PARTE 1 de 5

Entre a Glória e a Vergonha

Memórias de um consultor de crises

Mario Rosa com exclusividade para o UOL

Entre a Glória e a Vergonha

Memórias de um consultor de crises

Foto: Getty Images Foto: Getty Images

A cada canto um grande conselheiro,
Que nos quer governar cabana e vinha;
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro.

Em cada porta um bem frequente olheiro,
Que a vida do vizinho e da vizinha
Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha,
Para o levar à praça e ao terreiro.

Muitos mulatos desavergonhados,
Trazidos sob os pés os homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia,

Estupendas usuras nos mercados,
Todos os que não furtam muito pobres:
E eis aqui a cidade da Bahia.

Gregório de Matos,
o Boca do Inferno (1636-1696)

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UM CAMAREIRO EM VERSALHES

Uma das coisas que mais me irritam nesses livros de gestão e de carreiras é que ninguém fala do acaso. E digo isso não por acaso.

Trinta anos atrás, antes que eu e você imaginássemos nos encontrar por aqui, um evento casual foi determinante para construir tudo o que você vai ler daqui pra frente.

Tava zanzando pela Universidade de Brasília, onde estudei, e não sei por que cruzei com uma palestra do escritor peruano Mario (meu xará, meu Deus, percebo só agora) Vargas Llosa.

Jornalistas não são intelectuais. Raramente são. Não conheci nenhum. Escrevemos como escrevem os autores de verdade, esses caras iluminados que criam mundos na literatura. Mas a distância que separa um texto jornalístico, por melhor que seja, a começar pelo meu, de um texto literário é a mesma entre a de um cantor de boteco e o Pavarotti. Nada contra os cantores de boteco, aliás.

Mas, considerando que não sou nenhum intelectual, foi bastante por acaso que acabei naquela palestra, naquele dia. Não sei o que fiz antes, não consigo lembrar o que fiz depois, não lembro nem mesmo da palestra em si. Vai dizer que não existe destino?

Sei que Vargas Llosa estava lá promovendo um livro dele, “A Guerra do Fim do Mundo” (será coincidência?).  É um alentado volume sobre a Guerra de Canudos. Alguém na plateia, impressionado com a riqueza de detalhes da obra, perguntou ao escritor como ele havia guardado tantas minucias. Anotações? Gravações? O quê?

Ele respondeu que percorrera o itinerário todo, conversando com todo mundo sem anotar nada, sem registrar nada. E disse, eu me lembro (a rigor só me lembro disso):

- Achei que só ia guardar na memória o que fosse importante. O que eu esquecesse é porque não valia a pena guardar.

E aí é que tá o destino nisso tudo. Ouvi aquela coisa  e ela ficou guardada na minha cabeça, sem eu lembrar, esse tempo todo. Vivi a vida, fui em frente e somente quando fiquei grávido deste livro é que esse fragmento ressurgiu. Ele estava ali alojado para o dia em que eu pudesse compreendê-lo.

Este livro segue rigorosamente esse método aleatório que eu ouvi naquela palestra antiga. Foi aquela frasezinha, jogada ali no meio do nada, ouvida por mim e guardada por esse tempo todo, que ligou a ignição que me conduziu nesta narrativa.

Atenção, meninos e meninas, guardem o que este cara tem para lhes dizer: às vezes, um evento banal que você viveu pode ganhar sentido um dia.

O tempo é uma linha que precisamos viver para conectar os pontos.

Nossa! Nada mau para um cantor de boteco…

Se há uma coisa boa em ter vivido uma vida, sobretudo se no meio ela foi interessante, é chegar a um certo ponto e poder conectar várias coisas  dispersas. É um mosaico, cheio de  pedacinhos de coisas diferentes que se juntam num certo momento e formam um todo.

E aí, como na palestra que não sei por que vi, mas agora sei, esses fragmentos vão se juntando a outros e, no final,  você tem uma vida cheia de cacos de vidro de diversas cores, e a sua memória cola essas pecinhas todas naquilo que um dia descobre ser você. Ou ter sido você. Hoje tenho certeza de que eu fui eu. Pelo menos, até onde sei.

Existem diferenças entre memórias e biografia. Biografia é coisa pra gente grande. Memória pode ser de qualquer um. Não acho que você vá ler a minha história, nem a História, embora tenha uma porção de estória de gente famosa aí no meio.

Acho que isso lhe oferece acesso a uma vida um pouquinho fora do normal. Só isso. Tomara que goste.

Tava lá pelos 30 anos quando já tentava decifrar esse mistério das lembranças: por que a gente lembra de uma cena, de um momento qualquer da infância ou do passado, e não tem a menor ideia do que aconteceu antes ou depois?

Desenvolvi minha interpretação particular desse fenômeno. Sabe, naqueles filmes, quando há um naufrágio e o sobrevivente chega a uma ilha deserta e põe uma mensagem na garrafa e a arremessa ao mar? A garrafa vai indo, seguindo as correntes, até que, um dia, chega ao continente e alguém volta para salvar o náufrago.

Acho que as lembranças isoladas e pontuais são essas garrafinhas que mandamos pra nós mesmos, pra que um dia, quando sejamos “grandes”, voltemos até nós pra nos salvarmos. Você vai ver uma porção de garrafinhas minhas boiando por aqui. Quem sabe você se encontra por aí?

Uma das delícias deste livro para mim foi a forma como ele nasceu: ele simplesmente nasceu. Eu não o fiz. Só tive que aguardar a gestação. Alguém tinha de digitar os teclados. Meu corpo fez isso. Não escrevi. Fui, acho, o primeiro leitor.

Sempre tinha ouvido falar que muitos autores de primeira escrevem sem planejar nada. O livro vai surgindo e eles vão navegando. Morria de inveja quando ouvia isso. Tudo bem que falar da minha vida é infinitamente mais fácil do que fazer ficção, mas senti um pedacinho desse prazer de ir do nada para o lugar nenhum nesta escrita. Tudo caiu da árvore: ploft!

Uma das poucas coisas chatas de ter escrito livros era que, volta e meia, um ou outro perguntava: “Quando é que sai o próximo?”.

“Sair como, se ainda não entrou?”, perguntava eu de volta. Este livro se formou dentro de mim, sem eu saber, e saiu de parto natural, mas apressadamente. Eu o escrevi em duas semanas.

Lembrei de quando visitei um monumento de 500 colunas de concreto, cheias de ornamentos delicados, feitas pelo meu irmão e amigo, o pintor Siron Franco. Era uma obra para comemorar o quinto centenário do descobrimento. Uma coluna para cada ano. Perguntei como se sentia depois de realizar algo tão prodigioso. “Tá vendo todas essas toneladas aí? Isso é tudo loucura que tava dentro da minha cabeça. Agora não tá mais”, disse-me Siron. Ao escrever, aqui, finalmente senti o que ele quis dizer.

Uma coisa boa foi quando eu percebi qual deveria ser a “voz narrativa” que iria contar a história. Nossa! Jornalistas adoramos, de vez em quando, frases gongóricas. Voz narrativa é apenas uma forma de chamar o jeito de escrever. O narrador aqui é um cara que soltou um pouco a franga. Não queria adotar aquele tom de pinguim de geladeira que você já viu por aí.

Meus outros livros eram todos coisa de engenheiro: começavam estruturados, subdivididos, tudo previamente concebido, o que dizer em cada capítulo, quantos capítulos etc. Este aqui é coisa de arquiteto: surgiu uma forma e, depois, que se danem os calculistas para colocar tudo de pé.

Não tenho nada contra a literatura corporativa. Nos tempos em que a nobreza reinava dos castelos, saiu um Maquiavel. Agora que ela mora nos escritórios, é natural que surja um Warren Bufett. Cada um na sua. Mas quis quebrar um pouco o tom de certeza que existe nesses livros que se passam na pessoa jurídica. Espero ter conseguido, ao menos um pouco.

Não fui um personagem relevante e, muito menos, testemunha ocular da História, ao menos à altura desse título pomposo. Passei por uma porção de coisas simplesmente porque estava lá.

É por isso que me considero uma espécie de camareiro que vivia no Palácio de Versalhes.

(Vou explicar isso aqui um pouquinho mais. É porque jornalistas são obrigados a “contextualizar” coisas, partindo sempre do pressuposto de que o leitor é um imbecil. Se você não se acha assim, pule o próximo parágrafo).

Versalhes era a sede do poder real francês, símbolo do rei sol, Luís XIV. O mundo girava em torno da nobreza e, no centro dela, estava o rei.

Capitais, de alguma forma, são sempre Versalhes. Capital é uma cabeça cercada de gente por todos os lados. A capita, no caso, é o rei ou o nome que se dê a ele.

Vivi em nossa Versalhes cabocla a minha vida toda. Quando escrevo este livro, Brasília tem 56 anos, eu 52.

Expandindo o conceito de “capital” para o significado de “elite”, vivi profissionalmente no meio disso ou de parte disso, na minha idade adulta.

Sempre tive muito claro qual era o meu papel: eu era um lacaio. Nobres eram os que eu servia. Podia me vestir parecido; podia morar em aposentos patinados que a choldra considerasse cortesãos; podia comer as migalhas dos majestosos banquetes; podia até ser confundido e ir parar na guilhotina. Mas eu não era nobre. Era serviçal. E, como era um empregado doméstico e de confiança, pude circular por Versalhes inteira, com o meu disfarce de consultor de crises.

O meu é o relato de um camareiro.

Nota pé de prefácio de consultor de crises: sabe aquele trecho “jornalistas adoramos…” que aparece uns parágrafos ali atrás? Pois é perversidade pura. Uso a primeira pessoa do plural para me chamar de jornalista, você reparou? Mas os jornalistas acham que eles são eles e que caras como eu são caras como eu. Então, esse comentariozinho largado ali é uma ofensa grave para alguns. Rezam os bons costumes que não somos do mesmo ramo. Será? Mas o legal, para você, é ver como um pequeno caco invisível jogado num texto, meio sem querer, pode ser um contrabando mortal. Será que eu fui imparcial, neutro? Se me perguntarem, eu direi que fui, embora isso não tenha muita importância. Afinal, eu não sou jornalista.

Sunny Isles
Flórida
Junho de 2016

Foto: Ed Ferreira/Folhapress, PODER Foto: Ed Ferreira/Folhapress, PODER

É A POLÍCIA

Vamos começar num tom bastante grave. De vez em quando, vou falar sério aqui.

Na alvorada do dia 25 de junho de 2015, o toque insistente da campainha de minha casa, em Brasília, ganhava uma sonoridade estrondosa, contrastando com a quietude do lusco-fusco. Confesso que meu primeiro pensamento foi o de que algum funcionário tivesse esquecido a chave, mas, enquanto descia a escada, ainda tonto de sono, não entendia o porquê, afinal, de tanta ansiedade. Não fazia ideia mesmo, né?

Abro a porta e, do outro lado do portão, uma voz imponente anuncia:

- Senhor Mario Rosa? É a Polícia Federal.

Estávamos vivendo um ano particularmente traumático no Brasil. Muitos chamavam aquilo de “Estado Policial”, tamanha a repercussão que as sucessivas operações causavam na opinião pública. Líderes outrora festejados, corporações antes inatingíveis, profissionais bem-sucedidos de diversas áreas, estavam sendo  todos jogados no mesmo saco. Talvez ralo, tragados um a um para o epicentro de escândalos que monopolizariam a atenção da mídia. As investigações das entranhas do poder político e econômico, hoje, já são História.

