem. Era um estrangeiro. Não iria, portanto, me submeter às normas silenciosas do poder. Sempre respeitei as hierarquias e fui leal às causas que defendi, mas sempre também destoei do comportamento corporativo tradicional, se entendesse ser o caso. Fazia isso pela palavra, mas também pela roupa. Acho que era o meu papel ser percebido assim.

Uma das coisas que vi acontecer muitas vezes, nos contextos de crise, é a tentação de contratar um consultor como se fosse um daqueles barquinhos que lavam oferenda para Iemanjá. É muito comum na Bahia: na virada do ano, os devotos colocam agrados num barquinho e o lançam às aguas para obter as graças da deusa dos mares. Algumas vezes, achavam que eu era esse barquinho: era como se minha contratação fosse uma espécie de penitência, uma oferenda para que os deuses da mídia fossem de alguma forma reverenciados e que deixassem aquelas pessoas em paz.

Sempre que percebi esse tipo de atitude, fielmente eu o mencionei. Nesses casos, não aceitava o trabalho, por não me achar necessário ou útil. Em geral, as pessoas depois agradeciam por não ter explorado um momento de fragilidade delas. Para o consultor, essa boa fama junto aos clientes contava.

Tive casos em que minha “produção” documental, em termos de textos e discursos, era vistosa. No caso do Casino e da Marfrig, tinha centenas de mensagens trocadas e recebidas, sobre as questões de comunicação do dia.

Mas havia casos, como o de Léo Pinheiro, dono da construtora OAS, em que o melhor atendimento era o mais discreto e pessoal. Léo era a única pessoa com quem lidava na empresa, além de eventualmente o diretor jurídico. Era um atendimento muito especial. Não produzia documentos, quase não nos falávamos ao telefone, quase não trocávamos mensagens. Ele era uma pessoa do olho no olho. Sabia que seus passos eram ou poderiam ser monitorados. Estive com ele no máximo 20 vezes nesse período. Ele acabaria sendo preso durante nosso contrato, com os desdobramentos da Operação Lava Jato. Honraram meu contrato integralmente, mesmo com a empresa passando por sérias dificuldades. Sempre tive um grande orgulho de tê-lo servido.

No caso do escândalo da FIFA, em 2015, também troquei pouquíssimas mensagens com os condutores da CBF. Tive muitos, muitos, contatos pessoais, conversas a dois ou, no máximo, a quatro com o presidente da entidade. Com o FBI zanzando por aí, embora não conversássemos nada fora dos protocolos, todo o cuidado era pouco. Desses tempos, lembro-me de poucos atendimentos tradicionais, vamos dizer assim: o treinamento prévio de Marco Polo Del Nero antes de seu depoimento à CPI do Futebol no Senado, assim como o mesmo procedimento ao seu substituto, o coronel Nunes.

Em seu modus operandi, o consultor de crises sempre acreditou que conhecer pessoas e ser conhecido por elas poderia ser um ativo mais valioso do que apenas celebrar contratos. O critério era o do aleatório: recebia ou se encontrava com todos que recorriam a ele, fosse um ex-deputado estadual do Pará, fossem ministros ou presidentes, fossem empresários ou líderes setoriais, fosse um vice-prefeito de uma cidade do interior do Rio, como Itaguaí. Tinha alma de enfermeiro.

E foi assim que um dia o vice-prefeito daquela cidade apareceu lá em casa. O titular estava para ser cassado e ele precisava de um apoio de imprensa. Havia muitas acusações contra o então prefeito (“o prefeito da Ferrari”) e a repercussão do caso na mídia poderia impactar o processo político junto aos vereadores.

Não fazia a menor ideia de como ajudar. Ofereci alguns conselhos e indiquei um amigo jornalista, o competente, querido e leal Bob Machado, para que o auxiliasse. Não cobrei nada, seguindo os meus preceitos. O caso ganhou algum espaço na mídia carioca. No final, o vice assumiu.

Os problemas não têm necessariamente o tamanho que têm, mas aquele que atribuem a eles. Sempre procurei ser solidário. As pessoas que recorriam ao consultor de crises, com suas angústias, mereciam respeito. Era o caso do dono de um dos melhores hotéis do Brasil naqueles tempos, o Emiliano, onde sempre me hospedava. Certa ocasião, Carlos Alberto me fez uma consulta sobre um tema que despertava nele algum desconforto. É que o chef italiano de seu renomado restaurante, também do hotel, havia decidido sair e ele contratara outro, com a missão de mudar o cardápio. Ele imaginava que isso poderia suscitar alguma indigesta polêmica junto ao restrito microcosmo dos críticos de gastronomia.

Dependendo da excelência de um profissional ou de um segmento, uma simples questão como essa poderia gerar o receio de um questionamento. Por menor que fosse, por menos que você ache que aquilo era um problema, para aquele ser humano era. Carlos Alberto sempre conduziu seu estabelecimento com absoluto rigor e busca de altíssimo padrão. Eu o tranquilizei e disse que não, não, aquilo não tinha nenhum potencial devastador. A troca do chef do restaurante renomado nunca se transformou em um tema. A preocupação traduzia, antes de tudo, o enorme zelo do proprietário, meu amigo, com tudo o que dissesse respeito à sua marca. Esse era um dos segredos, inclusive, do sucesso merecido que alcançara. Eu iria cobrar por aquele aconselhamento? Como? Iria pedir um desconto no couvert?

