PARTE 4 de 5

Entre a Glória e a Vergonha

Memórias de um consultor de crises

Mario Rosa com exclusividade para o UOL

Entre a Glória e a Vergonha

Memórias de um consultor de crises

Foto: Paulo Lisboa/Brazil Photo Press/Estadão Conteúdo Foto: Paulo Lisboa/Brazil Photo Press/Estadão Conteúdo

PERRENGUE

Três meses depois da visita dos policiais à minha casa, aí o bicho pegou.

No ano de 2015, a Fifa e o futebol no mundo todo estavam vivendo um terremoto: o presidente Joseph Blatter tinha sido apeado do poder, o número dois dele também, vários presidentes de federações nacionais foram presos pela polícia americana, o FBI, numa cinematográfica operação em Zurique. José Maria Marin, ex-presidente da CBF, também tava em cana. Ricardo Teixeira, como sempre, na alça de mira. O presidente da CBF naquele momento, Marco Polo Del Nero, por prevenção, imaginava ser mais prudente não se afastar do país. Ninguém sabia o que o FBI podia fazer.

Com o mundo do futebol de ponta-cabeça, uma viatura da Polícia Federal, um delegado e agentes cruzaram os portões da CBF naquele dia 1º de outubro. Alerta máximo. Imprensa mobilizada. A casa caiu? Quem era o alvo agora?

Eu.

Sim, eu.

Por mais incrível que pareça, no meio daquele tiroteio todo no mundo do futebol, a viatura policial estava ali por minha causa, cumprindo uma das dezenas de buscas e apreensões determinadas para aquele dia na esteira da Operação Acrônimo.

Nas horas seguintes, o consultor de crises sentiu algo inimaginável, uma vergonha terrível; afinal, ele era contratado para administrar o escândalo dos outros. Então como poderia ele fazer o escândalo ir bater na porta alheia?

Quem poderia imaginar, no futebol mundial, que uma operação da Polícia Federal naquele território, se acontecesse, teria como foco um assessor de imprensa?

Pois isso aconteceu. Faz parte do jogo, essa caixinha de surpresas.

A viatura saiu de lá com a cópia de um contrato meu (a CBF nunca teve dinheiro público, diga-se), regularmente registrado em ambas as contabilidades, com impostos recolhidos, coisa e tal. Mas o estrago já estava feito. Em mim.

Este capítulo é para falar de alguns perrengues pelos quais passei, alguns tropeços que tive. Nas crises, as pessoas sofrem uma porção de situações que não são notícia, mas deixam marcas na alma delas. Não foi diferente comigo. Senti algumas coisas na pele de um modo que manual nenhum contempla, técnica nenhuma ensina, teorias não são capazes de preparar.

Destino? Para que pudesse descer do pedestal das certezas frias e fosse mergulhado nas águas turvas da imprevisão? Não sei. Estava Deus ali naquele dia me fazendo de cobaia de meus próprios conceitos e fazendo um encontro de contas entre o que ficava ou não de pé? Talvez.

Só sei que daquilo nasceu este livro, embora não fizesse ideia naquele dia. Daquilo nasceu a semente da reflexão e do relato nestas páginas.

Nas horas seguintes ao sensacional acontecimento na CBF, o noticiário já estava em polvorosa. O oráculo do jornalismo esportivo, Juca Kfouri, sapecou uma nota que ficou o dia inteiro na home page do maior portal do pais, o UOL, com direito a uma foto minha, é claro. Título: “E agora, Rosa?”.

“A Polícia Federal esteve na CBF ontem, como parte da operação Acrônimo. Segundo a ‘Folha de S. Paulo’, na CBF o alvo foi um contrato da MR Consultoria. A empresa pertence ao jornalista Mário Rosa, investigado na Acrônimo, e foi contratada no final do primeiro semestre para prestar consultoria ao presidente da entidade, Marco Polo Del Nero. Mário Rosa é um velho conhecido da CBF. ‘Administrador de crises’, trabalhou durante uma década com Ricardo Teixeira como seu assessor pessoal e até no COL, Comitê Organizador da Copa do Mundo.”

Ele encerrava assim:

“Chegou a hora de Rosa administrar a própria crise por gostar de viver perigosamente”.

O assunto tava bombando nas páginas de esporte. Futebol dá audiência. Na ESPN:

“De surpresa, a CBF recebeu a visita de agentes da Polícia Federal nesta quinta-feira. Desta vez, entretanto, a presença na entidade não teve nada a ver com os escândalos da Fifa ou a investigação do FBI…a empresa do consultor Mário Rosa está sendo alvo de uma investigação…a surpresa foi muito grande para os presentes, já que a CBF estava movimentada por conta de uma reunião com 13 representantes de clubes…”

Outro site de esporte bastante acessado:

“O elo entre a CBF e a operação é o ex-relações-públicas da CBF, Mário Rosa, que coordenou a campanha de Fernando Pimentel (e que trabalhou também com José Dirceu e Antonio Palocci)”.

Veja bem: esse post anterior permite entender muito da lógica da notícia nessas horas.

Primeiro, eu não era “ex” coisa nenhuma. Por trás do “ex”, o que existe é um forma velada de estigmatização: eu era “relações-públicas” até o escândalo. Depois, “ex”. O que passei a ser? Bandido?

No noticiário de escândalos, fala-se às vezes sem dizer. É uma regra que não está nos manuais de redação, mas que existe no manual da vida. Ah, sim: não “coordenei” campanha nenhuma, assim como jamais “trabalhei” para Dirceu e Palocci.

O conjunto todo dessas breves linhas tinha um subtexto que era tudo, menos “imparcial”. Dirceu e Palocci estavam no noticiário como vilões. Eu era um “ex”. Logo... eu era de alguma forma vilão.

Não está escrito ali: “Mário é vilão”. Está sugerido, à prova de processos. Eu conhecia aquele circo e, sinceramente, não me importava. Já tinha deixado de ser jornalista para me dar tanta importância.

A lona daquele espetáculo me era familiar, mas o que eu estava sentindo e iria sentir nas horas, dias, semanas e meses seguintes era uma revelação.

Senti vergonha, senti constrangimento, senti que virara um leproso e que ninguém iria tocar em mim outra vez. Senti que o consultor acabara de falecer e estava sendo velado em praça pública. Naquele dia, assim como na CBF, outras 15 ou mais empresas com que havia trabalhado nos anos anteriores receberam a visitada polícia. Todas privadas, todas com notas fiscais, impostos recolhidos. Mas que vergonha, meu Deus…

Imagine um camburão chegar à sede de uma empresa em que você trabalhou, às vezes um edifício inteiro, cheio de gente que você nunca viu. Aquele burburinho todo: “O que foi?”, “O que foi?”, “Polícia!”. “Nossa!”, “Por quê?”, “Ah, é um tal de Mário Rosa”, “Xiiii…”.

Passei aquele dia recebendo mensagens no celular. “Polícia Federal aqui pedindo seu contrato.” Mais uma vez, como fiz naqueles dias, peço desculpas aos meus clientes que passaram por aquilo. Imagino a situação e só posso dizer que nunca desejei causar esse constrangimento. Desculpem-me.

Você, agora, vai conhecer um pouco do calvário de quem passa por esses perrengues. Gente que você só vê na TV e que não escreve sobre isso, como eu. Tenho uma longa lista de sapos que engoli. Vou mostrar meu pequeno brejo pra você.

Primeiro, também não quero me vitimizar tanto. Meus clientes foram muito legais. Todos eles mantiveram meus contratos até o fim previsto. Pior ainda seria passar por aquilo tudo na pindaíba total. Não foi o meu caso, mas acontece. Obrigado, clientes, por terem me apoiado num momento tão delicado de minha vida, mesmo tendo levado a vocês o contrário do que eu supostamente deveria prover: dor de cabeça. Estava ali para ser um analgésico. Vocês pagaram por isso e eu lhes trouxe uma pequena cefaleia.

Sim, mas agora vamos encharcar isso aqui com um pouquinho de sangue: o meu.

Sangrei.

Nunca fui uma empresa. Não tenho, portanto, concorrentes. Nunca tive contas que pudessem estar “no mercado” para serem disputadas diretamente. Por isso não tinha adversários diretos. Ainda assim, como em qualquer atividade da vida, meu “sucesso” não passava em vão. E aí, meu amigo, é na hora do tropeço que surge alguém terminando de empurrá-lo. É assim mesmo, mas dói.

- Gosto muito do Mário, mas estou preocupado com ele -- disse um colega de ofício, coincidentemente para um cliente meu, um cara bem importante.

- É? Por quê?

-É que ele está pra ser preso, né?

Coisa linda, viu? Algum cliente fala no telefone com um cara que está para ser preso? Ainda mais se esse cara estiver cuidando dos problemas dele, cliente?

Era uma tentativa de me tornar um vírus contagioso. Mas…o cliente era muito mais amigo meu do que do meu preocupado colega. Então, veio falar comigo. Disse a ele que o gesto teria para sempre a minha gratidão. E tem, chefe.

Esses ataques, de um jeito ou de outro, todo o mundo sofre. Sobrevivem aqueles que têm sorte ou que têm um sistema imunológico de reputação capaz de ser abatido e continuar vivo -- fraco no começo, mas depois melhorando. Uma vez, um colunista amigo meu publicou uma nota errada. Foi conversar com um veterano mestre do jornalismo que já tinha visto tudo. Ele o acalmou com o seguinte comentário:

- Isso vai passar. Só encalha quem navega.

O consultor nunca tinha estado antes na pele daquele organismo vivo que absorve e observa tudo, aquele indivíduo que os profissionais chamam vagamente pelo nome de “cliente”. Pois eu estava ali, vejo hoje, aprendendo para compartilhar com você e lhe contar depois algumas coisas que só sentindo para falar.

O território mental desse ser no olho do furacão é um campo minado de pequenas perfídias, algumas tentações malignas que surgem de onde menos se imagina, algumas doses de muita paranoia, prostração e surpresas.

Surpresas ruins, mas também boas. O pior das crises é que não são uma coisa só. São várias, por vezes contraditórias. Ouso dizer que senti enormes prazeres. Como assim? Este livro é um exemplo disso. Não vou lhe dizer que foi só paúra. Teve muita coisa boa também.

Somos treinados para sermos insensíveis. Assim, com a “objetividade", é que servimos aos outros. Vendemos o que se convenciona chamar de “racionalidade”, saber, conhecimento. Cada um dê um nome.

Mas, quando a gente sofre, fica mais próximo dos sentimentos. Os mesmos sentimentos que tentamos congelar quando a crise é dos outros e somos chamados a ajudar. Quando sofremos -- e sentimos, sentimos finalmente --, gestos cotidianos que antes tenderíamos a jogar no triturador do distanciamento, nessas horas, eles nos atravessam e nos comovem.

Recebi muito amor durante meu padecimento. Senti muita coisa boa vinda dos outros. E isso me sensibilizou, entre outros motivos, porque estava capaz de sentir, já que a blindagem da suposta “razão” estava mais fina. Que bom, meu Deus!

Manuais de crise não contemplam verdadeiros tratados filosóficos do amor e da solidariedade que podem acontecer em pequenos gestos, silenciosos e talvez até inconscientes. Quer ver?

Patrícia, que trabalhava lá em casa, no dia seguinte da busca e apreensão, falou comigo através de seu TOC (transtorno obsessivo compulsivo) por limpeza. Acordei e ela estava desinfetando a sala toda, lavando tudo, passando álcool e pano em todas as cadeiras. Vi aquilo e “ouvi” o que o TOC dela estava querendo me dizer:

- Seu Mário, se eu pudesse limpar isso da sua vida, eu iria fazer.