Pois, eu, estava sofrendo naquele momento um dos mais emblemáticos símbolos daquele protocolo dramático com que a sociedade começava a se acostumar: estava sofrendo um mandado de busca e apreensão, parte de uma etapa de uma grande investigação que, naquele mesmo dia, estava sendo deflagrada em dezenas de outras casas e empresas  ao redor do pais. Era a Operação Acrônimo.

Aos poucos - questão de segundos --, fui tomando consciência da dimensão do episódio que estava acontecendo e que abalaria minha vida. Abri o portão e deparei com uma cena que a maioria dos brasileiros só teve a oportunidade de ver através do noticiário: duas viaturas e uma dezena de policiais trajando o uniforme preto, com o aparato compatível. Lembro-me de ter observado os distintivos dos agentes, impactantes, enquanto cruzavam de maneira resoluta o portão semiaberto de minha residência. Eu trajava camiseta e cueca. Um deles logo informou:

- Estamos cumprindo um mandado de busca e apreensão.

Um cidadão comum não está preparado para encarar uma situação como essa. Eu também não estava. Em nenhum momento  naquele instante, ocorreu-me o motivo daquele ato. Os policiais foram entrando em minha casa e um deles, gentilmente, sugeriu-me que fosse vestir uma roupa adequada. Mecanicamente, segui para o segundo andar em busca de uma bermuda. Alguns passos depois, percebi que estava sendo acompanhado de perto por um policial até o armário de roupas de meu quarto.

Visto sob a perspectiva do tempo -- essa substância etérea e escassa da finitude que nos ensina tanto --, aquele meu infortúnio ganharia um sentido muito especial para mim. Embora, ali, naquele instante exato, não fizesse a menor ideia.

Ao longo das semanas e meses que se sucederam, fui aos poucos refletindo sobre o que poderia retirar de útil  dessa vivência tão amarga e de todas as suas consequências. É isso que quero compartilhar com você, além de uma coleção de situações esquisitas por que passei por causa da profissão inusitada que inventei pra mim.

Fui jornalista na minha juventude. Vivi, de uma perspectiva privilegiada, inúmeros acontecimentos a que chamamos comumente de notícia. Testemunhei ruínas. E participei, como profissional, de momentos dramáticos da vida alheia, quando não fui eu mesmo a ave agourenta de algumas delas. Costumo dizer hoje que entrei no mercado de escândalos, primeiro, como fornecedor e, apenas depois, como gerenciador de crises. Fica mais chique.

Como jornalista, tive uma carreira relativamente boa. Fui o que se chama de repórter investigativo. Ou, como alguns me chamavam, urubu. Ganhei meu primeiro prêmio Esso com 26 anos. Foi uma matéria no antigo “Jornal do Brasil” (veja aí no Google, se quiser). O prêmio Esso era uma espécie de medalha olímpica da minha profissão. Depois, voltei pra revista “Veja” (já tinha trabalhado lá antes), justamente no ano do impeachment do presidente Fernando Collor. Ganhamos o prêmio Esso de jornalismo com uma série de reportagens. Uma delas era minha. Outra medalha.

Aí, cansei.

Saí do jornalismo investigativo e fui trabalhar em televisão. Comecei como repórter da Rede Globo em São Paulo. Como nunca tinha trabalhado em TV, fui mandado para o horário da madrugada, o de menor audiência. Da meia-noite às sete da manhã. Era estranho pra mim, no início, imaginar que só apareceria na tela se alguém botasse fogo num barraco, liderasse uma chacina ou coisa desse tipo. Já vivia ali da tragédia alheia.

Depois, fui melhorando. Virei repórter do “Jornal Nacional”.

Dois anos à frente, um dia um mano meu lá, o Canarinho, cinegrafista, meu camarada, ele me disse assim:

- Rapaz, vá fazer outra coisa na vida.

E eu fui. Pedi demissão, fui fazer campanha eleitoral (preparava o candidato José Serra para debates de TV na campanha de 1996). Enfim, depois eu conto o resto.

Fui feliz como jornalista, mas, de repente, decidi partir pra outra. E fui, sem saber ao certo onde ia dar. Parafraseando Getúlio Vargas, ao contrário, saí da História para entrar na vida.

Sabia apenas que queria fazer outra coisa. E os caminhos incertos me levaram ao meu destino. Tornei-me um consultor de crises, atividade que vinha desempenhando havia duas décadas.

Como consultor, acompanhei de perto e de dentro um monte de encrenca. Ou, mais formal, provi aconselhamento para alguns dos maiores líderes e algumas das maiores organizações de meu tempo.

Especializei-me num nicho que constituía aconselhar pessoas e empresas que estivessem em meio a escândalos políticos e empresariais. Era um estresse danado. Era navegar na neblina, sem muitos instrumentos.

Eu me encontrei justamente quando percebi que essa seria a minha. Trabalhei feito um mouro e ainda sobrou tempo para escrever três livros sobre o tema que me arrebatou e pelo qual me apaixonei: as crises de imagem, as crises de reputação.


Voltando agora àquela operação policial lá em casa, entendo que essa vivência me proporcionou uma perspectiva rara: afinal, eu era um consultor de escândalos lidando com uma situação extrema que muitos dos meus clientes já haviam enfrentado.  Só que, agora,  não era um “case”. Era a minha vida. O que eu ia fazer? Como me comportar? Tornei-me involuntariamente cobaia de meus próprios experimentos.

E foi aí que enxerguei beleza e sentido naquele amargor que a vida estava me oferecendo. Afinal, o que a teoria dos meus livros poderia me oferecer na prática quando o alvo não era o outro, mas a minha própria vida, a minha família, a minha realidade?

O que dos conceitos teóricos me serviria? O que dos conceitos abstratos, tantas vezes recitados por mim para os outros, por vezes mecanicamente, reconheço hoje, eu poderia aplicar para mim mesmo? O que ficaria de pé? O que, por mais teoricamente correto, eu seria capaz de confirmar na minha experiência real?

É essa a reflexão que quero compartilhar com você, relembrando uma série de enroscos que vivi, dando o meu testemunho das incontáveis situações que presenciei. É esse o sentido que retirei dos momentos de medo, vergonha, incerteza em relação ao futuro com que me defrontei.

Aprendi o óbvio que os manuais técnicos de comunicação, com todas as suas certezas absolutas chatas, seus dialetos dogmáticos com expressões americanas pedantes, quase nunca abordam. E digo isso fazendo um mea-culpa, pois alguns deles são de minha autoria e acabaram sendo aplicados em escolas de comunicação por todo o país.

Pois é, mas essa parafernália toda, cheia de gráficos, setas e números não é capaz de aliviar a dor ou o medo daqueles que estão sofrendo diante de nós, aquilo que, durante muito tempo, eu chamei de “clientes”. Nada como tomar uma porrada para aprender.

Só quando o destino  da gente está sendo vivido em tempo real e sentimos a carga emocional de estarmos no meio, entre as duas pontas desse enorme linhão de transmissão chamado vida, é que podemos sentir a eletricidade do imprevisível atravessar nossas entranhas.

Sentimos aí a vida, a vida, a incerta vida que não cabe nos manuais, trafegando por nosso corpo e nossas emoções sem saber onde tudo vai parar.

Escândalos eletrocutam a alma muito antes de incinerarem a reputação, a marca ou essas coisas que estão nos manuais.

Poucas vezes temos a sensação de estarmos conectados em tempo real com nosso destino e com todas as possibilidades assustadoras que isso oferece. Numa grande crise, é isso aí.

Nessas horas, preceitos podem ser úteis. Mas ali está, como eu mesmo estive, alguém sentindo emoções, dores, medos, fracasso, vergonha e talvez remorso.

Eu, que sempre tinha me visto como uma enfermeira, senti na pele o que é ser paciente. A enfermeira aplica com precisão técnica, mas só o paciente sente a picada da agulha. E sentir a picada muda tudo.

Sentir, e não apenas pensar, transforma a nossa visão sobre essa coisa toda. Pois estabelece uma empatia única que espero poder mostrar para você. Oncologistas, assim como consultores de comunicação, aprendem muito e são úteis para enfrentar as chagas alheias. Mas um oncologista com câncer pode sopesar melhor quanto e como os conceitos podem ser aplicados.

Os fundamentos de minhas certezas profissionais foram postos em xeque quando eu senti na carne de médico da reputação alheia a fragilidade do paciente em mim mesmo.

O que sobrou desses experimentos? Esse é o mote deste livro: quando o meu é que tava na reta. E aí?

Vou falar sério, mas vou ser muitas vezes escrachado . Pra você não ficar com a sensação de que está lendo um manual de autoajuda, nem eu com a de que estou escrevendo um. Embora, no fundo, possa ser. Já fiz isso à beça e não me arrependo. Vou tocar na bola do meu jeito. Vou chutar de bico e, às vezes, com efeito. Não vai ser tão quadradinho. Porque a vida não é quadradinha.

Sentindo na pele, arredondei finalmente minhas quinas.

E olha que eu já tinha rodado bastante até chegar ali...

Foto: Marlene Bergamo/Folhapress. Digital Foto: Marlene Bergamo/Folhapress. Digital

O MAGO

Entrei na vida de Paulo Coelho porque ele me chamou. E me chamou pelo mundo afora. Sério.

Um dia, acordo e o respeitadíssimo colunista Lauro Jardim me pergunta se eu tinha lido. Lido o quê? Ele me conta que Paulo Coelho tinha me citado e a um livro meu na coluna que escrevia para jornais em escala mundial. Ele mencionava que tinha lido meu primeiro livro, “A Síndrome de Aquiles”, em que comparo os atingidos por escândalos ao personagem da mitologia grega. Aquiles foi um general vitorioso, mas entrou pra História por uma única derrota. Aquele raio ou lança atingiu seu único ponto fraco, o calcanhar, que se transformou para sempre no símbolo de seu infortúnio, o calcanhar de Aquiles.

Pois é essa inversão súbita da imagem de personagens que tiveram uma trajetória inteira de conquistas e que padecem por um único golpe fatal que eu chamava de síndrome. Uma síndrome que atinge justamente os vencedores. O que eu sugeria? Que reconhecer a fragilidade e protegê-la é a grande lição de Aquiles. Perceber nossas fraquezas não é sinal de fraqueza: é quando nos tornamos mais fortes. Proteger o calcanhar, em termos de reputação, é adotar a prevenção. É mapear nossos pontos vulneráveis sempre que possível quando estamos ganhando todas. E protegê-los antes que o raio parta.

O Paulo Coelho ficou amarradão nessa história. Reuniu a equipe dele e discutiu internamente o livro. Depois é que me disse isso, quando o conheci. Registrou no artigo uma frase do livro que o enfeitiçou: a crise dá sinais.

Arranjei o telefone dele e liguei todo empolgado. Não sei exatamente como, mas acabei indo passar a virada do ano com ele na casa que ele tinha num lugarejo no interior da França, perto da divisa com a Espanha e uma vista espetacular dos Pireneus. Aproveitei e levei os originais de meu terceiro livro, “A Reputação na Velocidade do Pensamento”, que discute a questão da imagem e da ética no mundo digital. Pedi então que ele fizesse o prefácio, o que depois fez.