O presidente da Fiesp, Paulo Skaf, um dia me recebeu em seu gabinete, na sede de contornos piramidais na avenida Paulista, centro financeiro de São Paulo. Papo vai, papo vem, ele me pergunta como poderíamos ter uma “relação profissional”. Disse que apenas ter aceso a ele já era um privilégio e que contasse comigo, sem necessidade nenhuma de pagamentos. Ele estranhou e me pediu uma proposta de honorários. Soltei uma cifra que o surpreendeu:

- Três mil reais.

- Três mil reais?

- Se o senhor achou muito caro, pode ser a metade.

Ele riu e a conversa agradável fluiu por ainda uma hora. Achava realmente um privilégio aquele acesso. Mais importante do que a materialização financeira que pudesse advir dele. Skaf não estava passando por nenhuma crise. Logo, eu não considerava necessário aquele vinculo. Os pacientes me escolhiam, mas eu os escolhia também. Quando achava que não havia por que me contratar, sempre declinei ou ajudei a pessoa a perceber. Achava que isso só me diferenciava dos demais.

Achava que, se fosse efetivado sem necessidade, com o passar dos meses, o cliente talvez não ficasse satisfeito. E, se isso acontecesse, não queria tê-lo como um propagandista frustrado de ter contratado o consultor. Não queria, seguindo aquela frase de uma palestra distante de um de meus mentores, me transformar numa commodity.

Fazia isso o tempo todo. Certa vez, o poderoso controlador da siderúrgica CSN, Benjamim Steinbruch, também me chamou para um encontro. Também sondou a possibilidade de uma “relação” profissional. Achava que ele não precisava de meus serviços. E fui conduzindo a conversa até ele se dar conta disso também. Ele não precisava de mim para reverenciar Iemanjá.

Acesso a jornalistas depende de diversos fatores. Ser alguém que “circula” é um deles. Dá poder não de derrubar matérias inconvenientes, mas de estabelecer relacionamentos perenes que, nas crises, são testados no seu limite máximo. Ter esse ativo valoriza consultores na hora de serem cogitados para assessorar empresas em momentos delicados. Mas esses dois tripés também têm valor para a terceira variável dessa equação: políticos estão sempre ávidos de saber nuances de fonte confiável sobre a crise da vez.

Meu modus operandi era composto de uma articulação sólida com braços de comunicação de primeira linha, que me transmitiam impulsos que buscava checar e traduzir para que pudéssemos adotar, a cada momento, a melhor posição. Era um quebra-cabeça de inúmeros encaixes. Sempre que pude, tentei ampliar o espectro de peças para colocá-las à disposição dos clientes, nas crises de que participei

Era assim, com essas múltiplas variáveis subjetivas, intempestivas e casuais, que funcionava o modus operandi do consultor de crises.

Foto: Ricardo Moraes/Folha Imagem Foto: Ricardo Moraes/Folha Imagem

ENFERMARIA

O Rei estava em perigo, e os súditos, atônitos.

O cantor Roberto Carlos, o Rei, estava enfrentando algo raro em toda a sua longa e iluminada carreira: uma pequena polêmica.

Era o ano de 2013. Roberto tinha uma posição clara sobre uma questão controversa: defendia algum tipo de salvaguarda para autorizar ou não a publicação de biografias. Achava que ninguém mais, além dele, podia ser realmente fiel para relatar tudo o que vivera, sentira e pensara. Havia, também, implicações econômicas: se transformassem a vida do Rei em obra de domínio público e aberto, haveria o risco da proliferação de distorções, turbinadas ainda pelos interesses econômicos que poderiam inevitavelmente surgir, como tudo o que dizia respeito ao Rei.

Tive uma participação coadjuvante nesse caso, mas pude captar minimamente o que significa estar na cauda de um cometa de popularidade, como o Rei. Mesmo que longe do epicentro do astro, senti a vibração incomum de uma estrela.

O caso das biografias foi um dos inúmeros que chegaram ao meu pronto-socorro de bolas divididas. Quando achava o caso interessante, atendia os pacientes de graça, pelo mero prazer de me exercitar e pela curiosidade de aprender. Não foi diferente dessa vez.

A biografia de Roberto já tinha um problema com elas. O Rei lutara até na Justiça para impedir a publicação do espetacular livro “Roberto Carlos em Detalhes”, do jornalista Paulo Cesar de Araújo. Era uma biografia não autorizada do Rei.

Na ocasião da polêmica, havia uma discussão sobre o novo Código Civil. As biografias não autorizadas deveriam ser legalmente permitidas ou não? Todo o mundo sabia, ou imaginava saber, o que Roberto pensava.

A grande confusão começou quando o grupo Procure Saber entrou num terreno minado. Era composto de um batalhão de monstros sagrados da música, formado por nomes como Chico Buarque, Caetano Velloso, Gilberto Gil, Djavan, além do próprio Roberto. Pois essa vanguarda do pensamento, através de sua então porta-voz, anunciou apoio à posição de criar algum obstáculo para a publicação de biografias não autorizadas. Isso foi recebido pela imprensa com perplexidade: estariam alguns dos nomes mais consagrados na defesa das teses libertárias endossando a abominável censura?

O Olimpo veio abaixo.