Vi (ouvi com os olhos, melhor dizendo), fiquei com a vista molhada e recebi aquela injeção de amor na veia. Onde está isso nos manuais? Mas, a partir daquele momento, isso estava em mim e, agora, também em você.

(Deixe-me falar aqui um pouco de Deus, essa criatura que está “do outro lado”,ou seja, não faz parte de nenhum manual de redação ou de relações públicas. Deus só existe do lado de cá?)

(O consultor conciliou sua sensação subjetiva de que a matéria não é tudo com a convicção de que, depois dela, não há nada. Acreditava, então, que Deus só existe para quem está vivo. A internet existe? Há algo além do hardware? Sim, claro que sim: enquanto o computador está plugado e funcionando. Não existe internet para computadores quebrados. Então, Deus existia e podia vê-lo na intuição, na percepção extrassensorial, no destino, no acaso. Podia senti-lo enquanto estava vivo, nessas coisas. Pouco importava qual nome davam a ele. Mas sempre acreditei que nós dois só iríamos nos relacionar enquanto eu vivesse. Só enquanto o sinal estivesse verde.)

Os fuxicos não paravam. Nessas horas, o mais difícil é filtrar o que é e o que não é. E, olha, na essência, eu estava muito seguro. Porque sabia que não tinha feito nada de errado. Mas, mesmo assim, a gente fica cismado: é o destino da gente que tá acontecendo ali, em tempo real. E, às vezes, tragédias acontecem e tragam vidas, sendo as pessoas inocentes ou não.

Um amigo meu descambou uma vez de onde estava lá pra casa. Com os olhos fixos em mim, avaliando qualquer movimento meu, anunciou solene:

- Um advogado amigo me disse que encontraram mensagens suas com fulano (um cara bem queimado). Só vim aqui lhe dizer.

Olhei para meu amigo e nem me dei ao trabalho de me preocupar. Aquilo nunca tinha existido, mas perguntei a mim mesmo: por que ele está fazendo isso? Vingança? Amizade genuína? Teste? Desconfiança? Prazer? Descuido? Tudo isso junto? O quê?

Esse mesmo amigo mandou um recado depois por um terceiro me avisando de que eu fora citado numa delação premiada. Não era nem próximo remotamente da verdade. Mas, àquela altura, eu já tava vacinado.

No meu calvariozinho particular, tive que descer do salto alto e encarar momentos chatos. O presidente da associação de empresas aéreas para a qual eu trabalhava, Eduardo Sanovicz, dias depois da busca por lá, me chamou para uma conversa. Me disse que o setor estava passando por dificuldades e que teria de fazer um corte geral de despesas de 40% para o ano seguinte.

Falei pra ele que o importante, para mim, naquele contrato era o endosso institucional que ele representava. Ganhava relativamente pouquinho ali (pouquinho em relação aos valores de meu auge): R$ 15 mil por mês, bruto. Disse a ele que topava uma redução para R$ 3.000 por mês. Foi só aí que vi que o buraco era mais embaixo. Ele disse:

- Eu não vou renovar nosso contrato…

Senti a fisgada. Como recriminar alguém que comandava uma organização, precisava ser rigoroso e havia tomado uma bola nas costas como aquela, a de ver a polícia entrando em seu escritório por causa de um consultor?

Ainda tentei remediar e inventamos um contrato que eu nunca tinha feito antes: era um contrato de “potenciais” horas técnicas. Funcionava assim: se um dia ele quisesse se reunir comigo, ele marcaria uma agenda e pediria um horário. Se ficássemos duas horas, por exemplo, ele pagaria por um valor previamente fixado. Se não me procurasse nunca, não pagava nada.

Tava tão bola murcha que assinei o primeiro contrato de minha vida que não previa pagamento nem qualquer tipo de atendimento. Um contrato virtual. Tecnicamente, continuava contratado, mas, na prática, fui colocado a uma confortável distancia sanitária dali. Era o máximo que podia.

Nesses tempos, um grande empresário foi preso. Pensou em meu nome e o mencionou assim que chegou ao presídio. Levei bomba: o executivo de uma empresa de comunicação que atendia o grupo logo me interceptou em pleno voo com um disparo verbal, informando que eu estava sendo investigado. Tecnicamente, fez o que devia fazer. Foi só por técnica? Nunca vou saber. Não sei se impuseram o mesmo critério sumário que recomendaram contra mim.

Você sente que você está por baixo quando alguém recomenda a um preso que não tenha contato contigo para não prejudicar a imagem... dele.

Hoje, acho que o que aprendi com essas coisas todas valeu tanto ou mais do que qualquer remuneração. Foi um patrimônio imaterial que adquiri involuntariamente.

Mas não pense que minha provação tava acabando. Tinha ainda muito perrengue.

Nessas horas, a cobaia do escândalo é submetida a experimentos que nem Joseph Mengele seria capaz de imaginar. Pra você ter uma ideia, no meio daquela algazarra política toda em que sempre vivi, claro, tinha alguns caras que me odiavam. Faz parte, né? Guarda-costas troca tiros e quem leva não esquece e, se cruzar contigo na calada da noite, descarrega o tambor.

Você imagina o que uma autoridade, dessas de altíssimo, altíssimo calibre, foi dizer para o presidente de uma empresa a quem servia? Os dois se encontraram numa audiência em palácio, meu nome surgiu por acaso e o sujeito metralhou. Sofri um atentado de terrorismo profissional:

- O Mário é bom… mas você tem que ficar apenas um pouquinho de olho porque soube que ele está para ser preso pela operação Lava Jato por lavagem de dinheiro para o Renan...

Numa única frase, o babalorixá me queimava com o cliente, me colocava envolvido na mais temida investigação policial em curso e, ainda por cima, ou por baixo, me atribuía uma relação criminosa com o então presidente do Congresso Nacional.

Nada disso era verdade, mas, para o cliente que ouvia aquilo atônito, era verdade que uma autoridade estava dizendo isso para ele, alguém que podia “saber” de algo sigiloso.

Dias depois, recebi uma ligação de um amigo que trabalhava na empresa me pedindo para conversar “num telefone seguro”. Lá vinha encrenca. Pedi o aparelho do jardineiro emprestado e liguei na linha direta do restaurante em que ele estava, numa cidade do Sudeste. Ele me falou o que acontecera. Esbocei a tranquilidade dos inocentes. Ele disse que me conhecia. Mas aquele chefe não falou mais comigo.

Meu caro, minha cara, há algumas coisas com que você vai ter que conviver se um dia a sombra da suspeição atravessar o seu céu: ninguém acredita em você totalmente. Ninguém sabe da sua vida tanto quanto você. As pessoas só sabem o que viveram e o resto porque leram ou viram em algum lugar. Ou ouviram.

A verdade é que a gente não sabe. Ou não sabe direito. Ou não sabe tudo. Ou não sabe nada e pensa que sabe. Eu vi o olhar da dúvida me encarando.

Logo depois da série de buscas, cruzei num avião com o executivo de uma instituição a que servia. Vim conversando no voo, altas horas. Ele já havia passado por poucas e boas. Já tinha enfrentando acusações sérias de perto. Já tivera até câncer. Era uma pessoa num adiantado estágio existencial.

Sem jeito, a certa altura, acabei falando do meu incidente. Discorri o oceano de provas e elementos que me inocentavam. Ele ouvia atento. Num dado momento, eu perguntei, assim por perguntar, se ele achava que eu era inocente.

- Sinceramente, não.

E olha que ele já tinha passado por tudo na vida. Não tinha acesso a nenhum elemento concreto do meu caso. Nos conhecíamos havia décadas, a ponto de ter sido ele quem me indicara para a organização em que trabalhava, tamanha a confiança e a boa imagem que fazia de mim. Isso desmoronou no primeiro peteleco. Acontece.

Outra história mais engraçada aconteceu com meu então sogro. Ele era delegado aposentado e, uns anos antes, passara ele próprio por um escândalo doloroso. De homem da lei tinha sido acusado de ser mandante de um assassinato. Esse sofreu…

Foram mais de dez anos de processo. Chegou a ficar detido por 15 dias certa vez. Era o nome dele de manhã, de tarde e de noite nos jornais, nas rádios e na TV. Foi inocentado ao final.

Casei com a filha dele depois. Brincava que casei com um case.

Depois daquela confusão toda comigo, meu sogro foi demonstrar solidariedade. Foi me tranquilizar. Claro, aquele meu enrosco ocasional despertava uma torrente de sentimentos armazenados nele.

Ficamos fazendo um debate sobre tudo o que poderia acontecer. Ele dizendo que eu era inocente e que tudo ia passar. Eu dizendo que os inocentes às vezes sofrem injustiças. Ele contestando de lá, eu daqui. Até que, a certa altura, aquele homem carinhoso e bondoso que me conhecia havia duas décadas, era o avô da minha filha e fora lá pra me ajudar, nem ele, coitado, aguentou. Antes de meia hora, naquele papo olho no olho, capitulou:

- A não ser que tenha alguma coisa que eu não saiba…

Ali eu vi que toda ajuda era bem-vinda, mas era eu comigo mesmo. Assim como fora antes com meu ex-sogro, assim como vai ser sempre com qualquer um.

Na esteira daquela avalanche emocional toda, meses depois meu casamento de quase duas décadas acabou. Haja coração! Além de tudo, tava só.

É muito difícil saber como reagir em horas de crise, sobretudo quando ela atinge você. É bom ouvir conselhos, avaliar possibilidades, ter lido sobre o assunto. Mas, no final das contas, você vai ter sempre que administrar dois relógios que quase nunca estão em sincronia.

O tempo do inocente é o já, é o agora, mas o tempo do réu é o nunca. Quando uma pessoa é injustamente atacada, tudo o que ela gostaria é de ter uma reparação imediata, quase instantânea. Já um culpado ou um acusado sabe que, quanto mais o tempo passar, suas chances serão melhores. E no meio disso? Quando alguém não é culpado ou não tão culpado quanto dizem, precisa, mais do que nunca, lembrar que nada como o tempo para cicatrizar as feridas e colocar as coisas em perspectiva.
 

Foto: Jack Guez/AFP Foto: Jack Guez/AFP

PERGUNTAS

Tive de encarar, antes desta escrita, uma reflexão profunda que emoldura qualquer relação de prestação de serviços e confiança. São duas perguntas cruciais que você poderia me fazer:

Pergunta 1: Por que escreveu este livro?

Você entende porque está lendo. Por curiosidade, deleite ou por busca de informação. Em última instância, só está lendo porque eu escrevi. 

Mas você me pergunta: por que escreveu? Qual é o objetivo deste livro, o significado, o propósito?

Talvez eu pudesse responder que se trata apenas de um livro de memórias. Mas a resposta ainda assim talvez não fosse suficiente. Em outros momentos, você poderia deduzir que estou apenas querendo me explicar. Outras passagens poderiam indicar que é somente mais um profissional vendendo seu peixe. Eu poderia também arriscar outras respostas, mas acho que você se sentiria mais respeitado como leitor ou como leitora se eu investisse numa explicação mais completa.

A grande realidade é que não tinha uma resposta absoluta para abarcar todas as indagações possíveis. O fundamental, para mim, foi tentar explicar o meu próprio e improvável ofício, algo que não constava de nenhum guia de profissões, embora muitos depois a exercessem. Porque, quando fui confrontado pública e oficialmente com esse questionamento, percebi que tinha de explicar o que fazia para que pudessem entender o que não fazia. Este seria o depoimento que faria, se instado fosse.