Cheguei à cidadezinha de Saint Martin. Por coincidência, ele convidara também o ex-todo-poderoso ministro José Dirceu, àquela altura já bastante massacrado pelo mensalão, o maior escândalo político brasileiro até então (releve essas explicações um tanto maçantes, mas é aquela velha história: jornalistas aprendem que precisam sempre “contextualizar” os fatos, sob a premissa de que o leitor não é obrigado a saber do que estamos falando. É um cacoetezinho profissional, mas, se não fizer desse jeito, meus professores de jornalismo vão dizer que não aprendi nada).

Passamos a virada do ano rezando numa gruta, em Lourdes, onde está situada a imagem da santa. Chuviscava e tudo parecia esquisito. O Paulo é esquisito. Eu sou esquisito, você deve ser esquisito. Quem não é?

Ele é esquisito, mas é adorável. Carrega essa cruz que é a fama mundial, a mística de mago, o que o acaba isolando. Ninguém aguenta ser visto o tempo todo como mago e, pior, ter que entender que a grande maioria das pessoas não vê o que ele é -- uma pessoa --, mas uma representação do que projetam nele. Tem uma imagem que é um cristal: ele é do bem. Mas gerir essa marca global em que se transformou, avaliar permanentemente suas atitudes, condutas, posicionamentos (no caso dele, globais também) é algo que o deixa o tempo todo em alerta. Acho que foi a paranoia que nos uniu. A minha era gigantesca àquela altura.

Paulo jamais enfrentou uma crise com c maiúsculo, dessas com que você vai cruzar muitas vezes durante o livro. Mas ele levava a ideia da prevenção ao estágio da obsessão. Tudo na cabeça dele está conectado com tudo. Então, qualquer mínimo sinal dispara uma ensurdecedora sirene interna e isso hipnotiza suas atenções de imediato.

Nos mais de dez anos em que conversamos regularmente, problemas mesmo, desses de dilacerar a imagem pública, ele nunca enfrentou. Mas estava sempre com a faca nos dentes preparado para qualquer invasão. Na aparência, o mago era um ser plácido que vivia no mundo da lua, uma espécie de monge tibetano que dialogava com o cosmos. Na prática, uma fera em permanente estado de alerta total e a um bote de defender seu território. Paulo tem uma das reputações mais sólidas de um brasileiro ou de qualquer um no mundo. E gere isso solitariamente do alto de sua torre de marfim de controle mental.

Ao mesmo tempo, ele adorava ser irreverente. Talvez por causa da geração rock’n’roll, detestava o lugar-comum e enfadonho dos magos bonzinhos e sem sal. Naquela altura de 2005, o Mago passar um Réveillon com José Dirceu era uma bofetada na cara do senso comum. Dirceu era o vilão. A mídia ficou louca com aquele encontro de extremos. A jornalista Mônica Bergamo cobriu aquele encontro inusitado e publicou uma página inteira na “Folha de São Paulo”, sob o título “O Bruxo e o Feiticeiro”.

Semanas depois, Paulo me perguntou qual tinha sido a repercussão. Assim, como se não soubesse… ele adorava ter várias opiniões dos outros e sentir o que esse ou aquele diziam. Eu disse a ele que era mais ou menos como o Batman passar o Ano-Novo com o Curinga, em plena batcaverna. Ele gargalhou. Sim, ele não era de rir. Quando ria, gargalhava.

O contraste entre o Batman e o Curinga era tão brutal que sobrou até pra mim. Dias depois, o colunista e ex-deputado Sebastião Nery me sentou a chibata. O título da coluna era “Quatrilho Místico nos Pireneus”. Ele começava fazendo uma associação daquele encontro casual com uma quadrilha, é claro. Falava dos dois, do escritor Fernando Morais (que também estava lá) e dedicou uma chicotada inteira  a mim, que só tinha ido lá para conhecer um mago e rezar. Achei que fosse propaganda:

• "A presença de Mario Rosa, superbruxo e superfeiticeiro, explica tudo. Ele é o papa do escândalo. Um sacerdote da corrupção depois do pecado, quando o corrupto, flagrado, precisa de confessor. Escreveu dois livros de sucesso, dois Manuais do Colarinho-Branco, que costumam estar na cabeceira dos grandes corruptos do país. Devia ser presidente nacional do PT.

• “Bem pensados, bem documentados, bem escritos, são livros indispensáveis nestes tempos de Dirceus, Gushikens, Genoinos, Delúbios, Marcos Valérios, a lulada toda. Se lesse alguma coisa além do rótulo de garrafa, Lula teria aprendido boas lições antes de seu Titanic afundar sem boia. Mario Rosa é o Duda Mendonça para depois do naufrágio”.

Na noite em que estive com Paulo pela primeira vez, fui para a casa que ele tinha, onde estavam pessoas de diversos países. Ele me apresentou, em inglês, e os apresentou a mim na maior tranquilidade:

- São bruxos amigos meus.

Nunca havia encontrado bruxos e muito menos tomado parte de um encontro social com eles. Fiquei ali tentando entender como a conversa fluía. Meu inglês era bem pior do que o de hoje, mas pressenti na cozinha que o papo tava meio estranho. A conversa era sobre saber fazer ventar. Sim, fazer ventar. O Paulo chegou e disse que não estava mais fazendo vento. 

Eu ali, com meu inglês chinfrim, e eles falando sobre ventar ou não ventar, eis a questão.

O problema de você se ver exposto a uma conversa como essa é que, a não ser que você seja um bruxo, não faz a menor ideia do que realmente está em discussão. Não domina os princípios filosóficos  elementares do debate. Não vou nem entrar no mérito da questão de fazer ventar ou não. Mas fazer ventar é algo bom ou ruim? Deixar de fazer ventar é uma atitude revolucionária? Ou é de um conservadorismo atroz? Até hoje, não sei. Comecei a noite meio (como dizer) jogado ao vento. Não ia, logo eu, aporrinhar com perguntas estúpidas de leigo a paciência de bruxos experimentados. Seria mico demais, né?

Decidi sair de fininho e me aboletei sentado no chão em algum lugar, mais ou menos vazio e na penumbra. Minutos depois, Paulo veio sentar comigo e disse feliz:

- Que bom que você veio praqui, pra esse ponto da casa.

- É? Por quê?

- É o canto da serpente.

Tinha mesmo uma serpente, não sei se empalhada, naquele canto. Ele me disse que serpente significava sabedoria. Vivendo e aprendendo.

Na hora, pintou uma euforia: eu acertei, eu acertei! Mas, então, pintou uma insegurança: se tivesse ido para outro canto qualquer, isso poderia ter sido um desastre? Um erro inaceitável? Um sinal definitivo e desabonador?

Daí em diante, eu soltei a franga. Nunca fui muito de beber, mas tomei um porre homérico para me libertar e não pensar que tudo o que fizesse -- ou não fizesse -- poderia ter uma interpretação cósmica reveladora. Embriaguei-me para não ficar com aquela sensação opressiva de que poderia estar estragando tudo, conforme me mexesse.

Fiquei bebendo ali naquele canto, com a minha amiga serpente, pois, pelo menos ali, eu sabia que  estava num lugar seguro, onde não estava cometendo qualquer heresia. Qualquer mudança de lugar e pronto: “Mario, nunca imaginei que você pudesse escolher esse canto…”. Fui bem conservador, confesso, e fiquei paradinho. Paulo e eu ficamos ali até as cinco da madrugada.

Paulo Coelho tem uma relação com a vida em múltiplas frequências, fora do normal, sobretudo se o normal é essa anormalidade a que chamamos de corriqueiro. Ele observa sinais em tudo e isso define uma série de coisas para ele.

No dia seguinte, fomos caminhar por umas igrejas próximas. Era o primeiro dia do ano, feriado. Natural que a cidadezinha estivesse vazia. A igreja estava fechada até que surgiu um cara do nada que veio abri-la para nós:

- Que bom, o ano está começando com portas abertas.

No mundo de Paulo, tudo fala, e as opções irreverentes que fazemos podem adquirir um sentido surpreendente. Para o bem ou para o mal.

Ficamos amigos de primeira. Ele é um caso talvez único: uma marca mundial ambulante, que dialoga com inúmeras coisas à sua volta para formar sua convicção. Coisas que a gente vê e outras, que só ele.

Tenho centenas de mensagens trocadas por nós ao longo dos anos (atenção, biógrafos dele, me procurem antes da minha morte. Atenção, Paulo, ha, ha, ha...). Nas mensagens, ele está sempre tratando de algum acontecimento, dúvida ou questionamento da ocasião. É meticuloso, analítico, as mensagens são enormes. E as respostas também. Ele tem olho de mosca: multifacetado. São centenas, milhares de lentes, vendo simultaneamente. Não foi à toa que sobreviveu esses anos todos no estrelato das celebridades.

Embora habilidoso e carinhoso no dia a dia, é implacável com tudo o que lhe diga respeito. Até sua biografia foi feita por ele mesmo. Explico: durante anos, guardou os próprios diários e facultou acesso a eles ao seu biógrafo, Fernando Morais. Há estórias cabeludíssimas. Mas, sempre disse isso a ele, o conservadorismo pessoal dele com a própria imagem é tão onipresente que ele terceirizou a própria biografia dando porrada  em si mesmo antes que outro qualquer o fizesse. Ou seja, por pior que fosse, ainda assim era melhor que a alternativa. Ele gargalhava. Mas não contestava.

Passamos a nos falar regularmente e marcarmos encontros anuais. Fui a Paris com ele, à Suíça, à Itália , a Lisboa e até à Grécia, para comemorar seu aniversário

Paulo Coelho introduziu em minha vida um conceito de governança, o Banco de Favores, que, para mim, é a maior instituição de todos os tempos da humanidade. Nele, a moeda são os favores. Sacamos um favor e pagamos com outro favor. Esse conceito eu tomei emprestado para aplicar na minha vida. Foi daí que surgiu o que chamo de meu SUS particular, favores meus que não tinham de ser pagos em dinheiro, em benefícios,  só em favores também. E, se houvesse calote, tudo bem. Alguém sempre depositava algum favor e cobria a diferença. O Banco de Favores não quebra nunca.

Adorava conversar com o Paulo e falar bobagens em escala industrial. Ele gostava porque eram conversas que só faziam sentido para nós.

Um vez ou outra, ele pedia um favor do consultor de crises. Eu dava com o maior prazer. Estava depositando no banco. Sobretudo no capítulo da mídia, Paulo queria sempre evitar erros. Queria ver como sua imagem poderia se solidificar continuamente, em todas as plataformas globais. Na sala de sua casa, havia um desktop que, para o mundo de Paulo, era o mesmo que a central de Houston para a Nasa: era a sala de controle. Dali, ele estabelecia diálogos e polêmicas e influenciava o mundo todo, através do Facebook, das redes sociais.

Aquela salinha de aspecto moderno me lembrava muito os pequenos oratórios que vemos nas igrejas mais antigas, aqueles aonde os papas iam discretamente, solitariamente, conectar-se com o divino. Paulo praticava o contato com seu público como um sacerdócio diário. Não precisava tanto mais dos veículos de comunicação para acessar as pessoas. Tinha o privilégio de fazê-lo diretamente.