A imprensa caiu matando em cima dos mitos, sempre idolatrados por suas posições avançadas.

É nesse ponto que eu entro na história. Um belo dia, o empresário de Roberto, Dody Sirena, me telefona e me pede uma avaliação sobre o tema. Ele me consulta sobre a ideia de que Roberto concedesse uma entrevista ao programa mais popular da maior TV do país, o “Fantástico”, da rede Globo. Faço meus comentários e, no fim de semana, o Rei concede a entrevista dando um cavalo de pau: diz que era, sim, favorável às biografias não autorizadas e que aceitava discutir o tema. Com isso, o Procure Saber ficou numa sinuca de bico: a causa que defendia não era das mais confortáveis e o Rei, que anteriormente encarnava uma posição mais conservadora, evoluíra e ficara mais liberal do que o grupo.

No meio disso, diante do estardalhaço impiedoso na imprensa, as estrelas do Procure Saber gravaram um vídeo e postaram na internet, dizendo que haviam adotado uma posição um tanto radical. Meu amigo, minha amiga, pense num bafafá. Publicaram que eu estava por trás do texto dos artistas, o que não era fato.

Depois do telefonema, mandei um texto com algumas sugestões de posicionamento público para o empresário de Roberto. Troquei outros telefonemas nos dias seguintes e coisa e tal. Estava lá, ajudando o Rei, um dos meus grandes amigos de vida inteira, o advogado Kakay. Sempre fui fã de Kakay, como pessoa, como profissional, como tudo.

Meu nome circulou naquele estrelato e uma senhora de lá resolveu vazar a inusitada presença de um consultor de crises habitando a morada dos deuses. Qual não é minha surpresa quando, no dia seguinte, leio meu nome na coluna mais importante do jornal “O Globo”, de Ancelmo Gois. Era o tema de abertura, sob o título “Lei Roberto Carlos”:

“Roberto Carlos, que ontem deu entrevista para o ‘Fantástico’, resolveu assumir ele mesmo o comando da luta contra as biografias não autorizadas, que nas últimas semanas esteve com o pessoal do Procure Saber. Na nova etapa, o quartel-general será transferido para o escritório do criminalista Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay”.

Em seguida, sob o titulo “Era do escândalo…”:

“Kakay contratou o jornalista Mário Rosa, autor do livro ‘A Era do Escândalo’, e que tem uma consultoria especializada em crises. Rosa trabalhou com Ricardo Teixeira na CBF”.

No dia seguinte, outra nota, na mesma coluna:

“Os artistas receberam de Mário Rosa, consultor de crises, um texto-base que começa pedindo desculpas ao Brasil “se não nos fizemos entender”.

Eis que me vejo dando uma entrevista de pergunta e resposta, na mesma semana, para o caderno de cultura do jornal “O Globo”. Estava acostumado com clientes em outros cadernos. Aquilo era realmente novidade. Declarei que, se fosse uma empresa, o Procure Saber mudaria de marca. Sobrou pra mim até na coluna semanal assinada por Caetano, também no jornal “O Globo”:

“Hoje, leio que um administrador de crises sugere que o Procure Saber seja desfeito, já que a mácula de atitude de censores pode sumir das imagens dos artistas (...), mas não da de uma associação”.
Ah, sim: já que meu nome tava quicando na área, claro, surgiu um colunista ávido por me dar um chute de bico na cara. A coluna era intitulada “Lobby milionário" e dizia:

“Incluindo honorários do advogado Kakay e do especialista em comunicação de crise Mário Rosa, além de despesas com eventuais lobistas, estima-se que Roberto Carlos, afastado do movimento Procure Saber, deverá gastar mais de R$ 2 milhões para evitar a liberdade das biografias”.

Veja bem, meu caro: eu só troquei alguns telefonemas. Nada mais do que isso. Não cobrei nada. Era uma honra. Meu nome acabou aparecendo até em livro sobre o Rei. Mas esse divertido episódio deixou marcada em mim a magnitude astronômica em que trafegam os ídolos. Um pequeno cisco no olho ou um consultor de crises viram uma gigantesca pedreira. A grandeza deles faz tudo ao redor parecer maior do que é.

Já o caso da frágil Eliana Tranchesi era de uma tristeza atroz. Ela era dona da butique Daslu, de altíssimo nível, reverenciada como o templo do consumo. Na esteira do escândalo político do mensalão, a Daslu foi alvo de uma operação policial cinematográfica. Até metralhadoras formaram o aparato da operação. Meca do consumo conspícuo, com uma freguesia de endinheirados, a loja foi cercada e tomada por um contingente de dezenas de agentes da lei. Era o ápice de uma investigação que apurava sonegação de impostos de mercadorias. A loja era especializada em produtos importados.

Num momento em que o Partido dos Trabalhadores com seu decantado histórico de defensor dos mais pobres era sacudido por denúncias de corrupção, a ação na Daslu era peculiarmente simbólica: um ícone da elite era estraçalhado pelo belzebu. Era uma luta de classes na agenda policial.

A exposição negativa na imprensa era devastadora. Fui chamado pessoalmente por Eliana para um almoço na Daslu. Participou também sua sócia então, Donata Meirelles. Eliana estava desnorteada com a espiral mirabolante que o caso assumira. Por maior que fosse, era apenas uma loja de roupas e artigos finos. De repente, fora alçada ao patamar dilacerante de inimigo público número 1 da ocasião. Não havia muito que fazer naquela hora.