“Consultor de crise” era um rótulo vago e um tanto enigmático que fui dissecando aqui, para seu entendimento e para o meu próprio. Achei que essas experiências incomuns que tive, por se darem de algum modo na esfera pública, não me pertenciam mais. Precisava compartilhá-las para minha própria defesa, para a defesa de minha própria vida e daquilo em que acreditei. E, ao fazer isso, entendi estar sendo útil para que você entendesse melhor como funcionavam algumas engrenagens de um mundo escondido por trás daquilo que você lê, ouve ou vê. Pensei estar fazendo uma contribuição para o interesse coletivo, embora instado por minhas aflições pessoais mais profundas.

Pergunta 2: Pode o padre revelar o conteúdo da confissão? Pode o psicólogo contar o que conversou no divã? É correto? Se sim -- e obviamente entendi que sim --, acho que deveria falar sobre esse delicado ponto também.

A verdade é que tive minha intimidade profissional exposta à minha revelia. As cláusulas de confidencialidade foram abertas em processo público, por vários de meus clientes que foram aos autos detalhar a natureza do auxílio que lhes prestei. Ou seja, vi-me na situação de ter meus clientes falando de mim. E resolvi falar de mim também. Minha história não ia ser contada só pelos outros. É uma situação extrema porque poucos profissionais passaram, reconheço. Revelo alguns detalhes pontuais de histórias que vivi há décadas e que não estão mais sob o calor do debate público. Não creio que possam, assim, impactar o curso dos acontecimentos. Todos os citados aqui sabiam exatamente o que vivemos juntos, para avaliar o que está escrito aqui.

Se puder ser útil de alguma forma para que forme suas próprias convicções, acho que o infortúnio que atravessou minha vida terá uma justificativa mais louvável e mais ampla do que a mera compilação de impulsos de uma vaidade pessoal.

Procurei obstinadamente não criar melindres nem ferir suscetibilidades -- se é que isso é possível, publicamente -- atendo-me exclusivamente às reminiscências essenciais do que testemunhei e que permaneceram vivas em minha memória.

Imaginei não ter quebrado nenhum código, embora entendesse que caminhava num terreno acidentado. Será uma delação premiada? Não. Porque não tinha o que delatar, nem tinha o que ganhar.

Da mesma forma que meus concorrentes poderiam dizer que quebrei confidencialidades (o que, em última instância, só meus clientes saberiam avaliar), outros diriam que continuei escrevendo releases sobre meus ex-assessorados, que é coisa de spin doctor. Pode ser mesmo? Você sabe quem você é? Sabe totalmente? Nem eu sabia. Há quem pontue: não foi muito condescendente com figuras muito execradas? Condescendente, eu?

Está duvidando da minha imparcialidade?

Quando alguém faz memórias, é um encontro com muitas coisas. Inclusive com a morte. Você diria: uma tentativa de aproximação seria filosoficamente mais adequada. Tudo bem. Mas, em algum sentido, é uma experiência racional e viva do que a morte poderia significar. O ambiente das memórias é de exumação de si. A morte é algo que extrapola este mundo e, sendo assim, acima do bem e do mal. Não estava morto quando escrevia este livro, por suposto. Não estava acima do bem e do mal, portanto. Esta é uma precária aproximação. Como tudo.
Se há algo instigante neste relato, é que foram memórias a quente. O sangue de todos os citados, quase todos, ainda estava pulsando nas carótidas quando isto foi publicado. Este texto passou pelo plebiscito dos contemporâneos aqui mencionados, durante o seu tempo.
Caberá a você tirar suas conclusões. Saiba apenas que fiz um relato visceral, expondo-me mais do que talvez devesse e expondo-me mais do que a qualquer outro. A pulsão de ser compreendido e de fazer compreender falou mais alto. Tentei ser verdadeiro, ao compartilhar com você, para a sua melhor compreensão, o mundo difuso e misterioso que habitei. Como diria me amigo Siron Franco, na dúvida ultrapasse...

(Deixe-me falar uma coisa aqui: você já reparou que frisei muitas vezes a origem de meu dinheiro. Privado. Não haveria nada de errado se tivesse sido público. Muitas empresas e profissionais sérios atendem e recebem de governos. É absolutamente legal. A questão é que me impus uma limitação desde o início: se era para cruzar a fronteira entre imprensa, políticos e empresas, ia receber de um lado só. Não iria, jamais, misturar as seringas. Para não correr o risco de morrer contaminado.

A diferença entre receber dinheiro público e privado é uma só: uma coisa é explicar o que eu fiz com o meu dinheiro, outra coisa é falar o que eu fiz com o seu.

Nunca toquei na sua grana, tenha certeza. Ganhei das corporações e empresas que me contrataram. Ao fazer isso, me impus uma espécie de sacrifício. Sim, sacrifício sim. Porque tinha contatos e “expertise” suficientes para disputar contas públicas. Ao não fazê-lo, limitei espontaneamente meus potenciais ganhos. Tudo por uma norma de consultor de crises mesmo: prevenir, prevenir, prevenir.

(Assim, quando enfrentei o meu barraco, não tinha dinheiro saindo do erário, cruzando minha conta e indo para outro lugar. Tinha apenas dinheiro privado trafegando pela contabilidade oficial e aterrissando suavemente no meu patrimônio declarado. Graças a Deus, controlei minha ganância.)

Por último, fazer livros na era digital permite um intercâmbio único de opiniões e influências. Enviei este texto para o meu pai profissional no jornalismo, Etevaldo Dias. Etevaldo foi jornalista por 40 anos. Quando escrevia este livro, ele comandava uma agência de comunicação havia um quarto de século. Foi porta-voz da Presidência da República. Não em qualquer crise, mas porta-voz na crise do impeachment de Fernando Collor. Pois foi esse olhar calejado por uma vida nada usual que me mandou suas observações. Faço considerações a cada tópico mencionado por ele. Etevaldo foi generoso. Vamos a ele:

"Caríssimo, li seu livro e reli vários capítulos, tentei ser um leitor, não o amigo, nem jornalista ‘coleguinha’. Como vc pediu com insistência para que fosse honesto, decidi fazê-lo honestamente. Veja minhas observações como uma boa conversa de amigo e pai profissional.

"Bom, gosto de escrever por itens, é mais fácil de expor ideias e facilita a leitura.

"O livro é uma boa leitura, tem caso, bastidores, revelações – jamais imaginei que Duda não escreve mais que 15 linhas – e o caso da ‘Cervejaria’ é um tratado de comunicação e relações públicas. Claro, não há como fugir da impressão de que se trata do ‘Livro Branco do Mário Rosa’, um livro de defesa prévia. Creio que é exatamente isto que vc pretendia, contar as coisas a partir da sua visão e interpretação do trabalho de consultor de crises vivendo a própria crise.
"Ressalte-se que vc foi cuidadoso e generoso com os seus clientes – nenhum deles fica mal no livro. Vc é benevolente com todos eles, até aqueles que romperam contrato de modo injusto.”

Calma: as 15 linhas do Duda só mostram o prodígio que ele era, O negócio dele era criar jingles curtos, comerciais arrebatadores, e não discursos palavrosos e vazios.

"Curioso, quem sofre mais críticas no livro é o próprio autor.”

Vamos às minhas observações:

"1 – Não gostei de vc se colocar como “lacaio do poder”. Vc nunca foi lacaio de ninguém. Ganhou prêmio Esso (aliás sob minha chefia no JB) com matéria de denúncia, altiva e independente, não de lacaio.

"Como consultor de crise, foi mais procurado do que procurou os nobres da Corte, foi mais cortejado do que cortejou.”

Concordo com você, em parte. O uso da palavra "lacaio" é um recurso digamos assim literário. Ia falar o quê? Era o bambambã, o tal? O “lacaio”não é apenas para eu baixar a minha bola e mostrar ao leitor que eu não estava me achando, mas é também uma questão sociológica de proporções: as pessoas que atendi, essas sim, eram as protagonistas. Eu era um observador privilegiado. Só isso.

"2- Preste atenção nas críticas que faz aos manuais de crise. Vc desmerece os livros que escreveu. Cuidado com esta abordagem. Seus livros fazem parte da formação de milhares de estudantes de comunicação e vc pode confundi-los: ‘Devo confiar nos livros de Mário Rosa? Ou tudo que li não passa de uma farsa?’. Ocorre que há uma diferença entre viver a própria crise e falar sobre o importante papel do uso de ferramentas de comunicação para superar crises. Contradições assim acontecem em todas as profissões. O grande curandeiro João de Deus teve que abandonar suas crenças, pregações e milagres e correr para o tradicional tratamento do dr. Raul Cutait.

"Ao longo do livro, em passagens esparsas, vc trata do assunto, mas creio que merece uma reflexão mais profunda pontual. Vc deve mostrar que seus livros o ajudam a entender e superar a própria crise.”

Concordo mais uma vez e isso me ajuda a contextualizar melhor. Este livro não é contra os manuais, meninos e meninas. Vocês vão ver que eu segui muitas coisas deles no meu próprio caso. O que este livro tenta mostrar é que os cases são contados sempre do fim para o começo, enquanto a vida acontece do começo para o fim. Qual é o problema? Os manuais cristalizam um certo artificialismo da vida, ao descrevê-la como a sucessão de coisas lógicas e racionais, quando não é só isso. Que bom ter uma base de racionalidade alheia para tocar a vida. Que bom treinar várias vezes como se bate um pênalti. Mas...no pênalti do campeonato, o treino é fundamental, mas ali é a vida que está acontecendo. Foi só isso o que quis dizer: não abram apenas as suas mentes. Abram também os corações.

"3- O pau que levou da ‘Veja’ está confuso, não dá nomes para o leitor, mas qualquer jornalista sabe de que se trata, portanto gera clima de falso acobertamento dos fatos. Melhor seria vc simplificar com algo assim ‘Um fato trivial nas relações com colegas jornalistas motivou uma intriga maldosa que me gerou um tremendo...’. Enfim, o que deveria ser apenas fofoca corriqueira de redações acabou por tornar-se uma ofensa pública, injusta e desnecessária que lhe causou estragos emocionais e profissionais. Mais ou menos isso.”

Registrado.

"4- Creio que vc abusa da figura do ‘Pai Rosa’. Não me parece justo com seu talento se colocar assim tão escrachado e folclórico e, nestes tempos de politicamente correto, ofender devotos de religiões afro-brasileiras. A meu ver, não existe isso de ‘Pai Rosa’, conselheiro místico, nada disso; houve trabalho, análise e aconselhamento profissional.”

Não quero ofender ninguém e peço desculpas. Minha mãe foi espírita a vida toda. Frequentei terreiros com ela, acompanhando-a quando criança. Também não quero ofender outras religiões. Aliás, quero pedir desculpas a todos aqueles que se ofendem com pedidos de desculpas também. E àqueles que são contra o politicamente correto. Enfim, acho que médiuns e sacerdotes desempenham também uma função de apoio psicológico, além do espiritual. Achei que, em algumas situações que a vida me colocou, minha contribuição diante de figuras ilustres não era a de enunciar conselhos técnicos, mas, acima de tudo, confortá-los usando a linguagem da técnica como meio, não como fim. Achava que era muito mais um ritual do que um atendimento. Só isso.

"5 – O caso do Roger Abdelmassih não me causou boa impressão. A meu ver, vc passa a ideia de “tirando o lado ruim, ele é bom”. Vc insiste que trabalhou de graça, isto só complica, como alguém pode ouvir, aconselhar, ajudar um criminoso só para aprender como um criminoso reage a sua crise? Afinal, vc diz que virou amigo da família e ao leitor passa a ideia de que provavelmente sabia que ele ia fugir. Não dá para acreditar que fez tudo por amor e pesquisa científica da comunicação.”