Mas não pense, pelo amor do Altíssimo, que Paulo era um sujeito bonzinho. Era mau feito um pica pau. Quantas vezes espezinhamos esse ou aquele colunista ou simplesmente um afetado qualquer que descia o porrete nele? Paulo é um ser boníssimo, mas, entre seus inúmeros apetrechos exóticos, ele possui uma espada. E, quando sacaneado, ele desembainhava metaforicamente o sabre (num post, numa fala) e decepava a cabeça de seu desafeto. Para seu profundo prazer.

- “Meu único objetivo era fazer com que isso chegasse até os ouvidos do pulha. Será que consegui?”, escreveu-me ele a respeito de um jornalista, certa vez.

Ele fez inúmeros carinhos comigo e com minha família. Estive na sua casa no interior da França, em seu apartamento em Paris, no de Genebra. Almoçamos e jantamos de perder a conta. Teve um dedinho meu na escolha dele para falar pelo Brasil, na cerimônia de anúncio do país como sede da Copa do Mundo de 2014. Não poderia haver embaixador melhor naquele momento.

Uma noite, em Paris, fui ao banheiro do apartamento dele. Um apartamento enorme, perto da torre Eiffel e com um corredor interminável. Na volta, deparei com um alvo redondo de um metro de diâmetro, todo furado. Ele praticava arco e flecha ali. Já imaginou se algum empregado desavisado cruzasse o caminho?

Lembro com carinho o dia em que ele ensinou meus filhos a atirar com arco e flecha na cobertura de seu apartamento em Genebra. Foi delicioso.

Certa vez, quando houve o escândalo do Swiss Leaks, fiz o meio de campo entre ele e o repórter que estava para dar o furo. Paulo tinha uma estrutura empresarial situada em um paraíso fiscal e a maioria dos citados não tinha como explicar. Paulo tinha e apresentou sua declaração de Imposto de Renda, provando que estava tudo declarado. Saiu como um bom exemplo do caso, embora incomodado com o desconforto de ser mencionado num assunto mundial que não era o tipo de polêmica a que estava acostumado. Para o consultor de crises, ele tinha se saído muito bem. Só com uma pequena agulhada. Para ele, a agulha doía, Mas só depois fui entender.

Quando o meu caso policial surgiu, ele foi solidário, prestativo e generoso. Recomendou-me a leitura de um livro dele, “O Monte Cinco”. Trocamos mensagens. Mas percebi que ele estava com um tanto com o pé atrás. Detesta não ter a noção exata e total das coisas, sobretudo daquelas que, de alguma maneira, interagem com ele. E eu, ao me transformar numa dúvida, era um incômodo. Com o passar dos tempos, ele foi ficando na dele. Notei que recebera uma pequena e sutil bola preta. Nada dito. Tudo muito elegante. Exatamente o que o consultor de crises aqui recomendaria a ele, aliás. Mas com Paulo, sempre sei, a qualquer momento o perdão do mago pode acontecer. Mesmo que eu não tenha errado, como é o caso. Mas, se ele me chamar de novo, como na primeira vez, eu vou. Paulo Coelho tá por aí. 


(Quando já havia finalizado os originais deste livro, um jornalista amigo meu comentou com Paulo que estava lendo o texto. O que aconteceu? Recebi uma carinhosa mensagem de Paulo, respondida por mim, com tréplica dele. Ele efusivo e carinhoso como sempre. Acabei indo para Genebra e me hospedei no apartamento dele por dois dias, coberto de carinho e de amizade dele e de sua companheira Christina. Não disse que o Paulo tá por aí?)

Foto: Moacyr Lopes Junior/Folhapress Foto: Moacyr Lopes Junior/Folhapress

NA RINHA

Cara espetacular era esse Duda Mendonça. Convivi com todos os marqueteiros de meu tempo, mas o Duda… o Duda era outra coisa.

Lá venho eu com a chatice de “contextualizar”. Ossos do oficio: Duda foi o inventor do marketing político, como era, depois da redemocratização do país de 1985. Sua agência de propaganda participou da eleição de inúmeros candidatos. Ele fazia o programa eleitoral na TV e no rádio, traçava as estratégias de comunicação. Criou um método e codificou uma série de coisas para os outros marqueteiros que vieram depois. Conduziu o marketing da primeira eleição presidencial de Lula, atenuando a imagem do operário raivoso. Foi julgado e absolvido pela suprema corte no escândalo político do mensalão. Chegou a fazer um depoimento, em 2005, no Senado Federal, admitindo que recebera por seus serviços em conta de caixa dois eleitoral fora do pais, na campanha de Lula. Na época, foi um terremoto da mais alta escala na política.

Todos os outros marqueteiros que conheci participaram em algum momento dos “grupos de discussão”, as pesquisas qualitativas,  nas quais eleitores, gente do povo, eram instados por profissionais do ramo a avaliar peças de marketing. Os comentários que surgiam ali influenciavam a adoção dessa ou daquela estratégia de comunicação.

A diferença de Duda para todos os demais, além de diversas outras, é que vivia, ele mesmo, dentro de uma eterna pesquisa qualitativa.

Era um cara rico pra danar, sagaz e inteligente pra burro, mas gostava de coisas de peão: fui com ele a rinhas de galo, que ele adorava. Meus olhos viram ele apostando entusiasmado, aos gritos, torcendo para uma das cristas gladiadoras, ao redor da arena um pouco sombria, numa noite de Salvador. Ele adorava também vaquejadas e pescaria. Tomava pinga e champanhe com o mesmo entusiasmo. Era um vivedor retado.

Tinha um pé em carros importados e blindados, mas o outro pé no terreiro. Morava num apartamento com uma piscina por andar, de frente pro mar, claro. E lá patrocinava rodadas de truco e berrava como se fosse um caminhoneiro. Não era de frescura, embora adorasse jatinhos, helicópteros e toda a boa vida que o dinheiro pudesse comprar. Comia buchada de bode, mas gostava também de um bom relógio. Tentava, às vezes, enunciar alguma palavra em inglês, para exalar alguma sofisticação, mas a pronúncia era difícil. “Business” (negócio) virava “bilsnes", no dudês.

Não se engane: Duda sabia das coisas, mas, se você pedisse pra  ele escrever um texto continuo de dez linhas, sem chance. Não era a dele. Mas eu o vi ter ideias num estalo que demoraria um livro inteiro para explicar, e talvez não conseguisse.

Foi um caso raro, em meu rol, de  um sujeito com quem convivi apenas no auge, não ladeira abaixo. Eu o conheci em 1998 e, até 2004, foi uma convivência bem intensa. Depois foi rareando. Fui contratado por ele para ser o marqueteiro numa eleição na Paraíba. Durante um tempo, nessa encarnação longínqua, fui um Duda Mendonça da macaxeira. Fiquei nove meses lá.

No segundo turno da eleição de 1998, ele me deu uma honra espetacular: acompanhei sua acachapante derrota na campanha de Paulo Maluf contra Mário Covas.

Duda, o mito; Duda isso, Duda aquilo. E ele me teve em volta como testemunha silenciosa de quando suas mágicas não funcionaram, de quando o mágico não tirava o coelho da cartola. Viver a derrota alheia de perto, ainda mais a de um mito, vê-lo nas madrugadas aflitas, exausto, inseguro; vê-lo nas reuniões do alto comando anunciar uma virada que não acontecia depois; vê-lo como se fosse um intensivista tentando em vão fazer o coração voltar a bater. Ele me deixou ver isso, ver a fraqueza dele bem de perto. Alimentou com caviar meu apetite iconoclasta. Eu era um moleque. Ele foi generoso. Eu sou grato.

O ápice de Duda foi em 2003. Eu estava lá. Fizemos uma espécie de escambo: como ele estava muito visado, depois de eleger o Lula, eu virei uma espécie de cachorro dele junto à imprensa. Os repórteres ligavam muito pra mim por causa dele, é claro. Não faltavam fofocas. Da minha parte, eu passava um pouco de água sanitária na minha biografia. É que, naquela época, quando petista era sinônimo de pureza moral, alguém como eu, que tinha vínculos com os “tucanos” (o partido que antecedeu o PT), era um verme. Depois isso mudou. E eu virei verme pelo motivo contrário. Mas, naquela época, Duda abonou minha ficha. Não ganhei nada do governo (nunca quis), mas pelo menos não fui perseguido, o que não era pouco.

No trato com Duda, não queria que ele me pagasse. Se virasse empregado, ele ia montar. Sem dinheiro no meio, ele me via de maneira diferente. Combinamos que, quando surgisse um trabalho bacana, contanto que não fosse no governo, a gente faria um “bem-bolado”. E assim fomos.

(Muito depois, no escândalo do mensalão, seus capatazes chegaram a intrigá-lo comigo, como se o desgaste de mídia dele no meio daquele escândalo de alguma forma eu pudesse manipular. Essas coisas passam. É mais fácil culpar a enfermeira pela doença. É natural.)

Viajei muito com Duda, participei de vários encontros dele com jornalistas. Ele era mais ou menos como um padre: tinha uma missa pronta. Se você ouvisse pela primeira vez, saía convertido. No meu caso, como conhecia a bíblia , às vezes ficava na sacristia, assoprando um salmo: “É, mas tem aquela do ACM…”. Ele, então, recitava o pai-nosso.

A do ACM era uma clássica. Ele, baiano, tinha que tratar ACM (um poderoso político da Bahia; depois dou a ficha) com reverência. Mas ACM, fora da Bahia, era queimação. Então, Duda tentava se equilibrar como podia na corda bamba da retórica, sendo ao mesmo tempo próximo e distante de ACM:

- Uma vez, o governador me chamou para trabalhar com ele. Eu disse “Olha, governador, o senhor, pra mim, é como um sol. Quero o seu calor, mas, se chegar muito perto, eu derreto”, contava Duda.

Duda era um cisne, mas se sentia muitas vezes como um patinho feio. Sobretudo porque ganhara projeção nacional ao se tornar marqueteiro de Maluf e ter sido decisivo para que o político conservador e contestado ganhasse uma eleição depois de inúmeras derrotas. Duda o elegeu prefeito de São Paulo em 1992. A esquerda demonizava Maluf. Ele era o símbolo do bolor na política e malufar virou verbo que queria dizer afanar.

Duda prosperara e seu sucesso material e profissional era criticado por alguns como se fosse impuro. Ele, coitado, era vaidoso porque vencera, mas rejeitado porque lhe torciam o nariz. Como dizia seu amigo e conselheiro eventual, outro mago, Roberto Shinyashiki, campeão dos livros de autoajuda:

- Sucesso é conseguir o que se quer. Felicidade é gostar do que se tem.

Duda buscava a iluminação. Do jeito dele. Ou pelo menos tentava convencer os outros, ou ele mesmo, de que, no fundo, era um sujeito legal. Como lhe disse certa vez Maluf quando ele foi se desculpar por alguma coisa, “Duda, não peça desculpas. Pros amigos, não precisa; pros inimigos, não funciona”. Duda queria ser querido.

Na campanha de 1998, tinha um recinto na produtora apenas para meditar, em estilo japonês, com música oriental, tatames, incenso. Percorrera o caminho de Santiago a pé e falava isso toda hora. Pichara a casa toda com frases profundas de Paulo Coelho.