Estive muitas e muitas vezes com ela naqueles dias e meses tenebrosos. Como sempre ocorre nessas situações, os desdobramentos se precipitavam imprevisivelmente. Aquela mulher frágil e de garra enfrentava tudo aquilo dominada pelo medo, a perplexidade, a angústia e a resignação. Eram acima de tudo sessões de terapia diante do inevitável. Nunca cobrei um centavo. Eliana morreria tempos depois, de câncer. Guardo com carinho até hoje o requintado conjunto de taças de cristal púrpura que me mandou de presente.

Também não cobrei nada de meu amigo Damião Feliciano. Ele estava cumprindo seu primeiro mandato de deputado federal. Assumira pouco antes como presidente da CPI das obras inacabadas. Quando me procurou, estava sofrendo algumas acusações requentadas, mas amplificadas por sua relativa visibilidade na ocasião. Se perdesse a posição, seria um abalo talvez irreparável em sua carreira política.

Negro, Damião tinha percorrido uma linda trajetória pessoal. Na infância, perambulava ao lado do irmão, Cosme, pelas picadas de barro seco a caminho da escola no interior profundo da Paraíba. Os dois se formaram em medicina.

Depois de nossa conversa, Damião seguiu para a tribuna da Câmara, onde proferiu um discurso se defendendo:

- Não posso acreditar que, por trás dessas injúrias, possa haver nesta Casa o preconceito contra um negro, nordestino.

Salvou o posto e a controvérsia se dispersou na poeira do noticiário.

Outro que me procurou bem depois foi o ex-deputado estadual Luiz Afonso Sefer. Ele tinha tido perspectivas promissoras como político. Era dono de um hospital em sua cidade, Belém do Pará. Fora obrigado a renunciar após um escândalo que o envolvia com pedofilia. Uma menina que levara para criar em sua casa prestou depoimento dizendo ter sido molestada. Seus adversários políticos, donos de jornais e TV no estado, amplificaram a repercussão. Foi parar nas TVs, jornais e rádios como alvo de uma denúncia arrasadora. Foi preso em certo momento, condenado a 21 anos em primeira instância.

Um dia, recebi uma ligação do querido amigo e conselheiro Márcio Thomaz Bastos, advogado, que já tinha presidido a Ordem dos Advogados do Brasil e sido ministro da Justiça no primeiro governo Lula. Ele me pedia que fosse ao seu escritório. Cheguei lá e ele me apresentou a Sefer. Auxiliei Sefer ao longo dos anos: formatamos juntos um programa de assistência social que passou a apresentar na emissora de um amigo. Era parte de seu esforço para atenuar as queimaduras que sua reputação sofrera, depois de estar sem mandato. Ajudei também na criação da logomarca e do jingle da campanha de seu filho a vereador da capital. Era um Sefer, e aquilo era um primeiro passo para a redenção do clã. Nos encontramos, ao longo dos anos, em São Paulo, Miami e Brasília. Mantivemos incontáveis contatos telefônicos. Soube por ele de sua eleição, em 2014, para deputado estadual novamente. Enfrentou reveses jurídicos e vitórias, ao longo dos anos. Jamais tratamos de dinheiro. Coloquei-o na cota pessoal de meu SUS.

O governador do Paraná, Beto Richa, estava passando por um pesadelo naqueles dias de maio de 2015. Uma onda de ataques, denúncias e, para piorar, um confronto entre a Polícia Militar do estado e servidores da educação. As lideranças sindicais chamavam o episódio de “massacre”. As cenas de pessoas feridas eram um tanto chocantes. Ao mesmo tempo, o governador era acossado por acusações contra um parente distante. Muita gente achava que ele ia cair. O que fazer?

Chamou-me a Curitiba para um jantar em seu apartamento de cobertura. Um grupo bem restrito. Falei igual a uma matraca. Sugeri que fosse lançada uma campanha publicitária sobre os investimentos do estado durante a grave crise econômica que abalava o Brasil. O conceito era “O Paraná segue em frente”, numa alusão indireta de que ele ia continuar na cadeira e também numa contraposição ao governo federal, que estava levando o pais para “trás”, por causa da crise econômica. Era assim que as pesquisas de opinião viam o governo Dilma naquele momento. O governador era de um partido de oposição, o PSDB.

Lá pela madrugada, o governador me pergunta como poderíamos “estabelecer uma relação profissional”. Disse a ele que não cobrava de políticos, nem recebia nada de partidos ou governos. E que era uma honra estar ali. Como sempre, essa atitude gerava o receio de que estivesse me esquivando. Só conseguia dissipar essa impressão atendendo bastante, telefonando muito, escrevendo e sugerindo frases de efeito ou de posicionamento. Foi o que fiz com Richa. Certa vez, acusaram até a primeira-dama do estado. Sugeri a ele que respondesse através de um post e politizasse ao máximo a resposta:

- Não adianta se explicar. Bata no PT, que já é o suficiente. Isso virou briga de torcida: se o senhor vaiar, seu pessoal vaia junto.

Sempre muito polido e cuidadoso, Richa saiu daquela zona de cavalheirismo verbal que era de seu estilo e sentou o sarrafo naqueles dias. Deu entrevistas a veículos nacionais, com uma pitadinha de sal a mais que o habitual. A crise foi passando.