Não sabia da fuga, nem de longe insinuo isso. Como todo o mundo, soube pela imprensa. Acho que ele jamais me confiaria uma coisa dessas. Lembre-se: para ele, eu era jornalista, de alguma forma. Lidei com muitas pessoas que eram o inimigo público número um da ocasião exatamente do mesmo modo: podendo observar de perto. Registro no livro que o caso de Roger trafegava numa atmosfera emocional que, definitivamente, era única, por todo o enredo de sofrimentos em que se desdobrava. Meu registro de memória não significa defesa. Apenas registro.

"6 – Não acho boa ideia terminar livro com perguntas: ora, o leitor compra um livro para ter respostas e não dúvidas. Além do mais, não se esqueça de que o seu processo levará anos, mas um dia vai terminar – e bem, tenho certeza – e o livro vai ficar para todos os séculos e séculos, amém."

O objetivo do livro é esse mesmo: vamos nos perguntar mais, pessoal. Nossas certezas repetitivas talvez não sejam as melhores respostas que possamos dar. Sobretudo para nós mesmos. Não é para jogar todas as certezas fora. É apenas para questioná-las mais e ver o que sobra.

Obrigado ET (era assim que chamava o Etevaldo).

Ah, sim, só mais uma coisa: não leve tudo isso aqui muito a sério. Lembra-se do bife no prato e do boi no pasto? Você não está vendo o laranjal da minha vida. Está vendo o suco concentrado dentro da embalagem na prateleira. Concentradas, com o sumo de centenas de laranjas, as vidas ficam densas. Mais densas do que foram ou do que pareciam ser, quando vividas.

Foto: Leo Caobelli/Folhapress Foto: Leo Caobelli/Folhapress

CONSULTOR DE CRISES?

Eu não sei explicar exatamente como surgiu esse meio de ganhar a vida ao longo de quase 20 anos. Fui aprendendo meio que na pancada o que eu iria fazer. 

Retrospectivamente, achava que acertei sem querer quando defini um foco bem específico para o que pretendia. Estava jovem, com 34 anos, e, sem qualquer planejamento, decidi que iria atuar como uma espécie muito especializada de assessor de imprensa: só iria atuar nos momentos dramáticos de meus clientes.

Enquanto tudo estivesse bem, eu não seria necessário. O telefone não iria tocar. Só seria acionado quando uma confusão de alto teor explosivo acontecesse. Assim, tornei-me uma espécie de motorista do Samu da reputação dos outros, aquela ambulância para os casos de emergência. Minha função seria correr muito e com a sirene ligada, recolher o paciente espatifado no chão e levá-lo às pressas para o pronto-socorro. Dali em diante, não era mais comigo. Trabalhava só nos escândalos. O antes e o depois ficariam para outros profissionais.

Era realmente muito estranha essa atividade. Era mais estranho ainda imaginar que havia mercado para isso. Acho que essa “profissão” era muito reveladora da realidade do nosso tempo: de repente, um sujeito conseguia viver única e exclusivamente de oferecer aconselhamento para pessoas cuja reputação estava sendo incinerada publicamente. Não sei se 500 anos antes isso teria sido possível ou se 500 anos depois será necessário.

Era por isso que achava essa profissão esquisita um sintoma de uma fase da História. Houve um tempo -- o nosso -- em que empresas e líderes contratavam pessoas, como eu, apenas para lidar melhor com seus perrengues.

(Nos tempos das carruagens reais, lá pelo século 19, devia haver alguns caras que sabiam tudo sobre o que um veículo como aquele deveria ter para transportar um monarca. Talvez eles atendessem encomendas de diversos reinos. Mil anos antes das carruagens, esse “negócio” não existia porque elas não existiam. Hoje, esse negócio não existe porque reis não andam mais com veículos movidos a cavalo. Então, talvez isso aconteça com a profissão em que atuei. Há precedentes).

Ao longo dos anos, fui cruzando com todo tipo de encrenca. Achava realmente fascinante ter acesso àquelas pessoas alvejadas. Era como um veterinário que pudesse ir à jaula do leão dopado e olhar suas presas bem de perto. Podia ver o leão frágil, caído, fraco. Podia abrir a boca dele e tocar na sua mandíbula. Eu nunca convivi com os leões fortes. Apenas com os abatidos com tiro, e tiro pesado, capaz de derrubar leões.

Nessas horas, não fazia juízos morais. Atraía-me a curiosidade. Até porque, na maioria dos casos, eu não era contratado ou não cobrava. Como você já sabe a esta altura, sempre tive poucos clientes e desses obtive uma remuneração bem, bem bacana. Tão bacana que podia me dar ao luxo de “praticar” o quanto quisesse com outros, de graça, para aprender com eles e utilizar esse conhecimento acumulado com os meus clientes efetivos.

Por isso sempre fiz um paralelo com a medicina forense, só que aplicada à comunicação: aprendia com os cadáveres ou sobreviventes dilacerados que me procuravam. Tinha a oportunidade de dissecá-los, de ver as suas feridas, tumores e entranhas, podia olhar de perto o “inimigo público número 1” da ocasião. E podia aplicar depois tudo o que observei em meus próprios pacientes, na mesa de cirurgia, tentando salvá-los. Como você já viu, adorava metáforas. Mas as comparações servem para aproximá-lo desse mundo estranho que habitei profissionalmente.

Comunicação de crise não é nenhuma invenção minha, é claro. Isso já existia nos Estados Unidos há muito tempo. Basicamente, da mesma forma que uma planta industrial é preparada para a hipótese de explosão (faz-se tudo para que isso nunca aconteça), por extensão os planos de contingência foram transpostos para o ambiente das relações públicas. A palavra-chave é prevenção, e a premissa é que se pode planejar, antes, e prever ações e reações que são inevitáveis durante uma crise. Li muitos livros sobre o tema. Talvez a novidade, no meu caso, tenha sido “tropicalizar” esses conceitos e focar o atendimento de crises, e apenas delas, no contexto dos escândalos brasileiros.

Prevenção por quê? Porque somos muito mais criativos para acertar do que para errar. Desde a copa das árvores, inventamos milhões, bilhões de coisas boas. Mas, desde então, também erramos quase sempre os mesmos erros.

São sete -- e apenas sete -- os pecados capitais. Não fomos ainda capazes de inventar o oitavo, embora já tenhamos chegado à Lua, criado a internet e construído monumentais cidades ao redor da Terra. Porque erramos do mesmo jeito, quase sempre, devemos prestar bastante atenção nos nossos erros. Nunca formos muito criativos no ato de pecar.

Comecei em grande estilo. Meu primeiro cliente foi o financista Daniel Dantas. Eram os idos de 1999 e o dono do Grupo Opportunity ainda não tinha enfrentado tantas polêmicas naquela época. Acabaria até sendo preso anos depois em meio à operação Satiagraha. Um choque na época, mas já não estava mais com ele. O tempo passou e ele conseguiu reverter o processo e obter vitórias notáveis no campo judicial. O Daniel com que trabalhei ainda não era um personagem polêmico, mas já iniciava sua trajetória de embates empresariais como um dos capitães do processo de privatização posto em prática pelo governo de então.

Comecei com um fee mensal robusto para os meus padrões, sobretudo na época: US$ 15 mil. Cheguei a Daniel graças à indicação de um amigo comum, empresário de primeira linha também. Basicamente, nesse período, o consultor de crises ainda não havia nascido. Tinha, é claro, um ótimo relacionamento com a imprensa, pois acabara de sair de lá e meus contemporâneos é que estavam em várias posições de destaque.

Daniel era realmente muito impressionante, um sujeito simpático e sedutor, sobretudo quando queria. Tinha encontros regulares com ele. Participei de diversas conversas dele com jornalistas. Era interessante, agradável, sólido. Enfim, matador. Com o passar do tempo, o grupo foi entrando em embates naturais de uma corporação com crescentes interesses conflitantes. Passei a ser mais demandado para esse combate de noticiário: influenciar a cobertura jornalística, tentar fazer com que nossa versão prevalecesse sobre a do adversário e, de vez em quando, claro, agir na ofensiva e buscar espaço para desgastar as teses de nossos concorrentes. É do jogo e sempre será.

Com o passar do tempo, porém, fui me sentindo deslocado (lembre-se de que eu não estava planejando nada. Estava apenas entregue a esse jorro aleatório que chamamos vida). Me incomodava um pouco o crescente volume de conflitos -- de mídia -- que tinha de administrar. Ao mesmo tempo, o fee era bom…

Hesitei durante uns dias e dei um outro salto no escuro. Fui ao Daniel e me lembro de formular a ele, pela primeira vez, sem querer, coisa do momento, um conceito que iria me guiar por todos os anos seguintes, até hoje:

- Eu não sou pistoleiro. Eu sou guarda-costas. Eu morro por você, mas eu não mato por você. Posso até trocar tiros, mas para nos defender. Não existem muitos bilionários no Brasil. Se eu apenas atirar contra eles, eu vou estar matando mercado. E do ponto de vista econômico, a longo prazo, não é o melhor para mim.

Sou muito grato a Daniel primeiro pela oportunidade e, acima de tudo, por ter-me ajudado a entender o que eu mesmo nem sabia. Pedi demissão, mas saí feliz da vida. Meu calendário de confusões estava só começando.

Foto: Mantovani Fernandes/Popular/Folhapress Foto: Mantovani Fernandes/Popular/Folhapress

'TRAFICANTE!', 'PEDÓFILO!', 'SONEGADOR!'

Um tempo desses, um amigo que tinha saído das redações veio me pedir conselhos sobre como trabalhar “do lado de cá”. O lado "de lá” é o jornalismo. Quando deixamos a profissão, mudamos de lado. Segundo essa visão, bastante incrustada na cultura jornalística, atuamos em lados opostos. Não acho que seja bem assim, mas é assim que os atores desse jogo veem a partida.

Meu amigo veio me procurar porque, àquela altura, já havia me consolidado na atividade. Disse a ele o que realmente penso: como as pessoas avaliam as outras muito pelos resultados, tendem a acreditar que aqueles que prosperaram profissionalmente tenham alguma coisa para ensinar.

No meu caso, lembrei a ele, tinha tomado inúmeras decisões erradas. Deixei a profissão sem saber exatamente porquê. Comecei uma profissão nova que não sabia qual era. Não fazia ideia se seria promissora. Ou seja, fiz escolhas sem pensar e acabei “acertando” meio sem querer. Vejo hoje que, ao sair das zonas de conforto, flertei com o desastre, mas, ao mesmo tempo, isso abriu para mim novas oportunidades para as quais o destino se encarregou de me guiar. Não era exatamente um exemplo de modelo decisório, mas uma casualidade estatística. Felizmente, acabou dando certo, fui feliz pra burro, mas à minha revelia. Minha autobiografia facilmente se chamaria “Apesar de mim”.

- Olha, não acho que sei algo a mais do que você, sinceramente. Se puder compartilhar apenas uma coisa, que só percebi bem depois, é que sempre me joguei inteiro no que vivi. Fui jornalista e adorava. Quando perdi o encanto, saí, entrei nesse troço aqui de coração. Olhando hoje, se posso enxergar uma característica, acho que fiz as coisas que realmente queria fazer e não fiz o que não queria. Quando a gente dá o melhor que tem, pode até não ser o suficiente, mas estamos fazendo o máximo que podemos. E, quando fazemos o nosso máximo, as chances de acertar são maiores do que quando estamos apenas parcialmente. É a única coisa que acho que eu sei.

E realmente eu abracei totalmente a profissão que eu estava aprendendo a conhecer. Um dos meus primeiros casos de crise foi o de um bingo eletrônico que, lá pelo ano 2000, estava provocando um enorme bafafá. Era o Poupa Ganha. Seu dono era um empresário piauiense, Paulo Guimarães. O negócio consistia em comprar espaços de publicidade na TV aberta, fazer as promoções e muita propaganda. Estava espalhado pelo país e rendia um dinheirão com as apostas.