Daí por que viu na possibilidade de servir ao esquerdista Lula, entre várias coisas, uma espécie de redenção. Era, naquela altura, trabalhar para o “bem”. Era não remar contra a correnteza estigmatizada do malufismo. No primeiro encontro com Lula, defendeu que o ex-operário se candidatasse à Presidência de novo. Lula havia perdido três eleições presidenciais e havia gente, dentro do próprio PT, que defendia um nome mais palatável para a classe média.

Duda adotou a linha estratégica a seguir. Claro, seu então apóstolo João Santana foi decisivo nessa sugestão. Mas o batedor do pênalti era Duda, que definiu o conceito dos três terços.

- Olha, Lula, um terço do eleitorado já vota no senhor. O outro terço não vota de jeito nenhum. Então, não temos que falar para esses dois grupos. Temos que disputar o outro terço, que admite votar, mas não se sente seguro.

Assim, nasceram as eficientes peças da campanha do PT de 2001. Era a pré-campanha do que viria no ano seguinte, na eleição presidencial. Um marco dessa nova narrativa dudista é um comercial de um minuto. Jovens de classe média saem de uma balada felizes e entram num carro burguês. A música que surge é a da moda. Eles entram e passam na rua até cruzar com uma senhora pobre e negra na sarjeta. Suas expressões se abalam ao ver a cena. Era uma representação dos contrastes sociais do país. A certa altura, um ator aparece e dá o mote para o terceiro terço:

- Se cenas como essa tocam você, você pode até não saber, mas, com certeza, no fundo você é um pouco PT.

Era a clássica abordagem dudista: consenso primeiro, convencimento depois. Comia pelas beiradas.

No começo do governo Lula, Duda era tratado pela imprensa como um ministro. Era Duda pra cá, Duda pra lá. Eu, que via por dentro, sabia que não era bem assim. Duda não tinha aquele acesso todo. O ministro da Comunicação, Luiz Gushiken, mantinha Duda na coleira. Mas, lá fora, na imprensa, Duda era onipresente. Ele gostava e não gostava. Fama de poderoso atrai clientes, mas arromba o casco dentro do navio. Ele sabia disso.

Duda não era de escrever e Lula não era de ler. Então, às vezes, ele gravava um vídeo falando para o presidente, dando uma ideia, uma sugestão. E pedia a alguém que fizesse o presidente assistir. Ele inventou o telemago.

Um dia, fui com ele a um almoço na Folha. Era um ritual: chegávamos, íamos à sala do publisher Octavio Frias (“seu” Frias), depois nos reuníamos com os principais repórteres e editores. Essas reuniões eram como um primeiro round do boxe, uma oportunidade para cada lado medir a distância um do outro e, durante a luta, ao longo das coberturas, o pau comia. Depois, outros almoços, outras medições e mais trocação. Era assim o ritual entre Redações e figuras proeminentes.

Daquela vez, deu zica. Já na chegada um editor cruzou comigo e provocou, num típico jab antes do almoço:

- Mario Rosa? Spin Doctor?

Spin Doctor é  como a imprensa americana chama alguns caras como eu. Era uma cerimoniosa ofensa. Spin quer dizer rodar. É como se os assessores de imprensa “virassem" a lata dos defeitos dos clientes e mostrassem apenas o lado bom para a plateia. Por essa lógica, os jornalistas, em seu sagrado sacerdócio, seriam os caras que desvirariam a lata e mostrariam o que ela verdadeiramente era. A gente ainda vai falar sobre virar e desvirar a lata. Às vezes, acho que quem vira a lata ao contrário é a imprensa. Nós é  que desviramos e, com isso, ajudamos a evitar barbaridades. Talvez os dois lados estejam certos. Aquele editor, depois, foi trabalhar na maior agência de comunicação do pais. Será que virou spin doctor?

Também naquele dia, a coluna Painel tinha publicado umas cinco ou seis notas azedas sobre o Duda. Na diplomacia das Redações, quando alguém vai almoçar na sua casa, você não o recebe com pedras. Não era normal um sujeito agendar uma ida à Redação e apanhar no dia da visita. Um ou dois dias depois, até tudo bem. Mas, no mesmo, era esculacho.

Eu sei que passei o almoço inteiro batendo boca com a colunista, reclamando daquela coisa. E ela bateu duro de volta, porque estava convicta e porque tinha plateia e eu a havia questionado. O “seu” Frias, coitado, não entendia nada. E o Duda ficava ali naquele papel de bom-moço. Eu é que cutucava. As pessoas achavam que eu tava ganhando ração do Duda para latir. Eu sabia que estava latindo de graça. Na saída, com o ritual do dono do jornal levar o convidado até o térreo, Duda se despediu dos repórteres assim:

- Olha, eu não tenho nada a ver com esse problema do Mario com vocês, não, viu?

Não era fofo?

Duda foi o cara que estruturou os formatos de campanha eleitoral em sua época: como montar o programa, como fazer jingles, como fazer comerciais, como atacar, como defender. Muita gente boa já tinha feito coisa bacana antes dele. E muita gente fez depois. Mas ele foi o primata que aprendeu a dominar o fogo. E ensinou para toda uma geração, os protodudas que saíram por aí.

Vi, sem exagero, centenas de peças dele, centenas de vezes. Eu e muitos dos que trabalharam com ele. Duda se referia aos formatos com os apelidos que criou para eles. Essa foi a base, inclusive, para quem desconstruiu depois aquelas fórmulas ou as atualizou, como João Santana, na época sócio minoritário de Duda, meu amigo e que,  muitos anos depois, viria a estar no centro do petrolão (contextualizando, o gigantesco escândalo da Petrobras).

“Metáforas” era o termo que empregava quando a imagem da inserção mostrava uma coisa e o texto dizia outra. Ele usou uma vez um minuto de imagem para mostrar alguém montando a detonação de uma bomba, enquanto o locutor falava sobre a tentativa de destruírem Maluf. Outra peça memorável foi ao ar no dia do impeachment de Fernando Collor, em setembro de 1992. Imagine o seguinte: o candidato de Duda (Maluf) estava disputando a Prefeitura de São Paulo contra um santo (Eduardo Suplicy, do PT). Como lidar com a queda de um presidente conservador, afastado depois de uma onda de escândalos, sendo você um candidato como Maluf, estigmatizado na época com a questão da moralidade? Maluf tinha de se posicionar, certo? Duda recorreu a uma metáfora de seu arsenal. Abriu o programa com a melodia do hino nacional, em ritmo lento e emocionante. A tela começava preta e, aos poucos, ia sendo lavada, como se estivesse sendo limpa por uma faxina. Por trás do preto, aparecia aos poucos a imagem da bandeira nacional. Era um editorial. Duda não falou nada: apenas a imagem da sujeira que ia se transformando na bandeira, com o fundo musical do hino. Nada foi dito, mas tudo foi dito. Sem falar nada. Coisas do Duda. Depois dessa introdução de um minuto, a voz do locutor: "Começa agora o programa de Maluf prefeito". Maluf ganhou aquela eleição.

Na campanha de 2002, Duda colocou uma série de mulheres grávidas andando de branco numa praia e o texto, lido pelo cantor e compositor Chico Buarque, falava sobre o futuro do país. Sua metáfora mais dura ele pôs no ar em 2001. Era “Ratos”: os roedores apareciam comendo a bandeira nacional:

- Ou a gente acaba com eles, ou eles acabam com o Brasil. Uma campanha do PT e do povo brasileiro. Xô,  corrupção.

“Testemunhal” era quando atores vocalizavam o que o bruxo Duda pescava das pesquisas qualitativas. O intérprete falava em primeira pessoa, como se fosse o inconsciente coletivo. Uma das preciosidades de Duda foi a inserção “João”,  um jovem que, na campanha de 2002, começava falando e terminava, só na última linha, mencionando o nome do candidato. Não pedia voto. Induzia.

“Jingles” eram as canções eleitorais, para massificar número e conceitos. Duda era o João Gilberto do jingle. Adorava participar da criação com seu músico amigo. Um de seus jingles para um motel em Salvador era tão lindo que se transformou em música, “Cheiro de Amor”, interpretada pela deusa Maria Bethânia:

- “De repente fico...rindo à toa sem saber por quê.../ e vem a vontade de sonhar... / de novo te encontrar... /foi tudo tão de repente…”

O jingle de Duda tinha três fases: começava lento, depois dava uma acelerada e, no fim, dava uma virada alegre e repetia o bate-estaca, o slogan e o número do candidato. Mentalmente, tinha o formato de um funil. Era para comer pelas beiradas o eleitor/telespectador desconfiado. Do universal para o particular. Duda pescava marlim. Já estava acostumado a soltar a linha do anzol.

Na estética de Duda, a primeira etapa do jingle era uma espécie de “tomada de consciência”. Era quando o “eleitor” fazia uma análise geral da realidade. Ele começava pelo consenso, numa espécie de sensibilização. Era um diagnóstico cantado da realidade insofismável, criado para o ouvinte “concordar” - “É, esse cara não tá me enganando”. Depois, o ritmo acelerava. Era a “animação”, quando o eleitor começava a “descobrir” qual era o caminho. O ápice, mais alegre, esfuziante era o slogan: a resposta final do minirroteiro.

“Jornalismo” era só uma ferramenta publicitária. Era para mostrar “a verdade”. Ele se apropriava, nos programas, da “credibilidade” do formato jornalístico para contrastar com a “publicidade” do resto do programa.

“Candidato” era o que o nome diz. Duda treinava tudo, as pausas, o olhar. O candidato era um boneco de ventríloquo, de Duda.

“Marca”. “Slogan”. Foi Duda quem inventou a porteira fechada da criação das campanhas na sua época. Era um acontecimento quando ele apresentava a “criação" para o cliente. Ele sabia que o primeiro eleitor era o candidato. E caprichava. Vi inúmeros gigantes da política ficarem embasbacados com o show do pop star do marketing. Ele elegeu muita gente, mas sabia como ninguém conquistar, em primeiro lugar, o voto de confiança dos candidatos. Era eleito por eles antes de eleger. E caprichava na pedida.

Mito, não precisava nem ir para ganhar alguns cobres. Passei vários meses na Argentina, em 1999, chefiado por João Santana. João era quem fazia tudo, mas todo dia apareciam reportagens e artigos na imprensa portenha noticiando o que Duda tinha dito numa reunião. Acho que ele foi lá uma ou duas vezes, mas estava todos os dias nas reuniões imaginárias da imprensa. Ainda mais exótico era seu próprio nome em castelhano. Duda significa dúvida. Mendonça, o nome de uma província. Já imaginou um marqueteiro argentino chamado Dúvida Parana vir pro Brasil eleger um presidente?

Duda era, antes de tudo, um vendedor. Começara como corretor de imóveis em Salvador. Ele descobriu por acaso que era marqueteiro e publicitário. Certa vez, ganhou a preferência na venda de duas torres de apartamentos que estavam encalhadas. Teve a ideia de conseguir  da empresa telefônica local a instalação de linhas para cada unidade. Mexeu os pauzinhos e conseguiu o feito. Na época, telefone era raro no Brasil. As pessoas declaravam as linhas como se fossem um patrimônio. E era mesmo.

Duda inventou de construir um estande de vendas com o formato de um enorme telefone. E anunciou: “O primeiro apartamento da Bahia que vem com telefone”. As pessoas compravam o telefone e, de brinde, levavam o apartamento. Vendeu tudo num fim de semana. Gostou da brincadeira e virou marqueteiro. Depois, elegeu de brinde deputados, senadores, prefeitos, governadores. E um presidente da República.