Na vida, é preciso ter um pouco de cabeça fria e pé-quente. Problema é quando acontece o contrário.

A fornalha do noticiário não poupava nem mesmo seus sacerdotes. Certo dia, recebo um contato da rede RBS de televisão, o maior grupo de comunicação do sul do país. O império de comunicação regional estava na desconfortável e inusual posição de virar notícia. Tudo por conta de uma festa de adolescentes em Florianópolis, durante a qual um dos jovens herdeiros do grupo se entusiasmara na animação, na companhia de meninas de sua idade, todos menores. O relato era o de que, na balada regada a álcool, uma das meninas teria sofrido algum tipo de abuso sexual.

A guerra pelo domínio da comunicação no sul estava em franca escalada. O grupo concorrente da RBS não apenas dava destaque principal ao episódio como ressaltava que o conglomerado adversário estaria escondendo o fato por envolver um membro da família controladora. Como redações são povoadas por jornalistas, cada um ali tinha uma sugestão a fazer sobre como conduzir o incidente. Jornalistas eram muito impulsivos e entendiam que inúmeras ações deveriam ser deflagradas, não necessariamente levando em conta os aspectos de como uma corporação deve se comportar nessas horas, mas a partir da cultura de que empresas jornalísticas têm de se posicionar de maneira contundente.

Na reunião com Nelson Sirotsky, presidente do grupo na época e membro da família controladora, o impasse era como tratar editorialmente o assunto, já que a concorrência estava utilizando o caso para colocar em dúvida inclusive os critérios de edição do grupo. Se escondiam aquilo, o que mais não escondiam? Alguns jornalistas mais aguerridos queriam que Sirotsky assinasse um editorial nos dias seguintes tratando diretamente do tema e reafirmando os princípios noticiosos da empresa.

Foi uma interação (houve outras) bastante delicada. O consultor de crises defendeu que os critérios jornalísticos a serem adotados deveriam ser os dela, RBS. Se caísse na armadilha de reagir aos ataques do outro lado, ficaria à mercê de uma agonia sem fim. Se publicasse maciçamente o tema, estaria amplificando sua importância. E o material poderia ser replicado pela concorrente na linha de que “RBS admite…”. Se entrasse nesse jogo, no dia em que não noticiasse, o outro lado iria atacar a omissão.

Defendi que a RBS deveria seguir seus próprios critérios, válidos para todos os assuntos: havendo fato novo nas investigações policiais, que fossem publicados. Não havendo, não fazia sentido ampliar artificialmente a cobertura apenas pela pressão de parecer omitir o assunto.

Disse também que, em qualquer organização, a palavra do CEO é a última bala de prata. Ele só fala quando há necessidade extrema e isso precisava ser sopesado com muito rigor para que essa manifestação da mais alta instância não acabasse sendo banalizada.

Decidiu-se conduzir esse caso com os compromissos editoriais, mas sem resvalar para a armadilha da gincana que estava sendo proposta. E assim foi feito.

A RBS atravessou essa trepidação sem maiores abalos. Era um patrimônio admirado e respeitado por seu público.

O consultor se sentiu privilegiado por ter ajudado na organização da estratégia. Claro, não havia o que cobrar. O pagamento era apenas estar ali, auxiliando e criando uma relação de maior confiança com atores de mídia. Credibilidade também é patrimônio.

Também ajudei Marcelo Carvalho e seu sócio numa audiência pública da Rede TV no Senado. Funcionários da extinta Manchete, o antigo nome da rede, queriam questionar alguns pontos do contrato de compra assinado pelos novos donos. O assunto também não teve destaque. Ajudar, sem cobrar, era uma aposta numa relação mais forte e que poderia, ou não, ser útil no futuro para o consultor.

Foto: Lula Marques/Folhapress Foto: Lula Marques/Folhapress

NA JAULA

Renan Calheiros foi deputado estadual, federal, senador da República, ministro da Justiça, presidente do Congresso Nacional quatro vezes. Foi muita coisa. Mas, pra mim, acima de tudo, foi meu amigo. Quando o conheci, era cabeludo e de oposição. Foi há muito tempo. Ele, do baixo clero da política na Constituinte de 1988. Eu, do baixo clero da imprensa. Baixo clero só fala com baixo clero. E, à medida que ele foi subindo, me tornei amigo de um cara importante.

Nossa amizade surgiu naquela etapa da vida quando ainda fazíamos novos amigos. Não havia comboios oficiais, liturgia, protocolos. Jogávamos pelada na casa dele uma vez por semana. Ele era um atacante esforçado, mas craque foi na política. Seu filho, Renanzinho, era um pirralho que saracoteava por ali. Mais velho, seria deputado federal e governador de Alagoas, terra do pai.

Pelos idos de 2007, Renan estava no meio do maior escândalo que protagonizara até então. Tinha tido uma filha fora do casamento e a mãe o acusara de ter bancado as despesas dela com dinheiro de uma empreiteira. Não apresentou provas, mas Renan estava comendo o pão que o diabo amassou. A acusadora chegou a ser capa da revista masculina “Playboy”. Como sempre fui gaiato, depois, bem depois, às vezes provocava ele com uma tirada abusada:

“Presidente, o senhor é o único político que levou o conceito da transparência ao limite máximo: publicou até a amante, pelada, na capa de uma revista nacional. Isso é que é não ter nada a esconder!”.