Só que o dono era também proprietário de uma grande distribuidora de medicamentos e, àquela altura, havia sido instalada uma CPI para investigar o narcotráfico. Veja só que encrenca: certa vez, um lote de medicamentos de tarja preta havia sido extraviado. Tecnicamente, remédios são drogas. E a tal CPI queria vincular o pobre coitado (talvez rico coitado) ao tráfico de drogas, veja só!

A internet ainda estava dando seus primeiros passos. E o Piauí era ainda um lugar remoto, sobretudo para a mídia do centro-sul. De repente, aparece um empresário piauiense “suspeito” de tráfico de drogas (o extravio de um lote de remédios) e pronto: ele era tratado por alguns membros da CPI como traficante, e a mídia, sempre sedenta nessas horas, podia embarcar facilmente nessa viagem, sobretudo porque era secundada por suspeitas vazadas “em off”, ou seja, sem autoria, por um parlamentar empoderado pela força de uma CPI. Claro, isso seria mortal para o bingo. Quem é que aposta no jogo de um traficante?

Para piorar, era vazado no zum-zum-zum da CPI, aqui e ali, que o “traficante” operava uma “pista clandestina” numa cidade do “interior do Maranhão”, a 600 quilômetros da capital maranhense, São Luís.

Na verdade, a tal pista no interior do Maranhão era homologada pelas autoridades aeronáuticas e operada pela distribuidora. O “interior do Maranhão” -- uma descrição maldosa e distorcida que servia apenas para sugerir um lugar remoto e obviamente suspeito -- estava situada na cidade de Timon. Quem já foi a Teresina, capital do Piauí, sabe que Timoné uma espécie de bairro da capital piauiense. Geograficamente, fica no Maranhão, mas, na prática, faz parte da Grande Teresina.

Logo no começo, para mim, ser consultor de crise era atuar como uma espécie de assessor de imprensa de porta de CPI. Interagia diretamente com os repórteres escalados para a cobertura da comissão. O negócio deles era emplacar matérias. E a suspeita era realmente apetitosa, embora inspirada por interesses nada republicanos de alguns parlamentares que, de um lado, queriam aparecer na imprensa, enquanto nos bastidores mandavam recados e mais recados para o “investigado”, empresário de sucesso. Para piorar, os concorrentes festejavam o infortúnio do adversário. E alguns veículos de comunicação, que pretendiam disputar o mercado do Poupa Ganha, estavam predispostos a veicular a suspeita nos seus noticiários.

Enfim, um nó difícil de desatar e com o qual convivi durante meses.

Lembro que um dia procurei um repórter que cobria a CPI e expliquei a ele o que estava acontecendo. Protocolarmente, ele disse que ia registrar “o outro lado”. Eu reagi: como assim o outro lado? Não existem dois lados. O fato é um só: a pista não é clandestina e extravio de remédios não é tráfico de drogas.

Ele ouviu e, secamente, respondeu: “Tudo bem. Vou colocar na matéria como o outro lado, como argumento da defesa".

Ou seja, primeiro vinha a “suspeita da CPI”, como fato principal, e a explicação era apenas um detalhe no pé da matéria. Quem é que pode ganhar uma batalha desigual como essa? Simplesmente não pode. Até porque a cobertura de CPIs é feita de Brasília e ninguém sai de lá para averiguar in loco uma “pista clandestina a 600 quilômetros de São Luís”.

Nesse diálogo de surdos, decidimos tirar uma foto da pista num enquadramento que mostrasse a pista do aeroporto de Teresina. As duas estavam situadas a uns três quilômetros de distância. Alugamos um helicóptero. Era possível ver perfeitamente que a pista em questão era até maior e apta para receber aeronaves como Boeings. Passamos a mostrar a foto para os repórteres, assim como o boletim de ocorrência da Vigilância Sanitária que atestava o extravio dos medicamentos.

Com o tempo e as suspeitas crescentes quanto aos algozes parlamentares de credibilidade duvidosa, o tema foi perdendo força. O “traficante” era um empresário pragmático e, quando percebeu que um canal de televisão queria competir no mercado de bingos eletrônicos, achou que chegara a hora de acabar com o negócio. Fechou o bingo, pagou todos os fornecedores e apostadores e a polêmica desapareceu.

(Curioso registrar que naquele Brasil não tão distante assim recebi meu pagamento à vista. Era como lidava com esse perfil de clientes para evitar calotes. Recebia o equivalente a seis meses de trabalho antecipadamente assim que me incorporava à causa. Cerca de US$ 50 mil, pagos em reais. No dia em que fui receber, fiquei um tanto surpreso: o encarregado de me pagar apareceu com uma caixa enorme lacrada. Dentro, o valor estava dividido em notas de pequeno valor, amassadas, formando um grande volume. Daí me dei conta de que era dinheiro de bingo, com cédulas de um, cinco e dez reais bem amassadas. Parecia dinheiro de igreja. Era dinheiro do povo, arrecadado no Poupa Ganha. Levei a caixa para casa e, no dia seguinte, depositei em minha conta. Emiti a nota e a vida seguiu. Com o passar dos anos, esse país primitivo iria desaparecer do meu dia a dia. À medida que fosse trabalhando para corporações mais sofisticadas, o relacionamento bancário seria todo eletrônico. Ao longo de minha carreira, pude sentir que os avanços em termos de boas práticas bancárias realmente chegavam para ficar. Lembro o caixote de notas com uma certa nostalgia do que era trabalhar na minha nova profissão nos seus primórdios).

O “pedófilo” veio logo depois. Era assim que era retratado Carlos Santiago, paulista, dono da maior rede de combustíveis do estado de São Paulo, a Aster Petróleo. Naquela virada do milênio, a Aster aparecia como um fenômeno que incomodava as cinco grandes multinacionais de combustível que, havia décadas, dominavam o setor no país. A Aster possuía quase 300 postos no coração estratégico do sistema, a cidade e o interior de São Paulo. Havia crescido graças a um lance ousado do seu criador: ele conseguiu algumas decisões judiciais que dispensavam o pagamento de certos impostos dos combustíveis. Essa vantagem econômica ele usava para lubrificar e expandir rapidamente sua rede.

O cartel das empresas internacionais, espertamente, decidiu lançar uma campanha institucional com publicidade e amplo apoio de veículos de comunicação, alertando para o perigo dos postos que vendiam gasolina adulterada. Era uma campanha de utilidade pública, mas com o propósito econômico de tirar do mercado os postos que se utilizavam dessa artimanha.

Acontece que, no caso da Aster, não havia gasolina adulterada. Ela crescera vendendo bons produtos, turbinada pelas liminares que garantiam a ela margem maior e, portanto, maior capacidade de expansão, sobretudo no território do maior mercado consumidor do país. Então o que fizeram os concorrentes? Descobriram que o dono da Aster estava respondendo por algo ligado à prostituição infantil. Nada tinha a ver com a qualidade da gasolina, mas um “pedófilo” bem que vinha a calhar.

A história era realmente delicada. Certa vez, ele estava no mesmo lugar que uma garota de programa, que aparentava ser maior de idade. Mas a cafetina da moça estava com problemas com polícia e armou-se um flagrante contra Carlos, que foi até preso. Atenção: Carlos foi inocentado ao fim dessa história toda, anos depois, mas, naqueles dias, a chapa dele estava assando.

O caso não era dos mais fáceis. Mas nosso esforço era demonstrar que a gasolina dos postos era de primeira e que eventuais questionamentos sobre o dono da distribuidora em nada prejudicavam os consumidores.

Eu achava o máximo viver essas complicações, confesso.

Logo depois dos postos, surgiu em minha vida um típico empreendedor brasileiro. Seu nome era Paulo Panarello, dono da Panarello, a maior distribuidora de medicamentos do país na época. Sua base de operações era Goiás, estado que havia atraído inúmeras empresas através de incentivos fiscais.

Eis que, de repente, surge uma CPI dos medicamentos e era preciso encontrar um vilão. Como os laboratórios farmacêuticos eram entidades internacionais, desde logo o governo decidiu que eles não poderiam ser molestados. Para não prejudicar a imagem do país no exterior. Sobrou então para as distribuidoras nacionais, Panarello à frente. Por ser a maior, era o maior alvo. As menores automaticamente se associaram aos deputados, oferecendo inclusive munição para demonizar a distribuidora líder.

Daí a distribuidora, convertida agora em “sonegadora", acabou se tornando o foco de atenção dos investigadores parlamentares. Quanto mais batessem nela, mais faziam o jogo das outras, que queriam se apropriar do espólio que estava em jogo.

Paulo Panarello, um goiano simples, com tino raro para o comércio, abrira a distribuidora na marra. Vivia totalmente dedicado à empresa e à família. Passamos por aquela tempestade, com muita dificuldade. Lembro do jatinho que ele tinha: o carpete tinha uma capa plástica. Um jatinho particular e plástico para proteger o carpete da cabine? Esse era o Paulo.

Ele foi depor na CPI. Não era nenhum tribuno. Falava como caipira e era tímido. A empresa estava tão mobilizada que os funcionários passaram o depoimento todo, transmitido pela TV, rezando, alguns de joelho.

O dono havia contratado um ex-secretário da Receita Federal que produziu bastante conteúdo que inocentava a empresa. O desgaste foi, aos poucos, diminuindo. Essa era uma guerra midiática de guerrilha. A empresa não era tão importante a ponto de ganhar muito destaque negativo, mas qualquer arranhãozinho doía pra burro.

Fizemos algumas alianças, naquele momento, com veículos de comunicação. Fizemos campanhas institucionais, propaganda. E, de vez em quando, uma matéria boa aqui ou ali começou a sair. Era o suficiente.

No auge da CPI, fizemos road shows em redações. O âncora Boris Casoy nos recebeu com grande gentileza e generosidade.

Anos depois, Panarello vendeu a empresa para uma multinacional. De hábitos simples, não ficou muito confortável com a fortuna. Gostava mesmo era de circular freneticamente pelas filiais, rodar o país em seu jatinho de carpete plastificado, negociar, comprar equipamentos. Com a aposentadoria milionária que conquistou, foi entrando em depressão. Até que um dia se suicidou de madrugada, jogando-se da varanda de seu apartamento de altíssimo padrão, em Goiânia.

Vivi muitos dramas de perto.

Eu os chamava de “cases”, até um deles acontecer comigo. Passei a ver que aquilo era vida, a minha e a dos outros. Seja como for, essas experiências ajudaram a definir meu modelo de atendimento. E ainda tinha muita coisa para acontecer.

Foto: Alan Marques/ Folhapress Foto: Alan Marques/ Folhapress

RELAÇÕES PERIGOSAS

Corumbá, no interior do Mato Grosso do Sul, não muito longe da fronteira com a Bolívia, estava quente como o diabo naquele começo de outubro. A cidade fica incrustada num maciço de pedra em meio ao pantanal. Eu me lembro de alguém me falar que as piscinas ali -- artigo de luxo -- não eram escavadas: era preciso usar dinamite para construí-las. Imagine uma pedra encravada num lugar ardente. Eu estava ali na véspera da eleição de um amigo meu como senador da República. Delcídio do Amaral, que conheci anos antes como Delcídio Gómez, ou simplesmente Delta ou Talento, como sempre o chamei.

Fora visitar a mãe de Delcídio, uma pantaneira que poderia ser personagem de qualquer produção. Morava numa casa de madeira com palafitas, comuns no pantanal. Onça ali não era coisa de documentário: era parte da paisagem. Delcídio e a mãe eram uma substância só.

No dia da eleição, percorri as zonas eleitorais com ele, situadas na rede estadual de ensino. Saímos depois para Campo Grande, capital do estado, num monomotor tão vulnerável quanto apertado e escaldante. Lá, acompanhamos o dia. No final, Delcídio estava eleito.