Era muito patrulhado pela imprensa porque vendia candidatos como se fossem sabonetes. Essa é a crítica que faziam contra ele, para provar que era um manipulador. Os adversários dos candidatos dele trombeteavam esse mote para desqualificar os oponentes que o contratavam. Muitos deles, quando puderam, foram atrás daquele marqueteiro baiano. Lula inclusive.

Duda, naqueles idos, vivia tentando pontuar o contrário. Seu argumento predileto era que sabonete você pode mudar a fórmula, o cheiro e o formato. Político já vinha pronto. Tinha uma história. Ele tentava convencer que apenas mexia na embalagem, mostrava qualidades que o produto já possuía, mas não eram enfatizadas antes.

Na origem, tinha a alma de biscateiro. Foi essa revolução que ele trouxe para a política.

Duda construiu isso tudo sem colocar nada no papel. Sem racionalizar nada. Era um ser extremamente racional, obviamente, mas embrulhado como mago. Era totalmente intuitivo. Nunca o vi filosofar sobre o que fazia. Nós copiávamos e racionalizávamos tudo aquilo. Ele era como o Garrincha. Não entendia nada de futebol. Era apenas um gênio dentro de campo.

Duda tinha um velado desprezo pelos “intelectuais”. Nessa categoria difusa, estávamos aqueles que escreviam mais que dez linhas seguidas. O contraponto que criou pra si mesmo era aplicado ao discípulo, Santana. “Eu sou forma. O João é conteúdo. Eu sou propaganda, o João é jornalismo.”

Conteúdo e jornalismo para ele eram coisas secundárias. A diferença era a sacada, o tino, o feeling. Era ele.

Foto: Alexandre Meneghini Foto: Alexandre Meneghini

A CERVEJA É NOSSA

Lá pro começo de 2004, o Duda me deu um empurrão: me indicou pra participar com ele da criação da maior cervejaria do mundo. Simples assim.

Pra mim, uma chance de ver como um planejamento de comunicação “preventivo” poderia realmente funcionar desde o ponto zero até o final. Comunicação de crise é recolher o corpo esfrangalhado no asfalto, mas é também evitar que o desastre ocorra. Com o tempo, fui me tornando muito mais um airbag das empresas que me contratavam do que um para-choque de encrenca. Ficava mais preservado, no Olimpo corporativo. A fase de assessor de imprensa de porta de CPI (que você ainda vai conhecer) tava começando a terminar.

O caso que Duda me chamou era potencialmente cabeludíssimo. Anos antes, a cervejaria Brahma havia comprado sua grande concorrente, a Antarctica, para que formassem a Ambev. Na ocasião, o grande argumento esgrimido pela empresa para justificar esse oligopólio dos rótulos era que o Brasil ia ganhar uma multinacional verde-amarela da cerveja. Dominavam, juntas, 70% da produção da bebida no país. E tamanha concentração econômica foi habilidosamente embalada pelo monstro sagrado do mercado de relações públicas, Mauro Salles, com um aspecto ufanista:  em vez de monopólio, a cerveja brasileira iria dominar o mundo. Viva o Brasil!

Só que, cinco anos depois, a Ambev estava dando outro passo audacioso: estava negociando algo complicado com a cervejaria belga Interbrew. No capitalismo, ou você compra, ou você vende, ou você funde. Na prática, juridicamente, a Ambev estava sendo vendida para a Interbrew. Ou seja, cinco anos depois de ter sido criada para conquistar o mundo, a concentração consentida do mercado brasileiro de cerveja estava sendo entregue de bandeja para o capitalismo internacional (essa, óbvio, é uma frase exagerada, com o tom que poderia ser carimbado à transação, se um esforço gigantesco não tivesse sido tomado).

Pra piorar, era a primeira grande negociação econômica do recém-iniciado governo, supostamente de esquerda, de Lula. Pra piorar ainda mais, envolvia justamente a cerveja, algo de apelo popular. O risco era a negociação virar um ataque à soberania brasileira e o governo travar a "guerra dos cascos" para garantir ao povo que “a cerveja é nossa”.

Duda coordenou toda aquela campanha delicada. E me levou junto.

Ainda cismei com um pequeno capricho. Disse a ele que queria ser contratado diretamente pela Ambev, não por ele. Detalhe bobo, mas que fazia toda a diferença. Era simbólico. Para os patrões, eu seria colocado como um parceiro e não um empregado de Duda. De certa forma, mesmo que isso fosse irrelevante, seria contratado pelo dono da boate,  não pela banda. Nesse sentido, éramos, de certa forma, iguais como prestadores de serviço, embora meus caninos contratuais não se comparassem à mordedura profunda do marqueteiro do rei. Mérito dele.

Duda topou. E foi legal. Ao me tratar assim, dizia para o contratante que éramos associados, não patrão e empregado. Era essa a natureza de nosso vínculo profissional. Ele me prestigiou.

O grande nó do caso é que, fora do Brasil, as publicações chamariam a transação pelo que ela era: a Ambev estava sendo vendida. A Interbrew precisava trombetear esse aspecto inclusive para justificar aos acionistas e ao mercado o chamado “prêmio de controle” que estava pagando aos donos da Ambev.

Já nós, aqui, tínhamos de arranjar um jeito de dizer que, muito embora formalmente fosse uma venda, na prática não era. Outro complicador era que o noticiário americano e o inglês seriam considerados com “maior” credibilidade e influenciariam a percepção da imprensa brasileira. Se a imprensa fuzilasse o negócio, o governo surfaria na onda e desfraldaria uma patriotada qualquer para salvar a “nossa” cerveja.

Essa era a confusão.

Duda foi contratado uns três meses antes desse assunto surgir como realidade na superfície do noticiário. Apenas a mais alta cúpula da Ambev tratava do caso internamente, com sigilo máximo. Tinha até um codinome: projeto Beattle. O codinome no Brasil era “Brenda”. As reuniões eram comandadas por um dos três controladores em pessoa, Marcel Telles. Participei com Duda desde as primeiras conversas sobre como deslanchar aquele esforço de comunicação, sob o comando de Telles e executivos escolhidos a dedo.

Não fomos chamados para comunicar um fato consumado, servir um prato feito. Entramos enquanto as panelas estavam no fogo e as negociações ainda estavam em curso, semanas e semanas antes. A vantagem disso é que tínhamos uma noção clara dos fatos. A desvantagem é que sentimos que tudo, de repente, podia dar pra trás.

Já desde o início tínhamos que ir afinando as mensagens do anúncio do negócio e estarmos preparados para, a qualquer momento, em caso de vazamento, deslancharmos um plano de emergência. Então, tínhamos dois planos simultâneos, com mensagens e ações diferentes: o ideal, se tudo desse certo, e o deus nos acuda, se tudo fugisse ao controle.

Definimos, inclusive, os padrões de reação. Se o boato fosse vago e muito impreciso, desmentiríamos. Se fosse medianamente veraz, diríamos que as corporações não comentariam especulações do mercado (nem sim, nem não). Se fosse na mosca, anteciparíamos tudo e colocávamos o bloco na rua.

O plano previa qual ação deveria ser tomada por quem em qual momento. Era o timetable. Quem ligaria para quem, no governo ou na mídia; quem ligaria para os patrões nas redações, a que horas, para falar o quê; qual comercial iria rodar em qual dia, quando iríamos dar entrevistas individuais e para quem; quem iria a qual audiência e onde. Enfim, tudo, numa tabela detalhada com todas as iniciativas possíveis e imagináveis, com hora marcada e tudo. Então, havia o dia “D”, o dia do anúncio. E o D-1, D-10, D+5, D+30. Tudo devidamente planilhado.

Havia alguns pepinos do próprio desenho do negócio que, em termos de comunicação, eram difíceis de descascar. Onde seria a sede da nova empresa? Se era lá, eles compraram. Se era aqui, nós. A sede, evidentemente, não podia ser em lugar nenhum. Se não estávamos sendo vendidos, a que horas seria o anúncio do negócio? Se éramos o dono da bola, por que não fazer no horário de abertura da Bolsa do Brasil? Se fizéssemos no horário “deles”, então é porque estávamos indo a reboque e não puxando os vagões? Não faltava água pra botar naquele chope.

O horário do anúncio e a futura sede da empresa, então, eram um assunto. Num mundo globalizado, em que as Bolsas abrem e fecham em horários diferentes, o fuso que iríamos seguir não era pouca coisa. Era um detalhe que podia servir para revelar quem é que estava mandando em quem.

No final, não havia como fugir aos fatos: por uma questão estatutária, a empresa que surgiria das duas antigas teria como sede fiscal a Bélgica. A sede, portanto, seria lá e ponto final. Teríamos também de seguir o fuso horário da nova empresa e, por obrigação societária, tínhamos que anunciar isso antes do pregão onde ela estivesse cotada. E as ações da companhia eram listadas na Bolsa de Londres. Logo, teríamos que anunciar na abertura da Bolsa londrina, o que era pouco antes da abertura da Bolsa de Nova York.

E que horas eram no Brasil? Três horas da manhã. Fizemos uma coletiva nesse horário. Nada mais ultrajante, do ponto de vista cronológico e dos brios patrióticos, do que convocar uma entrevista para a madrugada. Sinal de que o ponteiro que contava não era o nosso, mas o do outro lado. E normalmente quem manda é quem define quando o jogo começa. Como explicar que não estávamos sendo vendidos se até o horário da coletiva sugeria isso expressamente? Tivemos que rebolar.

Também foi preciso inventar um nome para a operação: se não podia ser venda, nem compra, nem fusão, era o quê? Os advogados sugeriram “combinação estratégica”. O nome foi vetado por nós. Combinação, que era um termo técnico consistente no idioma corporativo, em português dava a ideia de conchavo.

Duda sacou o “aliança global” da cartola. Virou a aliança global das duas companhias. Era um termo vago que aceitava qualquer interpretação. Do ponto de vista dos especialistas, tão embriagante como cerveja sem álcool. Claro, os veículos especializados, sobretudo lá fora, iriam dizer que era compra da Ambev pela Interbrew. Mas aqui iríamos trombetear a aliança na imprensa e, sobretudo, na propaganda.

Havia também a questão do fogo amigo. Do lado da Interbrew, todo o esforço de comunicação deles, junto aos veículos de imprensa mundial, era para enfatizar que eles eram os compradores. Até porque estavam pagando uma bolada. Se parecesse que estavam fazendo um mau negócio, as ações deles desabavam. O único jeito, para eles, era dizer que eram os tais, os gringos que compraram a cervejaria na república das bananas.

Isso, para nós, era um veneno. Quer dizer que o “New York Times” tá errado, o “Financial Times” tá errado, o “Wall Street Journal” tá errado? E a única coisa que tá certa é esse release aqui da sua assessoria de imprensa?

Tínhamos uma comunicação, em termos globais, esquizofrênica. Nós dizíamos uma coisa aqui, no terceiro mundo, e eles diziam outra coisa lá, no império.

Aquele sujeito lá que eu falei que não conseguia escrever dez linhas seguidas de texto não tava nem aí com essa fuzarca. Duda já tinha enfrentado tanta coisa que parecia o Fred Astaire dançando num baile de debutantes. Parecia fácil para ele comandar aquela zorra toda.