Pra não perder a amizade, ele fazia cara de paisagem, obviamente constrangido pela impertinência de um velho companheiro. Amigos, às vezes, passam dos limites e são os mais cruéis. Mas a gente releva em nome do passado.

Aquela não era uma crise qualquer. Revolvia os alicerces do lar. Eu conhecia Verônica, sua esposa, desde que era moça. Sempre alegre e carinhosa. Estava obviamente arrasada com tudo aquilo. Mas ficou ao lado do marido o tempo todo. Uma grande mulher.

O furacão político que abatia Renan o alvejava durante sua segunda presidência no Senado. Foi levado ao Conselho de Ética. Foi submetido a quatro votações secretas de cassação de mandato no plenário da Casa. Ali, os leões não costumam refugar carne e sangue. Mas Renan, milagrosamente, graças à sua colossal capacidade de articulação, escapou da morte certa. Manteve o mandato e ainda voltaria, anos depois, a presidir o Legislativo outras duas vezes.

Lembro bem uma noite particularmente triste em que estive com ele na residência oficial. Era Carnaval. Brasília estava vazia. A casa também. Ele estava só. O frisson natural do poder, gente entrando e saindo, carros oficiais do lado de fora, tudo isso havia sumido. O leão Calheiros estava com os dias contados e a selva da política já antecipava esse desfecho com distanciamento, esperando o último suspiro da fera acuada, na cova solitária, na derradeira hora.

Fui lá meio desavisado. Renan me recebeu e convidou para jantar. O clima na casa era de velório. Fomos para a mesa. Ele ainda tentou articular umas palavras. Mas estava tão em frangalhos que parecia insepulto, vagando sem rumo.

Sentamos à mesa e nos servimos. Ele devia estar tomando remédios para enfrentar aquele martírio. Na mesa, ao invés do Renan serelepe de sempre, estava sem alma. Prato servido e ele não era capaz de comer. Grogue, abaixava a cabeça e ficava imóvel. Desmaiava sentado e ficava 10,15 minutos apagado. Acordava de quando em vez, balbuciava algo e caía num novo transe de apagão. Insistimos ainda um pouco. Fiz de conta que não havia nada, esperei ele acordar. O pisca-pisca ligava brevemente e voltava a apagar por outros angustiantes minutos. Embora fosse cedo, decidimos dar fim àquele suplício. Na vez que despertou, desejei boa noite e o deixei lá vivendo sua solitária provação. Saí triste e preocupado.

Esse foi o Renan mais soturno que presenciei em todos os tempos.

Nas semanas seguintes, foi retomando o controle e voltaria a ser a fera que sempre foi.

Renan enfrentaria o pandemônio em grande estilo. Ganhou ali seu título de Honoris Causa da política. Um dia, presidindo a sessão, teve que ouvir a exigência para que renunciasse, vinda do Catão do Senado na época, o senador Demóstenes Torres (DEM/GO).

Havia uma matéria da imprensa que anunciava um mirabolante plano de investigar os senadores de Goiás. Renan teria sido o mandante, diziam. Então, bradava Demóstenes, a presidência estava usando a instituição para constranger senadores, para inibi-los. Renan, apregoava Demóstenes, tinha de renunciar à presidência para que não pairasse dúvida de que não usaria a instituição para impedir os colegas de julgá-lo.

Não havia plano nenhum, mas a repercussão fora tão brutal que a única saída acabaria sendo mesmo Renan renunciar à presidência do Senado. Renan já estava havia noves meses sendo capa das revistas, manchete dos telejornais, era o vilão da vez. Mas aquele ultimo peteleco do complô para investigar senadores seria fatal. O senador Demóstenes Torres liderava o movimento. Renan deixou a presidência.

Anos depois, com a revelação de conversas gravadas entre Demóstenes e o bicheiro Carlos Cachoeira, foi a Renan que ele foi se socorrer para não perder o mandato. Estive várias vezes no apartamento de Demóstenes (eu era amigo de Renan, né?) e o antes implacável senador precisava de Renan, agora o líder da maior bancada no Senado. Renan bem que tentou ajudar aquele que o desgraçara anos antes, mas a máquina de triturar políticos que surge da combinação de política e exposição negativa na imprensa já estava em plena operação. Demóstenes tornou-se o segundo senador cassado da história do Senado. As circunstâncias não permitiram que sobrevivesse ao primeiro pelotão de fuzilamento dos quatro que Renan passara. Torci por Demóstenes. Não gostava daqueles linchamentos.

Como, afinal, definir minha relação com Renan? Sinceramente, amigo, amiga, eu mesmo não sei. Você tem os seus amigos, mas algum deles participou de dois impeachments, vivia o dia inteiro recebendo ministros e autoridades durante anos, voava em aeronaves oficiais, embarcava nelas ouvindo o solene toque militar de um corneteiro e você ali cruzando com essa gente toda o tempo todo? Eu era amigo na pessoa física ou na jurídica? Onde terminava uma e começava a outra, no caso de Renan?