O mundo do poder é cheio de relações acumuladas ao longo do tempo. Elas vão adquirindo significados, positivos ou negativos, à medida que as trajetórias pessoais seguem seu curso. É um jogo perigoso, sempre, mas é nas relações pessoais, na confiança, na admiração e,às vezes, na antipatia que uma parte desse torneio é disputada.

Naquele dia, em Corumbá, nem eu, nem Delcidio, nem ninguém poderia sequer supor que ele acabaria se tornando parte de um capítulo da História do país, como veio a se tornar, ainda mais na situação de desconforto de ter seu mandato arrancado por seus pares e se ver diante da inevitabilidade de se tornar um colaborador judicial. Aquela cena foi 14 anos antes disso tudo.

Conhecer há muito tempo, ter algum tipo de intimidade, isso pode fazer diferença, sobretudo nas crises. Durante elas, todos estão desconfiados de tudo e, se você de alguma forma possui uma credencial de conhecimento prévio, isso definitivamente não atrapalha. No caso de Delcídio, eu o conhecera na moagem, como ele dizia. Eu o acompanhei lá no início, quando íamos fazer corpo a corpo e distribuir santinhos nas ruas. Conhecia sua fiel companheira Maika e vi suas duas filhas ainda meninas.

A imparcialidade é tão difícil de encontrar no mundo, não?

Ele saber quem eu era e, sobretudo, como eu era tinha uma enorme importância para mim. Eu o ajudei em algumas situações ao longo de anos. E ele foi sempre carinhoso e generoso em termos afetivos e pessoais.

Estava em 2001 num restaurante no Leblon, Rio, quando o ainda diretor da BR, Delcídio, nos chamou para tomar uma decisão crucial. O PMDB, o DEM e o PSDB, além do PT, o queriam filiar para a eleição de 2002. Eu disse:

- Vá pelo PT. Se perder, pelo menos não vão persegui-lo por ter sido diretor da Petrobras tucana.

O PT era o porta-voz da moralidade então.

Delcídio acolheu essa linha. Virou secretario do governador sul-mato-grossense, Zeca do PT, e depois candidato ao Senado, É não é que, uma década depois, Delcídio se tornaria acusador numa colaboração judicial contra os desmandos da Petrobras petista? Surpreendentes os caminhos da vida.

No mundo da comunicação, que faz parte do mundo do poder e do mundo das relações humanas -- e diria mais, do mundo do mundo! -- milhagem conta. Não são relações técnicas e científicas. Por isso o consultor voava feito mariposa, de um lado para o outro. Não era algo sistemático ou pragmático. Era instinto: conhecia gente de todo tipo e, lá na frente, isso podia ser bom ou, pelo menos, podia não ser ruim.

Nas minhas relações com a imprensa, isso tinha o seu valor. Era a versão editorial do Banco de Favores: uma informação aqui, uma percepção acolá. Era importante ter também na imprensa gente que confiasse em mim.

Um jornalista amigo me lembrou a expressão americana que pode ser aplicável a caras como eu: “pundits”. Caras que oferecem para a imprensa suas opiniões e “insides” do poder ou da política, a partir de seu conhecimento dos meandros. Fernando Rodrigues, disparado o melhor jornalista de minha geração e a versão humana do Google (melhor, eu diria), chamava personagens assim de “ cognoscentes”. Muito chique, mas acho que mariposa também é uma boa definição.

O fato é que, para ser “pundit”,é preciso comer muita poeira antes.

Eu estava em Barcelona quando fui me encontrar com o empresário Gregório Marin Preciado. Ele tinha estado na imprensa um tempo antes como um alvo para atingir a candidatura de José Serra à Presidência da República em 2002. Tinha estado também com Gregorinho, seu filho. Os dois abriram o coração. Quando voltei ao Brasil, Serra me chamou para ir ao seu gabinete de senador, em Brasília. Me olhou nos olhos para ter certeza de que eu não estava do lado da futrica, mas do dele.

- Senador, quando eu tinha vontade de bater, eu estava na imprensa. Não estou mais. Isso já passou.

Ao longo dos anos, sempre que me encontrava, Serra casualmente fazia um elogio como só ele sabia fazer, sobretudo na frente de terceiros:

- O Mário? É perigoso...

O cognoscente aqui, eu, redarguia:

- Se eu fosse, o senhor não sabia...

Noutra situação, lá vinha ele:

- O Mário? É perigoso...

- Modéstia sua...

Não era fácil a vida de pundit. Serra sempre foi o meu candidato eterno a presidente. Quanto mais o tempo passou, foi ficando melhor.

Fazer parte da paisagem era muito importante para se movimentar no poder. E poder não era só a política: era o mundo empresarial e da imprensa também. Tudo isso é poder. Um dia, um futuro ministro me procurou alarmado. É que havia gravações entre ele e uma morenaça que trabalhava com um doleiro. Ele estava com medo de que isso fosse parar num telejornal. Liguei para o repórter:

- É só sexo. Não tem grana.

O nome do cara não saiu. Noutra vez, dois deputados citados numa lista de doações de empreiteira pediam a minha ajuda sobre como reagir. Um deles também se tornaria ministro depois. Minha única recomendação foi “Dê a resposta através de sua assessoria”. “A assessoria do deputado afirma que…”. Não grave nem poste nada nas redes sociais. Esse tipo de fragmento, um dia, pode virar contra você. Respostas terceirizadas, nunca. Minha inspiração eram os bumerangues: lançar é fácil, mas tem que ver como volta.

(Sempre acreditei na força da primeira reação. É como um diapasão: dá o tom do resto).

Foi assim que me vi descascando abacaxis de todos os lados na política. Governadores em campanha ou em chamas, senadores, deputados, prefeitos. De graça, também, era covardia: quem podia competir?

Um das coisas que políticos adoram falar de jornalistas é que somos fofoqueiros. Me coloquei aqui no “somos” porque os políticos também achavam isso de caras como eu: para os jornalistas, não somos mais jornalistas. Para todos os demais, nunca deixamos de ser. Achava que os dois lados estavam certos. Ou seja, não somos de nenhum lado. Como eu me via? Sem lado mesmo. Era a arrumadeira do motel, e não o dono, nem os fregueses.

Mas os políticos sempre deixaram claro, aqui e ali, que eu era futriqueiro. Eu sempre me defendia:

- Saí da faculdade de jornalismo absolutamente comprometido a só falar a verdade e a nunca fazer fofoca. Daí comecei a andar só com políticos, empreiteiros, criminalistas, acusadores e me tornei o que sou. De quem é a culpa?


Mantive um contato regular e prazeroso com José Dirceu. Acompanhei muitas de suas interações políticas e midiáticas ao longo dos anos.

No livro de Otávio Cabral, “Dirceu, a Biografia”, resenhado pela “Folha de S.Paulo”, sou mencionado numa interação com Dirceu. O episódio narrado no livro ocorre depois, bem depois, de Dirceu ter sido acusado de ser chefe de quadrilha do mensalão. Dizia a resenha da “Folha”:

“Ainda nessa fase, não faltaram atritos com Lula. O ex-presidente ‘quer me proibir de ganhar dinheiro’, teria reclamado Dirceu a um confidente, Mário Rosa. Este comenta: ‘Lula tem razão. Imagina você com dinheiro como ia mandar mais do que ele no PT’."

Dirceu responde a sério, segundo Otávio Cabral: "E eu lá preciso de dinheiro para mandar mais do que o Lula no PT?".

Dirceu, abatido, era ainda uma força da natureza. Sempre respeitei José Dirceu. Alguns desinformados na imprensa publicaram inúmeras vezes que eu havia recebido recursos da empresa dele. Foi necessário que toda a estrutura empresarial dele fosse esquadrinhada nas quebras de sigilo bancário para que essa intriga perdesse qualquer veracidade: gostava de Dirceu e admirava a forma potente com que exercitava sua liderança. Éramos amigos, nunca patrão e empregado, o que sempre me honrou, por sinal.

Outro querido amigo era Paulo “Preto”, Paulo Vieira de Souza, acusado de ser de tudo pelo pessoal do PT. Ele era do PSDB. Um dia, no meu perrengue, pedi a ajuda de Paulo e ele, como sempre, foi solidário. Mais do que tudo, aquele macho “alfíssimo” gostava de ser reconhecido pelo seu mais importante triunfo: ele era Iron Man, um superatleta. Ali, me deu uma grande lição:

- Mário, você chegou ao cume do Himalaia?

- Himalaia?

- Sim, o seu Himalaia.

- Acho que sim. Acho que cheguei.

- E você olhou bastante? Olhou tudo? Viu direito? Guardou a imagem na memória?

- Vi sim.

- Então agora começa a descida. Quase ninguém chega lá e quem chega só não sofre mais porque pelo menos ficou com a lembrança do que viu.

- Paulo, muito obrigado!

Uma vez o senador Lindberg Farias, um fenômeno do qual sempre fui fã, me pediu uma resposta no meio de uma carreata no interior do estado do Rio. Minutos depois, estava postada. Era um vídeo dele com muita emoção. Ele era ágil.

Noutra vez, num casamento do senador Romero Jucá, em Brasília, encontrei o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, durante a recepção. A paranoia era geral, efeito da operação Lava Jato, que acossava a política. Fui cumprimentá-lo. Eu o respeitava. Com a mão em concha encobrindo os lábios, ele demonstrou que estava alerta:

- Mário, estamos todos aqui sendo monitorados.

Garçons, intrusos, abelhudos podiam estar disfarçados em todo lugar. Era esse o clima.

Nos fins de tarde de sábado, fui recebido algumas vezes na Casa da Dinda, residência do ex-presidente Fernando Collor, senador então. Uma linda vista, baforadas de charuto (dele; não fumava ali), um anfitrião agradável e gentil e o fio condutor de sempre: rumores de bastidores.

José Roberto Arruda, um dos melhores governadores de Brasília, que foi estraçalhado, me chamou algumas vezes para conversar. Era uma fera ferida.

Participei, sem querer, dos bastidores da eleição de Severino Cavalcanti para a presidência da Câmara dos Deputados, em 2005. Severino foi a surpresa daqueles dias e sua eleição foi considerada um escracho, já que ele não era assim nenhum Winston Churchill. Caiu pouco depois, vitimado por uma acusação espalhafatosa.

Da campanha de Severino, ganhei um irmão: conheci o deputado Ciro Nogueira, considerado então o “príncipe” do baixo clero. Anos depois, ele cometeu a estultice de se candidatar a senador pelo Piauí. Não tinha a menor chance, era o quarto colocado e havia apenas duas vagas. Rodei com ele o estado. Me lembro de um comício numa noite em Uruçuí, bem ao sul daquela unidade da Federação. Comemos poeira. Ele foi eleito senador e depois se tornou presidente nacional de um partido. Confiava em mim e eu nele.

Um dos episódios mais inconsequentes em que me meti foi a pedido de Ricardo Teixeira. Ele tinha um amigo, de apelido Pororoca, que estava sofrendo um calor na CPI dos Correios, logo após o escândalo do mensalão. Pois bem: um dia me vejo levando o Pororoca à sede da rede Globo em São Paulo, onde Delcídio estava prestes a participar da gravação de um programa, “Altas Horas”. Cheguei com o Pororoca, passei pelo balcão, segui para o camarim e lá o apresentei a Delcídio, na época presidente da CPI. Disse que meu convidado era amigo de Ricardo. Se Delcídio não confiasse muito em mim, ia achar que tinha algum caroço naquele angu. Ficamos ali cinco minutos, Delcídio foi para a gravação e eu nunca mais vi o Pororoca, nem, claro, cobrei nada dele. Depois o Ricardo me ligou e disse que o amigo estava grato.