Meu papel nisso tudo era olhar, meter a colher e ser um faz-tudo. Foi divertido. Saímos daqui algumas vezes na quinta à noite com destino a Nova York. Chegávamos, hotel, escritório, hotel e, no domingo à noite, de volta pra casa. Pelo menos três vezes fizemos esse bate e volta, para reuniões com advogados estrangeiros, equipes de comunicação e executivos da outra empresa, inclusive os presidentes de um lado e de outro. Sempre em inglês. Ali percebi que precisava dar uma polidinha no meu Shakespeare. Mas isso foi depois.

Acompanhamos várias reuniões em que o pau comia na mesa. Estávamos vendo as coisas acontecendo e não sendo apenas chamados para dizer depois.

Nós da comunicação participamos até da redação do “fato relevante”, um texto no mais típico idioma incompreensível para leigos que as empresas são obrigadas a publicar quando algo importante acontece com elas e o mercado e os acionistas precisam saber.

Lutamos (e vencemos, urra!) para que um dos três “bullets”, ou seja, um dos primeiros três tópicos sumários do fato relevante tivesse claramente consignado que o controle da nova companha seria compartilhado em bases iguais.

Em bom português, a Ambev estava sendo tecnicamente vendida para a Interbrew. Mas a nova empresa, InBev (e não AmBrew) teria um novo acordo de acionistas, em que os investidores brasileiros (o 3G, Jorge Paulo Lemann, Beto Sicupira e Marcel Telles) mandariam tanto quanto os investidores belgas.

Pense num negócio complicado de explicar…

Então, de um lado era venda mesmo. Mas, de outro, os brasileiros passavam a mandar meio a meio numa coisa muito maior que a Ambev. Era um passo pra trás ou para a frente? Era realmente algo cheio de neblina. E, se quisessem fazer um escarcéu no Brasil, era fácil implodir a transação e carimbá-la de bordões e palavras de ordem.

Eles não estavam gastando dinheiro à toa quando contrataram o Duda e a cachorrada dele.

Como sempre fiz, chamei gente boa pra perto. Escalei uma jornalista amiga e de confiança, Silvana Quagllio, para fazer a interface com os braços internacionais de comunicação, e as agências de relações públicas da Ambev e da Interbrew no exterior.

Ah, sim: para manter a confidencialidade total, nem mesmo a empresa de relações públicas da Ambev participou da preparação nas semanas que precederam o negócio. Pelo nosso timetable, eles seriam informados em D -1, 24 horas antes. Eu preparei todo o kit de imprensa, todas as explicações, todas as key messages, todos os releases. Tudo.

E, no D -1, fui o cara que deu uma palestra interna e “ensinou” aos assessores de imprensa da competente empresa que atendia à Ambev qual era o pulo do gato, como era o negócio, o que responder. Fiquei ali, parecendo uma “fonte”. Trocamos de papel: eles faziam as perguntas que os jornalistas fariam e eu dava a resposta que, no dia seguinte, eles é que estariam dando.

Com o tempo, fui sendo dispensado de ficar na trincheira do convencimento de jornalistas. Atuava para dentro, em contato com os donos e a equipe interna de comunicação. Ficava no QG, enquanto os assessores das empresas é que iam pras trincheiras. Tinha deixado de ser a cigarra das CPIs e tinha virado grilo falante dos boards.

Quando comecei e era assessor de imprensa de porta de CPI, eu explicava meus clientes para os jornalistas. Mais tarde, passei a explicar a imprensa para os meus clientes. Passei a ser confidente dos homens poderosos a que servi. Uma pergunta deles revelava muito de seus medos, de suas dúvidas. Ouvi-la tinha valor econômico, principalmente se aquela dúvida chegasse aos tímpanos concorrentes. Então, eu também era pago para ouvir. Uma parte de meus honorários, teoricamente falando, era para fechar o bico. Ser consultor de crises era isso.

Outra coisa: como eu era independente, tinha normalmente um “mandato” e não cobrava pouco, podia meter o bedelho quando o advogado estava aparecendo demais, a assessoria de imprensa estava criando paranoia demais. Ou azucrinar quando fosse o contrário. Eu era a segunda opinião dos tomadores de decisão: seria como uma espécie de “auditor” de comunicação nas crises, para ajudar a avaliar o que era real e o que era irreal, sempre que isso fosse possível. E, claro, nas horas vagas, fazia uma perversidade aqui ou ali no ouvido de algum urubu da imprensa.

Duda, aquele cara tosco, se lembra? De bobo não tinha nada. Inventou logo o mote da campanha: “Está surgindo a maior cervejaria do mundo!”. E era, não pela ótica do faturamento, mas pela do volume de produção. “A maior cervejaria do mundo”. He, Duda…

Ele também materializou a imagem que convinha destacar: a paridade entre os dois lados. Então o que ele fez? Embaixo da “maior do mundo” ele criou um cartaz em que as garrafas de cerveja estavam perfiladas como um time de futebol. Metade eram as nossas marcas, metade a deles. Tudo do mesmo tamanho e na mesma quantidade.

Duda criou um jingle, com a mesma melodia daquela que se ouve nos estádios de futebol.  Em vez de “eu sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor”, o jingle de Duda cantava: “Eu, eu sou Ambev, com muito orgulho, com muito amor”. Então, ele atacava sem falar nada a questão do patriotismo, usando uma melodia da mais genuína nacionalidade para tratar intrinsecamente de uma intrincada operação empresarial. Que palavreado embolado esse meu, né? Duda não tangenciava nem de longe essa masturbação hermenêutica. Ele fisgava o marlim e vinha puxando.

É pouco?

Ah, ele também colocou deus na parada. Para fazer o comercial “testemunhal” do assunto, convocou o ator Antônio Fagundes. Foi ele que anunciou a novidade ao país. Fagundes acabara de ser Deus não fazia muito tempo. Fora o personagem central do filme "Deus é brasileiro". Veja bem, brasileiro, não era belga, não. Danado esse Duda…

Ele ainda gravou vídeos para as redes internas da Ambev. Imagina, centenas ou milhares de pessoas iriam saber da transação que poderia mudar as suas vidas. Sob o pretexto de anunciar “em primeira mão” para o público interno, a campanha de comunicação dentro da empresa tinha Marcel Telles como âncora. Era o sócio que os empregados viam como referência. Então, se ele estava indo ali para dizer em pessoa que a Ambev não estava acabando, mas dando um salto, o pessoal interno não iria duvidar.

Ele anunciava que, a partir daquele dia, os empregados estavam trabalhando “na maior cervejaria do mundo”. Ele os parabenizava por isso. Ele ainda acenava com uma cenourinha corporativa, dizendo pra tigrada que a operação iria abrir inúmeras novas possibilidades de trabalho no mundo inteiro. Por fim, pontuava: “Nós não estamos sendo engolidos, nem vamos engolir”. Depois engoliram os gringos, sim. Mas naquele ponto era a tal “aliança global”.

Duda sempre batia nesta velha estaca: comunicação não é o que você diz, é o que os outros entendem.

Pra ele, essa frasezinha era o equivalente à Lei Áurea: o importante era convencer e não informar. Ele sempre dizia isso também. Não tava nem aí pra informação. O negócio dele era convencimento. "O jornalismo informa. A publicidade convence. Meu negócio é convencer". Por isso  esse blá-blá-blá todo da “intelectualidade”, da “objetividade”, ele não tava nem aí. Ele usava até a informação objetiva se fosse necessário. Mas apenas se fosse. “Sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor…”

Deixe-me exumar um pouco as entranhas daquele planejamento de comunicação, coordenado por Duda. Tudo o que você vê, ouve ou lê nas propagandas tem um norteamento estratégico por trás. Você nem percebe esses elementos, mas eles é que compuseram o diagnóstico sobre o que e, sobretudo, como dizer ou mostrar.

Chamávamos internamente o plano de “projeto Big Brother”. O posicionamento estratégico definido pela mensagem-mãe era este: “O maior produtor de cerveja do Brasil está se transformando no maior produtor de cerveja do mundo”. O discurso auxiliar era: “Na era da globalização, só existe uma forma de você não ser engolido: crescer”. Assim, a venda era um detalhe menor. Crescer na globalização passou a ser o mote. Era a forma de compatibilizar aquela transação com a promessa feita cinco anos antes.

A partir das reuniões das equipes de trabalho da Ambev e da Interbrew, definiu-se que a transação seria descrita como uma Aliança Global. O bordão era: “Brasileiros e belgas se unem para formar a maior cervejaria do mundo”.

As cores verde e amarelo, representando as tintas nacionalistas do governo, eram usadas em referência à multinacional que nasceria com a operação; uma multinacional  “verde-amarela”.

Eram sete os documentos do press kit:

1. A Ambev e Interbrew anunciam aliança global - Nasce a maior cervejaria do mundo
2. Aliança global entre Ambev e Interbrew forma a maior cervejaria do mundo
3. Aliança global coroa missão definida pela AmBev
4. Aliança une duas gigantes globais
5. As vantagens da Aliança
6. Perguntas e respostas
7. Fact sheet: um forte portfólio

Naquele caso, ele se preocupou com todos os detalhes. Sobretudo em tudo o que ressaltasse a paridade, a igualdade entre as partes. Até a foto oficial que registrava o momento exato da assinatura do negócio tinha apenas dois personagens: o chefão da Ambev e o da Interbrew. Do mesmo tamanho no enquadramento.

Duda acreditava e nos ensinava que, na comunicação, tudo fala. Não só as palavras. Tudo.

O anúncio daquele carnaval todo foi feito em grande estilo no horário nobre, com pesado plano de mídia. De repente, era o jingle. Depois, era Deus. O telespectador podia não entender nada. Afinal, não era propaganda de cerveja. Não era propaganda de produto. Era Deus e a charanga da torcida dizendo que uma coisa muito boa tava acontecendo. Devia ser.

O ponto-chave dessa campanha toda era que, além de neutralizar a artilharia da inveja adversária, ela também abria espaço para o governo respirar. Se a opinião pública apoiava, ficava mais fácil.

Os donos da companhia investiram dezenas, dezenas e dezenas de milhões naquele lançamento, que foi para todos os veículos, impressos também. Cumpriram uma castrense agenda de conversas nos dias seguintes. Todos os atores relevantes, entre juízes, ministros, até consultores econômicos que davam pitacos nos cadernos de finanças, todo o mundo foi acionado e informado.

O público interno, que não é só um público, mas uma poderosa mídia, saiu replicando o que recebeu de informação.

Foi um desembarque na Normandia. A empresa mostrou por que era o que era e virou o que viria a ser. O 3 G, depois, conquistou o mundo: comprou a maior cervejaria do mundo em valor, fabricante da Budweiser, o Burger King. Não pararam mais.

Naquele dia, quem achasse que eles estavam perdendo teria motivos bastante fortes para sustentar isso, documentalmente inclusive. Mas, no final da história, os que viam a transação assim estariam errados. Quem estava virando a lata naquele dia? Quem estava distorcendo a realidade? A imprensa ou os assessores de imprensa?

Quanto ao Duda, algum tempo depois, permitiu-se saborear uma deliciosa buchada.

Foto: Paulo Whitaker/Reuters Foto: Paulo Whitaker/Reuters

CABARÉ

Eu tava realmente lá em cima. Mesmo.