Fomos ficando velhos e aquela amizade lá de trás foi tomando outra forma. Eu virara consultor de crises. Prosperara sem precisar de nem um centavo dele ou de governos. Nunca me pagou um níquel. Do ponto de vista dele, menos um urubu sobre aquela carniça. Pra mim, à medida que ele foi crescendo, eu tinha acesso a um bocado de percepções que me permitiam fazer uma avaliação dos fatos e dos desdobramentos um pouquinho mais precisa que o noticiário.

Claro, isso me ajudou, sobretudo quando os enormes grupos econômicos que eu auxiliei precisavam saber “para onde estão indo as coisas” na política ou quando os próprios não estavam sendo massacrados por alguma investigação parlamentar. Porque, sim, políticos são réus do imaginário que, de tempos em tempos, vestem a toga de juiz, quando membros de CPIs.

Acho que conheci ou cruzei com a capital inteira e com o capital inteiro também apenas sendo alguém da “casa" do presidente do Congresso. Eles é que iam lá. São algumas migalhas do banquete real que entopem a despensa do camareiro. Uma vantagem? Profissionalmente, sim, mas você também fica marcado aos olhos dos outros. Como minhas atividades eram bem definidas -- fazer fofoca, intriga e tiradas --, todos sabiam exatamente o que eu era. A começar por aquele que me concedia sua confiança. Eu podia arrotar, de vez em quando, um sonoro “estive com fulano ontem e ele me falou que…”. Um ou outro interlocutor devia olhar para mim com o mesmo estupor que os tupinambás sentiram quando ouviram o rojão de Caramuru.

Essa relação me fortalecia como alguém “bem-informado”. Mas, quando ele caía em desgraça (e isso era quase sempre), eu também virava um sarnento. Não é do jogo?

Algum detrator e mesmo pessoas sem maldade colocavam nisso que eu era o rótulo de “lobista”. Não era a minha atividade, embora parecesse de alguma forma. Um tenente dos bombeiros se veste muito parecido com um general do Exército. Sua rotina é parecida, eles pertencem a uma tropa, trabalham em quartéis. Mas são duas coisas diferentes, sabemos. Em comum, usam uniforme. Mas suas semelhanças cessam aí. Eu andei ao lado de poderosos. Lobistas também. Mas eram coisas diversas.

Acho que lobistas são caras que defendem interesses econômicos específicos, tentam influenciar a aprovação de leis, a regulação de normas, a liberação de recursos públicos. Eu nunca fiz nada disso. Eu atendi clientes atacados e interagia com diversos públicos -- imprensa, políticos, advogados, publicitários, empresários -- exclusivamente para ajudá-los a atravessar o pior momento.  Minhas conexões, é claro, não me prejudicavam, pois ficava sabendo das coisas que me interessavam: rumores, venenos, perfídias. Eu podia ouvir a rádio corredor do poder. Nunca quis saber de informações privilegiadas e não tinha acesso a elas. Futrica política privilegiada, essa sim. Cruzava por mim. Se tivesse pretensões literárias, lançaria o “Fofocas do Planalto”.

De outro lado, para caras como Renan, eu podia ser mão de obra escrava. Como nunca fui de trabalhar muito e ele tinha demandas colossais toda hora, criou-se uma liga: discursos, entrevistas, programas políticos, desmentidos, iniciativas de grande impacto, desmentidos, desmentidos, factoides, frases de efeito, desmentidos, estratégias de enfrentamento do abismo do dia, avaliação de cenários, desmentidos, antecipação de fatos, todas as suas campanhas, todas as suas candidaturas a quase tudo, desmentidos, cadeias de rede nacional, falas em programas partidários -- e talvez o mais precioso bem que velhos amigos só podem desfrutar com outros velhos amigos: um saboroso e vazio papo furado.

O amigo chega à casa oficial tarde da noite, depois de ter estado no palco o dia inteiro, e tudo o que precisa é só de um velho puxa-saco para passar o tempo. Quando o puxa-saco era um cara como eu, independente financeiramente e mordaz feito um capeta, aí a fera ficava ali algumas horas relaxando um pouco.

Nas múltiplas relações que eu conciliava, Renan foi um treino e tanto. Um cadáver de almanaque. Com ele, aprendi tanto, tanto, tanto. E pude calibrar minha mão de cirurgião numa balança de nanotubo, dessas que podem aferir o peso de um próton. Usava depois esse treinamento todo com meus clientes, quando pegavam carona no meu Samu.

Com o tempo, Renan e eu fomos ganhando tanta interação no modo de expressar em palavras o que ele pensava que ficávamos na madrugada fazendo a carpintaria retórica do dia ou dos dias seguintes. Já estávamos tão alinhados que eu fazia as frases já na primeira pessoa, como se fosse ele falando -- já saía assim:

“A melhor forma de eu falar neste momento é com meu silêncio”.

No dia seguinte, via a frase dele na TV e achava o máximo. Não me sentia o autor dela. Eu apenas era um anexo da cabeça dele dando forma aos pensamentos que ele tinha e eu apenas exteriorizava, formatava, de vez em quando. Mas, pra isso, tinha que pensar como ele. Não era ele que estava pensando como eu.

O fato é que o convívio de três décadas com essa fera, tamanha a magnitude dos seus problemas, foi também um privilégio daqueles. Vivi com ele inúmeras pequenas conspirações. Pra mim, era bom, pois via como elas acontecem por dentro, e não apenas como elas pareciam ter acontecido, pelos jornais.