(Ah, sim: duas historinhas com empresários que não vou declinar os nomes, mas revelam alguns aspectos de uma forma íntima de pensar, quando não estão posando para a imprensa).

Uma vez, falei com um grande publicitário sobre um grande empresário que adorava um contencioso. Perguntei:

- Você acha que ele é bandido?

O grande publicitário trabalhava para a empresa arqui-inimiga do fã de contenciosos. Respondeu-me:

- Não, ele não é bandido!

Estranhei tanta generosidade:

- Não?

Emendou:

- O bandido começa batendo carteira, usando canivete. Daí junta um pouquinho, compra um revolver 38 e assalta uma padaria. Depois compra um 45, uma metralhadora e assalta um banco. Esse fulano não corre nem esse risco. Ele pede seu dinheiro emprestado, vai até a loja, compra uma arma, volta e te assalta. Rouba você com o dinheiro que deu a ele. Ele não é bandido. Bandido investe alguma coisa e assume algum risco. Ele não.

Doutra vez, um importante empresário havia morrido num triste acidente causado por ele mesmo. Fui conversar com alguém da família, alguns dias depois. Eu disse:

- É, fulano morreu…

- É, mas pelo menos morreu fazendo o que mais gostava de fazer…

Achei bonito o toque. E perguntei:

- Pilotar, né?
- Não, cagada…

Mudei de assunto.

Ser mariposa dos holofotes alheios é uma fonte permanente de aprendizado. Naquela cabine apertada daquele voo de volta de Corumbá, com Delcídio, imaturamente eu perguntei ao candidato que estava vivendo o dia mais tenso de sua vida política:

- O que vai fazer se perder a eleição?

Ele me respondeu qualquer coisa e esse episódio sumiu da minha memória. Mais de uma década depois, num jantar em Brasília com sua guerreira esposa, Maika, ela me lembrou aquela pergunta desnecessária que havia feito. Tinha estado com ele aqueles anos todos. Tinha corrido o estado em sua primeira campanha. Tínhamos inúmeras vivências. Mas, às vezes, um segundo vira a nossa marca para sempre. Mesmo que não tenhamos tido a intenção de incomodar.

Essas relações são perigosas não apenas porque envolvem fama, prestigio e poder. São perigosas porque mantê-las ao longo do tempo é um mistério insondável. Na aparência, transcorrem com leveza e suavidade, mas, emocionalmente, as mudanças de estado físico podem ser fulminantes e arrasadoras. Às vezes, dez segundos e uma frase perdidos no tempo podem ser suficientes para sublimar uma vivência inteira, como eu aprendi.

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MINHA CRISE

Casa de ferreiro… espeto de aço.

Quando minha crise se abateu sobre mim, tomei muitas decisões e indecisões baseadas na intuição, no impulso, na avaliação precária de consequências. Saí convencido de que, numa tempestade dessas, se você for muito afortunado, talvez possa controlar o manche do navio, mas ninguém controla as ondas nem as correntezas do mar. Parte das soluções é uma combinação de destino com, em margem bem menor, perícia.

Você vai ver como agi quando minha batata estava assando.

Naquele novelo cheio de nós em que eu estava, muitas coisas tiveram que acontecer para que a percepção inicial sobre minha atuação fosse ficando mais parecida com a realidade. Foram desdobramentos sobre os quais não tinha qualquer capacidade de influência.

Por exemplo, houve duas delações premiadas nesse período no meu caso. Uma, de uma querida amiga, Danielle Fonteles. Ela era dona de uma agência de comunicação digital, a Pepper. A empresa recebeu um pagamento na campanha presidencial de 2010 que não tinha nada a ver com o caso em que eu estava, a operação Acrônimo.

Mas ela também estava nesse meu caso e fez uma colaboração judicial contribuindo para o esclarecimento de muitos fatos. A imprensa noticiou amplamente o conteúdo da delação. Meu nome não estava no meio.

Depois, foi a vez de um personagem central da Acrônimo falar: o empresário Bené, como era apelidado, a peça-chave das apurações. Claro, eu o conhecia, gostava dele, mas nunca recebera ou fizera pagamentos a ele, assim como também não à Pepper. Ele fez a colaboração premiada dele, a imprensa noticiou amplamente o conteúdo e também não fui mencionado.
Houve ampla cobertura na imprensa dos conteúdos dessas delações.
Casos complexos, principalmente os que envolvem aspectos criminais, são um organismo de múltiplos tentáculos. Seus próprios fatos são importantes porque, afinal, a verdade importa. Mas, no meu caso, foi preciso que desdobramentos terríveis e indesejáveis, ocorridos com pessoas que conhecia e de quem gostava, acontecessem para que o meu destino pudesse resistir. Não há ciência para isso. Os preceitos técnicos, a meu ver, têm o seu valor. Mas daí em diante, meu amigo, minha amiga, é a vida...

Sem muita pompa ou designações honoríficas, vejo hoje que segui bastante os manuais também. Estabeleci desde o início um comitê de gestão de crises à minha volta. Deparei com três fronts diferentes: mídia, política e jurídico.

Comecei contratando um conselheiro e gerenciador de crises para mim. Seu nome, Luiz Rila, um experimentado, discreto e confiável jornalista que me serviu de terapeuta, auditor, assessor de imprensa, amigo, analista político, conselheiro jurídico, confessor, guia espiritual. Enfim, foi para mim o que fui para outros.

A primeira decisão que tomei, no auge da ida da polícia à minha casa, foi facultar a Rila acesso integral a todos os meus documentos. Dei a ele minha senha do provedor da internet, para que ele lesse -- uma a uma -- todas as 15 mil mensagens que acumulara ao longo dos anos com todo o mundo, clientes, amigos, jornalistas etc.

Ele se debruçou principalmente sobre as duas empresas que me colocavam em minha trama e leu, linha a linha, as centenas de mensagens profissionais trocadas por conta daqueles atendimentos. Depois, imprimiu uma a uma e fez uma pasta para cada cliente. Ele me avisou que as mensagens tinham o que deveriam ter: troca de impressões e aconselhamentos profissionais, diante do impasse de cada dia. Nada além disso.

Noutra frente, pedi a Rila que se articulasse com meu contador e tivesse acesso a todas as minhas declarações de renda, todas as notas fiscais emitidas, todos os contratos, todas as guias de imposto recolhidas. Enfim, pedi que fizessem uma devassa em minha vida. Uma auditoria externa a meu respeito. Viu milhares de ligações de minha conta telefônica também.

Evaldo, meu amigo e contador, passou as férias de julho inteiras debruçado na mineração desses números todos. Preparou relatórios circunstanciados sobre cada questão. Como ele sempre foi psicopata na questão de recolhimento de impostos, estava tranquilo. Mas foi muito bom receber dele e de Rila um atestado de que, dali, não viriam problemas.

Veja como são essas coisas: como Evaldo sempre foi correto, achou que não precisava agir com paranoias. Dizia meu amigo Kakay que o pior cliente é o inocente. Porque, ao invés do inocente, o culpado se preocupa com tudo.

Falei com Evaldo que levasse aquela auditoria toda para meus advogados, para que eles guardassem no escritório e utilizassem na defesa, caso necessário. Alertei Evaldo de que ele poderia sofrer uma busca e apreensão também. “Eu? Mas não fizemos nada de errado?”, disse-me ele. Mas ainda assim pedi que deixasse aqueles conteúdos todos com os advogados.

Ele deixou pralá, eu também, Em 1º de outubro, não apenas sofreu busca e apreensão em seu escritório de contabilidade e em sua casa como também condução coercitiva para depoimento. Fiquei muito triste com tudo aquilo. Pedi desculpas a Evaldo pelo transtorno. Ele ficou doido com aquela situação e acabrunhado por jamais ter imaginado que algo assim sucederia.

O lado bom é que todos os registros minuciosamente escavados por Evaldo e que atestavam a correção de minha vida fiscal estavam, agora, de alguma forma no âmbito oficial. E não por solicitação nossa. Foi inteiramente à revelia.

Essa questão de impor-se uma autodevassa – uma “auto-CPI” como chamava -- sempre foi um mecanismo inicial que sugeri e realizei com os clientes. Quanto mais soubéssemos antecipadamente que tipo de contestação poderiam fazer contra meus consultados ou quanto mais pudéssemos firmar o discurso de absoluta inocência, tudo isso impactava antecipadamente o tom com que encararíamos os primeiros questionamentos e o modo como daríamos as primeiras respostas.

Estava acostumado, eu mesmo, a escarafunchar contabilidades, mensagens, fragmentos e contratos alheios. No meu caso, achei que deveria sofrer uma análise externa. Sem contar que, sinceramente, cutucar o próprio tumor dói infinitamente mais do que fazer uma punção no do alheio.

Assim, colocava em prática alguns princípios dos manuais, em meu próprio caso: um comitê de crises para me assessorar na eventual interface com a imprensa, uma auditoria externa de minhas transações financeiras. Ainda falta falar sobre o time jurídico. E sobre o político. Daqui a pouco.

No caso da imprensa, tirando aquela minha primeira entrevista no dia em que a polícia bateu em minha casa, nunca tomei mais nenhuma iniciativa nesse campo sem alinhar antes com meu consultor de crises, Rila, e meu “Mário Rosa” particular, Matheus Machado. Explico: o Matheus caiu na minha história como eu caí na de vários outros. Veio me ajudar espontânea e generosamente. Foi um repórter cascudo e depois virou o mais predador dos consultores jovens que conheci. Também me ajudou muito. Já sabia ali que -- de graça --é o preço mais impagável que podemos cobrar de alguém.

No dia da polícia em minha casa, Matheus me ligou à noite para dizer que tomara a iniciativa de corrigir uma menção ao meu nome. O jornalista tinha postado no Twitter e me chamado de “lobista Mário Rosa”. Disse-me Matheus: “Liguei para ele e pedi para corrigir: consultor Mário Rosa”, me falou.

Eu trocei: “Do jeito que essa profissão de consultor está queimada, peça a ele para colocar ‘lobista’. Fica melhor”, brinquei. É que, com o escândalo da Lava Jato, havia inúmeros personagens-chave que se intitulavam consultores. Um pouco de bom humor nessas horas ajuda.

Conversas ao telefone com repórteres? Primeiro o Rila. Conversas? Rila, depois eu. E assim evitei um pouco que o sentimento de falsa onipotência (por já ter vivido aquilo tantas vezes) me fragilizasse. Segurei minha onda. Ou melhor, quase.

Na hora em que aquela densa e atemorizante repórter da “Folha” me pediu a entrevista, vi que não tinha saída. Ela publicou a reportagem em forma de perguntas e respostas na home page do UOL naquele dia, com direito a reprodução de parte na versão impressa do dia seguinte. Eis o que falei. Ah, sim, você vai ler o que declarei ainda com o sangue quente, uma hora depois da ação policial que sofri. Foi sem preparo algum, espontaneamente.

Consultor diz que trabalhou de graça para a campanha de Pimentel

Andreia Sadi
De Brasília

O consultor Mário Rosa, dono da MR Consultoria, disse nesta quinta-feira (25) que contratou a Oli Comunicação, pertencente à primeira-dama de Minas Gerais, Carolina Oliveira, para que ela a auxiliasse numa das maiores “crises empresariais” dos últimos anos.

Ele pagou cerca de R$ 2 milhões para a empresa de Carolina -- metade do faturamento da empresa dela de 2012 a 2014. Por uma questão contratual, Mário não revela os nomes dos clientes.

A Polícia Federal aponta os grupos Marfrig e Casino (controlador do Pão de Açúcar) como autores de repasses de R$ 595 mil e R$ 362,8 mil, respectivamente, para Carolina. Nesta quinta, a empresa de Mário foi alvo de busca e apreensão em Brasília.

Rosa nega privilégios com os clientes com contratos no BNDES -- o banco estatal é subordinado ao Ministério do Desenvolvimento, à época comandado pelo governador Fernando Pimentel.

Rosa, que também é estrategista de comunicação, atuou como consultor informal na campanha de Pimentel. Ele diz ter trabalhado de graça.

“Tenho dois modelos de atendimento: os ‘planos de saúde’, que são as empresas privadas, das quais cobro mediante contrato, e os que chamo de ‘SUS’, que são todos os demais, os quais atendo de graça’”.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista:

Folha - Você é um gerenciador de crises dentro de uma crise.

Mário Rosa - Sou conselheiro de escândalos há 20 anos. Sou um carteiro que está no meio de uma zona conflagrada. Situação curiosa. Acabo sendo parte, mas penso assim, sem pretensão: se você é o Massa e está correndo na Fórmula 1 e ele cai, só cai porque está na Fórmula 1. Então, é um acidente de trabalho, faz parte do jogo. Todo o meu dinheiro é declarado, eu pago todos os impostos e emito todas as notas fiscais.

Folha - Como foi a contratação de Carolina?

MR - Por uma questão de regra contratual, eu não posso mencionar os clientes privados que eu atendo, mas minha empresa contratou a empresa de Carolina quando ela não era um agente público. Ela me ajudou muito numa das maiores crises empresariais e privadas da história do país nos últimos anos, prestou aconselhamento, ajudou a fazer avaliação de cenário, era muito bem relacionada na imprensa. E, nessa crise, no dia a dia, era importante monitorar ações de nosso contendor naquele momento, foi muito importante ter noção de imprensa naquele cenário. A solução desse conflito empresarial entre dois agentes privados foi solucionada em um ambiente privado. Não teve arbitragem de nenhuma instância pública.

Folha - Mas Pimentel era ministro do Desenvolvimento na época.

MR - Carolina trabalhou na maior empresa de comunicação do país, me ajudou muito a conduzir um trabalho que exigia discrição, qualificação e muito profissionalismo. O trabalho foi feito mediante celebração de contrato entre a minha empresa e a empresa dela, com notas fiscais emitidas entre as empresas e todos os impostos recolhidos, dentro do que determina a legislação. Nunca recebi sequer um centavo de nenhum governo. Eu nunca tive contrato com a esfera pública.

Folha - Você conversou com Pimentel sobre esses casos?

MR - Tratava com ela, eu a conheci numa crise de comunicação e lidei com ela como jornalista especializada em comunicação. Depois que ela saiu do governo e abriu uma empresa, aí fizemos contrato -- que já terminou também. Foi apenas por um período específico também. Mas ela participou de reuniões com este cliente privado, eu a consultava várias vezes por dia, fazia telefonemas várias vezes por dia.

Folha - Mas vocês não foram beneficiados pelo fato de Pimentel estar no Ministério do Desenvolvimento enquanto a mulher dele trabalhava com empresas que tiveram dinheiro do BNDES?

MR - Acho que o fato de ela ter tido trajetória profissional diferenciada permitiu que tivesse acesso aos principais formadores de opinião do país, e o que eu precisava naquele momento era alguém que me ajudasse a ver como os jornalistas estavam vendo essa guerra, ela me ajudava nisso. Era uma pessoa que era receptora de demandas jornalísticas e extremamente importante. Essa batalha empresarial que eu citei era entre agentes privados, o governo não teve participação nem favorável nem desfavorável. No caso específico, as relações pessoais dela não me ofereceram nem vantagem nem desvantagem.

Folha - Carolina recebeu metade do faturamento dela por esses serviços.

MR - Ao longo dos dois anos e meio, minha empresa teve relação empresarial com ela. Posso garantir que meu faturamento nesse período foi muito maior que qualquer pagamento que eu tenha feito a algum outro parceiro meu no atendimento aos meus clientes.

Folha - Você trabalhou na campanha de Pimentel?

MR - Eu sou chamado para dar aconselhamento para políticos de todos os partidos em situação de crises de comunicação. Campanha política é uma crise de comunicação, com dia e hora para acabar, que é o dia da eleição. Eu participei de decisões estratégicas e reuniões, mas eu jamais recebi um centavo da campanha de Pimentel, de nenhuma empresa ligada a nenhum dos investigados. Jamais recebi dinheiro de campanhas. Emprestei meu conhecimento, como participei de outras campanhas em 2014 também.

Folha - Mas como? De graça?

MR - Tenho dois modelos de atendimento. Os “planos de saúde”, que são as empresas privadas, das quais cobro mediante contrato, e o que chamo de “SUS”, que são todos os demais, os quais atendo de graça. Eu treino minha mão: é como se fosse um perito forense. Nunca tive interesse comercial nessa área, mas curiosidade e aprendizado. As crises políticas são tão intensas e dinâmicas que isso me serve quando vou atender pessoas com problemas menos complexos. Sempre separei de maneira clara. Participava sem nenhum vínculo, doava o que era meu: meu tempo.

Folha - Qual a relação do Bené coma campanha do Pimentel? E a sua com ele?

MR -  Eu sabia que Bené existia, mas eu lidava com a equipe de comunicação. Temos relação de amizade, por ele morar em Brasília e eu também, mas não tem nada a ver com esse pessoal de Minas.

Folha - Usou o avião de Bené?

MR - Devo ter voado, já peguei várias caronas.

Folha - E com DanielleFonteles, da Pepper?

MR – É minha amiga, sou amigo do marido dela. Mas jamais recebeu dinheiro meu e vice-versa.

Se há uma vantagem nisso? Vendo hoje, acho que apresentei ali minhas “key messages”, como o jargão chama as mensagens-chaves, os principais pontos de argumentação definidos numa crise. Quando você fala aquilo, precisa sustentar até o fim. Senão, vira contradição. Ali, meio premido pelas circunstâncias, apresentei meus argumentos. Não foram contestados ao longo do tempo por nenhuma revelação devastadora.

Falar, na eclosão de crises, tem alguns complicadores. O primeiro é que você eleva a vara do salto. Se o que disse não puder se sustentar, você reagiu bem no primeiro momento, mas criou um problema no decorrer do processo. O segundo é que falar sempre atrai para você uma atenção desproporcional, que não convém. Ficar quietinho tem suas vantagens. É, meu amigo, a vida é maior do que as teorias e o consultor aqui flertou com seu abismo conceitual naquelas horas.

Crises fazem seus neurônios terem sístoles e diástoles. Eles ficam pulsantes: seu lado avestruz quer colocar a cabeça dentro da terra. Seu lado chimpanzé quer pular de galho em galho. Difícil é conciliar esses impulsos contraditórios: é bom saber o que tem em volta. Mas há riscos demais de engolir substâncias tóxicas ao redor ou de envenenar-se a si mesmo. Fiquei com uma estranha sensação, alguns dias depois de meu problema, quando fui almoçar com um sujeito que surgiu do nada. Falei, falei, falei. Fiquei, depois, com a impressão de que havia sido gravado. Quase certeza. Verdade? Delírio? Crise.

No campo político, também tive de suar a camisa. É que havia uma tal CPI do BNDES, que apurava eventuais questionamentos sobre o banco estatal. Como o caso a que estava vinculado guardava alguma correlação com a instituição, um deputado resolveu me convocar para prestar esclarecimentos. Havia uma guerra entre o PT e o PSDB. O governador de Minas era do PT. Então, o pessoal do outro partido queria criar um calor. E eu no meio disso…

Lembra-se do EJ? Lembra-se de muitos amigos que ajudei na vida? Banco de Favores. Comecei ligando para um sujeito que adorava, Paulo Vieira de Souza, o “Paulo Preto”. Fora acusado de tudo no passado, depois de sua passagem pelo Departamento de Estradas de Rodagem de São Paulo, no governo Serra-Aloysio Nunes. Era meu amigão e eu era fã dele. Expliquei a ele:

- Eu nunca fui ao BNDES, não conheço ninguém lá, nunca recebi dinheiro do banco. O que eu vou fazer numa CPI dessas? Vocês estão agora convocando assessores de imprensa que nunca tiveram nada com os órgãos investigados?

Paulo, na hora, se solidarizou. Eu ainda dei argumentos adicionais:

- Saiba que, se ele fizer a avaliação correta e não me colocar numa situação dessas, pelo resto da vida vou ser grato a ele. Mas, se fizer a avaliação contrária, eu vou entender. Mas, pelo resto da vida, vou falar para os meus filhos e meus netos que, uma vez, aquele senhor tentou destruir o seu pai e seu avô. Eu prefiro ser grato, sinceramente.

Liguei para Eduardo Jorge, liguei para diversos líderes da oposição que estavam fomentando a CPI. Eles me conheciam e me apoiaram. Sabiam que eu não tinha nada a ver com aquilo. A todos eles, minha eterna gratidão. Percebi um deles ressabiado, porque falava ao telefone. Eu falei:

- Meu amigo, eu não estou fazendo nada de errado. Não posso fazer nem o autolobby? Me defender de um absurdo?

Ele concordou e relaxou.

Houve lá um sabujo que, para fazer vassalagem, escreveu um documento não oficial citando meu nome. Tentava servir seu guia, que o abandonou no meio do caminho. Enquanto eu viver, jamais vou esquecer aquela molecagem.

Tive muita sorte com meus defensores. Nas primeiras horas, dias e semanas, meu Samu particular foram os advogados Ticiano Figueiredo e Pedro Ivo. Foram eles que consolidaram os primeiros diagnósticos e me deram a paz de que minha base factual era sólida.  Me atenderam com enorme competência. E de graça -- eu já tinha visto isso…

Conheci muitos magistrados ao longo da vida. Alguns deles, em caráter informal e apenas em tese, eu consultei sobre minha situação. Não estavam direta ou remotamente ligados ao caso. Achei que não havia problemas. Queria ter o olhar de um juiz. Todos, depois de verem meus documentos, me tranquilizaram. Um amigo, advogado e ex-presidente do Superior Tribunal de Justiça, generosamente cedeu horas e horas de sua atenção olhando meu caso. Deu-me um conselho que segui à risca:

- Não faça nada que você nunca fez e não deixe de fazer nada que sempre fez.

Depois, recorri a um dos maiores sábios que conheci, o advogado Aristides Junqueira, que foi procurador-geral da República. Desabei na sala dele um dia com minha papelada e a fala sem fim dos réus clamando inocência. Ele me ouviu pacientemente, por horas. Pedi a ele que patrocinasse minha defesa. Ele, mineiro, pediu um tempo para pensar. Uns dez dias depois, me recebeu de novo. Aceitou me defender.

Achei que sua aceitação era mais do que tudo uma sentença: rigoroso e com uma biografia eloquente, ele não aceitaria defender alguém que considerasse verdadeiramente encrencado. O valor dos honorários, quase simbólicos, também atestava essa minha sensação. Ele e sua competente assistente, Luciana Alvarenga, passaram a ser meu porto seguro. O estilo deles era o que mais apreciava: nada de marolas, nada de adrenalina. Melhor assim. Deixei esse peso com eles e a vida seguiu.

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Mario Rosa

Mario Rosa é consultor de imagem, diretor da MR Consultoria, e jornalista formado pela Universidade de Brasília (UnB). Foi editor da revista “Veja”, repórter do Jornal Nacional (TV Globo) e trabalhou também no “Jornal do Brasil”. Venceu o Prêmio Esso por duas vezes. É autor de livros como “A Era do Escândalo” e “Reputação na Velocidade do Pensamento”. No marketing político, atuou e coordenou campanhas eleitorais no Brasil e na Argentina.

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