Antônio Carlos Magalhaes, o ACM (lá vou eu…um político poderosíssimo de meu tempo, que foi de tudo, prefeito de Salvador, três vezes governador da Bahia, ministro, senador, presidente do Congresso) estava pela bola sete. Tinha sido obrigado a renunciar em 2001 depois de uma briga ciclópica com seu arqui-inimigo de então, Jader Barbalho (outro monstro, deputado, senador, ministro, governador do Pará, presidente do Senado). Os dois caíram.

Em 2003, ACM volta ao Senado e novamente seu mandato entra em pane. Desta vez, surgira a acusação de que ele grampeara adversários quando fora governador da Bahia pela última vez. Adversários, em termos. O velho estava apaixonado por uma moça e, diziam seus detratores, decidiu monitorar suas conversas telefônicas. Foi tomando gosto e sobrou pra todo o mundo. É o que diziam. Como em “O Alienista”, de Machado de Assis.

Como ele já estava com a imunidade baixa, essa alegação de abuso de poder era um coquetel-molotov.

Antônio Carlos foi o único político, durante esse tempo todo, que eu atendi profissionalmente. Ou seja, cobrei. Mas até onde eu sei acho que ele nem sabia. Fui contratado pelo antigo e leal escudeiro dele, Carlos Laranjeira, que havia sido um dos sócios da empreiteira baiana OAS. Os inimigos de ACM pichavam os muros dos canteiros da construtora anos antes com os dizeres “Obrigado, Amigo Sogro”. É porque outro sócio da empresa, Cesar Mata Pires, era genro de ACM.

Seja como for, encontrei Laranjeira muito, muito tempo depois disso tudo. Ele já estava fora da empreiteira. Acho que quem me pagou foi a televisão que pertencia à família, afiliada da rede Globo na Bahia. Laranjeira fez apenas uma exigência:

- O senador não sabe que você está sendo remunerado. Não comente com ele.

ACM acabou escapando por uma série de fatores. O fundamental foi que o governo Lula não quis: preferia tê-lo fraco a tê-lo morto.

Dei uma porção de conselhos e fiz uma série de interlocuções de mídia para ele. Ficamos amigos. Sinto saudades.

Uma de minhas ajudas fundamentais foi aparar uma aresta gigante. ACM brigara feio com o PMDB de Jader e, por tabela, passara a patrola em Renan. E não é que agora Renan era líder do PMDB no Senado (mais uma vez), justamente a bancada decisiva para estraçalhar ou não o velho coronel?

Me pediram para ajudar. E lá fui eu encontrar o líder Renan numa churrascaria a uma da madrugada. Falei com ele se não toparia um encontro reservado com ACM. Era como pedir a Jesus que se encontrasse com o cão. Fui, fui, fui, até que ele aquiesceu. Meu argumento matador foi:

- O senhor não tem nada a perder. Se ajudar e ele morrer, o senhor tentou. Se ajudar e ele sobreviver, fez parte da salvação.

Renan já estava maturando, àquela altura, a eleição para a presidência do Senado. ACM e o partido conservador dele eram uma peça importante nesse jogo. Por que não fazer uma pequena aposta nessa roleta?

Saí de lá duas e pouco da madrugada. Liguei para Laranjeira e marquei às oito da manhã num campo neutro, o apartamento em que eu morava na Asa Sul em Brasília. Pedi ao senador, muito visado na época, que entrasse pela garagem. Renan entraria pelo térreo.

E não é que, às sete horas da manhã, me liga Renan roendo a corda:

- Mário, não sei, é melhor não ir...

- Presidente, não faça uma coisa dessa. Já falei com ele e não tenho como avisá-lo a esta altura.

Renan foi. ACM já estava na sala do apartamento. Fiz aquele lero-lero introdutório e saí de minha própria casa. Eles ficaram ali conversando duas horas.

Nada vazou. Conspiração boa é essa: a que você não leu nos jornais.

ACM sobreviveu e se tornou um grande entusiasta de Renan. No leito da morte, quando Renan estava atravessando o calvário que o levaria a renunciar à presidência do Senado, um ACM pálido e magérrimo ligava para ele do hospital:

- Estou contigo. Conte com meu voto.

Naquela técnica das garrafinhas de memória que ficam boiando por aí até chegaram ao continente da consciência, ao iniciar este parágrafo, fiquei tentando lembrar outro causo sobre Renan pra lhe contar. Ainda não apareceu no meu radar. E, quando surgir, você esbarrará com ele no próximo parágrafo.

Ah, lembrei uns outros fragmentos…

Bobagenzinhas, mas que podem criar falsas polêmicas, o que não é conveniente. Você vê, meu caro, mesmo quando a memória nos guia, nem sempre as memórias de alguém podem ser totalmente dissecadas. Assim como a realidade, assim como o noticiário, vemos apenas uma fresta. E o resto? Pura imaginação.
 

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Mario Rosa

Mario Rosa é consultor de imagem, diretor da MR Consultoria, e jornalista formado pela Universidade de Brasília (UnB). Foi editor da revista “Veja”, repórter do Jornal Nacional (TV Globo) e trabalhou também no “Jornal do Brasil”. Venceu o Prêmio Esso por duas vezes. É autor de livros como “A Era do Escândalo” e “Reputação na Velocidade do Pensamento”. No marketing político, atuou e coordenou campanhas eleitorais no Brasil e na Argentina.

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