Meu amigo acabara de assumir a Prefeitura de São Paulo, maior cidade da América Latina. Saí do gabinete de Gilberto Kassab e fomos para o terraço, onde embarcamos no helicóptero oficial para a primeira solenidade dele e também do dia. Eu tava podendo.

Fomos sobrevoando a selva de espigões até o Palácio dos Bandeirantes, onde descemos para acompanhar a posse do novo governador de São Paulo, Cláudio Lembo, que, assim como Kassab, também estava assumindo naquele dia. Na cabine, apenas os pilotos, Kassab e eu. Voltamos no mesmo aparelho, descemos no mesmo terraço, fui até a sala do prefeito e, mais tarde, voltei pra casa na Bahia. Feliz da vida.

Chegando a Salvador, fui tomado pela curiosidade de saber como tinha saído, afinal, aquela entrevista que o novo prefeito dera na véspera da posse a um repórter da revista “Veja”. Eu fora ao gabinete (do então vice-prefeito) para preparar o discurso de investidura do dia seguinte. Quando fui entregar o texto, entrei na sala e ele estava conversando com o jornalista. Me convidou pra ficar. Disse que a coisa que mais detestava, quando repórter, era abelhudo que se metia nas conversas dos outros. Segui o manual à risca. Deixei os dois ali.

Na varanda de meu apartamento, como sempre saboreando um charutinho na madrugada, fui atrás do que havia sido publicado. O título da reportagem? “Mau começo”. Acessa daqui, acessa dali, senti frio na barriga:

• Há, no entanto, outros fatos que preocupam. Por exemplo: na véspera de sua posse, o novo prefeito cometeu a imprudência de abrir as portas de seu gabinete para um lobista de alto teor explosivo. Mario Rosa, ex-assessor de Duda Mendonça, já circulava por lá antes mesmo de Kassab assumir o cargo. Mau começo.

Por favor, amigo leitor, amiga leitora, não passe daqui agora, não. Leia de novo a coisa que escreveram contra mim numa publicação nacional. Por favor, releia.

(Pra começar, dizer que eu era “ex-assessor de Duda Mendonça” era um “subtexto” para queimar. Como se a adjetivação toda não fosse suficiente! Duda tava no meio do escândalo do mensalão. Então, ser ligado a ele naquele contexto não era algo casual; era uma tentativa velada de contaminação com um escândalo em que não estava. Você pode escrever uma verdade para sugerir o que não é. E ainda se escuda na “objetividade” para se defender de algo que não está escrito, mas que sabe exatamente bem o porquê. Esse é uma das regras desse jogo. De minha parte, aliás, a ligação com Duda sempre foi motivo de glória. E não de vergonha).

Este capítulo aqui é só pra você ver um pouquinho de como funciona o cabaré das relações, no intramuros de fontes e jornalistas. É um ambiente animado. Barulhento, cheio de penumbras e de folia. Algumas almas penadas circulam. Há gente alegre e deprimida. Farrapos humanos e moços e meninas na flor da idade. Todos atrás de emoções fortes. Mas só tem profissional.

Naquele meu caso especifico, lá se vai uma década quando escrevo, o repórter me viu ali com o iminente prefeito, falou na redação e um carinha lá decidiu usar o chicote dos outros para me bater. Por pura maldade. Essa imparcialidade e essa objetividade, onde já se viu?

Mas acontece. Ninguém é neutro. Jornalistas tentam, mas ninguém é perfeito. Você já imaginou o prefeito de uma cidade de 10 milhões de habitantes ter começado mal apenas porque um sujeito irrelevante como eu passou por lá? É resumo que se faça? Os milhões e milhões de munícipes estavam realmente recebendo um relato fidedigno?

Imagina. Não era apenas um lobista: não! Era um lobista de teor “explosivo”. Pouco? Não: de alto teor. Buuuummmmm!

Como é que você nunca ouviu falar de mim antes?

Ao longo de meus anos como consultor, tive que desviar de muitos torpedos e encaixar alguns. É o risco do negócio apanhar de vez em quando. Acidente de trabalho. Mesmo que não tenha feito nada de errado. É a sina dos guarda-costas.

A imprensa cumpre, sem dúvida, um papel fundamental nas democracias. Não é demonizando-a que a faremos melhor. Não a demonizo. Fui jornalista e a respeito e a admiro. Acho que as virtudes da imprensa e o nobre ofício dos que a produzem são muito maiores do que algumas ressalvas que se façam a ela. Mas trago aqui alguns episódios pontuais para reflexão. Pois, quanto melhor a imprensa, melhor.

Quando aquele peteleco saiu publicado, fiquei arrasado. Eu tinha sido jornalista e me achava importante. Isso mostra mais a minha fraqueza do que a força do ataque. Uma amiga minha, da revista concorrente, me mandou aflita um alerta, via e-mail, de que a menção a meu nome tinha viralizado. Um desocupado qualquer aproveitou a deixa e inundou as redações com a reprodução do ataque contra mim. Ela escreveu:

• Caro Mario Rosa, assim como outras dezenas de jornalistas, recebi este e-mail em minha caixa postal. Trata-se de um e-mail anônimo que traz um grave ataque a você e destrói sua imagem profissional. Da mesma forma que chegou aqui à revista, estou certa de que esta mensagem alcançou outras redações.

O remetente apócrifo se identificava como “Lobista do Mal”. Sabe como é, né? Tava passando e avistou um linchamento, não tinha mais o que fazer e me deu um chute na cara. Corajoso, usou capuz e luvas, pra não deixar as digitais. Deve ter ido dormir relaxado naquele dia...

Tudo isso, imagine, só porque cruzei com um repórter por acaso. Foi menos de um minuto. Ele, coitado, saiu depois da revista e foi ser assessor de imprensa do oligopólio dos empresários de ônibus do Rio de Janeiro. Tornou-se um colega. Quanto a mim, minha imagem profissional acabou mesmo só naquela cabecinha brilhante que me chicoteou. Foi um casinho cabeludo, mas a carreira de meu candidato a algoz foi ficando rala e ele saiu por aí, atrás de um tônico para si.

Os cães ladram e a caravana passa, já dizia o impagável Ibrahim Sued, mestre do colunismo social, em um de seus bordões mais consagrados.  “Ademã, que eu vou em frente”.

Atrás da manchete e da capa que você lê, da reportagem a que assiste, há muita cotovelada que nunca vai chegar ao seu conhecimento. Sabe quando batem o escanteio e os jogadores ficam se empurrando e puxando a camisa uns dos outros? O jornalismo, nos bastidores, é um eterno escanteio.

Uma vez, fui com meu patrão Carlos Jereissati para um “almoço” no jornal “Valor Econômico”. Carlos era retratado na época como um dos chefes da “telegangue” , o escândalo que rondava o noticiário depois da privatização das empresas de telefonia. Carlos era um dos controladores da Telemar, futura Oi, a maior de todas do setor.

“Carlinhos” sempre foi jeitoso. Fomos ali “almoçar" no ofidiário pra acalmar um pouco as coisas. Carlos combinou naquele dia um patrocínio para o evento de um ano do jornal, o que viabilizaria a vinda do ex-presidente Bill Clinton para uma palestra, como parte da comemoração.

O almoço foi ótimo, tudo bem, tapinha nas costas. Maravilha.

Não muitos dias depois, veio uma sarrafada do jornal na companhia. Imagina quem estampava a foto garrafal da reportagem? Carlinhos, em pessoa. Apanhou porque foi lá? Cá entre nós, ainda bem que ele gostava muito de mim. Porque, como consultor de crises, aquilo era um frango debaixo das pernas.

• Meus sócios me sacanearam: pagou pra apanhar, hein? Podia ter apanhado de graça, brincou Carlos, que levava tudo na esportiva, era calejado nessas e em muitas outras coisas.

O ponto que ele pediu que questionasse ao jornal, além da matéria, que era desajeitada, ficou sem resposta do lado de lá:

• Por que a foto dele e não as dos outros sócios? Por que ele sozinho? Por que não qualquer outro ou todos juntos?

O fato é que algumas fontes mais próximas desse ou daquele repórter na ocasião eram inimigas de Carlos. E viviam queimando ele o tempo todo. A imparcialidade é uma tentativa louvável, mas nem sempre possível.

O mesmo Carlos e eu vivemos uma situação parecida com a revista “IstoÉ”. A revista era muito mais próxima do empresário Daniel Dantas do que dele, Carlos. E os dois,  àquela altura, estavam às turras. Fomos lá “almoçar” e combinamos também algumas propagandas. No fim de semana seguinte, duas páginas de pancada no Carlos. Se o meu negócio fosse derrubar matéria, eu quebrava.

Na mesma “IstoÉ”, uns anos antes, eu tinha ido bater um papinho com o publisher, um ser idolatrado por mim, Domingos Alzugaray. Portenho, bem-apessoado, já tinha feito de tudo. Até galã de  fotonovela ele foi. Como dono da segunda maior revista do pais na época, sempre foi carinhosíssimo comigo. Na vez em que trabalhei para ACM, a revista estava triturando o velho coronel. Eu fui lá pedir uma forcinha, tentar acalmar as coisas. Resposta do seu Domingos:

• Eu não tenho nada contra o ACM. Eu sou muito grato a ele. Quando ele era ministro e eu fui lá pedir apoio, ele só ajudou meus concorrentes, inclusive dando algumas emissoras para eles. Resultado? Agora eles tão quebrando por causa do prejuízo das emissoras. Se ele tivesse me ajudado, eu estaria morto. Só não quebrei porque ele só me atrapalhou. Por isso sou tão grato…

Sabe que ele acabou aliviando um pouco mesmo? Aliás, “seu” Domingos exercia com mão de ferro o controle da redação. Se ele gostasse de alguém, ali não apanhava. Se detestasse, ninguém salvava. Uma vez, quando trabalhava para o empresário Paulo Panarello, fui lá humildemente pedir clemência.

• Mario, redação é um hospício. Não preciso pedir a ninguém pra ficar doido. Doidos eles já são. O que eu posso fazer, como dono do manicômio, é servir ou não servir o remédio. Se eu sirvo, eles ficam calminhos. Se não sirvo a medicação, não preciso pedir pra eles pularem no telhado, borrarem a enfermaria, babarem no avental. Eles já são doidos e vão fazer isso sozinhos. Não precisa ninguém mandar.

Figuraça, seu Domingos… saudades suas e obrigado por prestigiar aquele moleque, eu.

Uma vez, na rede Globo, o bicho pegou. O cartola Ricardo Teixeira tinha ganhado uma hora inteira de pisa, em rede nacional, no programa Globo Repórter. Era na época das CPIs do Futebol. Preparei um espesso livro branco, com documentos e argumentos para demonstrar que algumas coisas na reportagem não eram 100% exatas. Marquei um encontro com os dois diretores máximos do jornalismo da emissora. Fui “almoçar” com eles no restaurante executivo da empresa. Cheguei com aquele calhamaço na mão e a primeira coisa que ouvi foi:

• Estamos recebendo você. Mas, se for para tratar qualquer coisa em relação ao Ricardo Teixeira, vamos nos levantar. Vamos conversar sobre qualquer coisa, menos isso.

O que você faria no meu lugar? Fiquei ali por duas longuíssimas horas, entabulando um monólogo autista.

Depois, os dois lados fizeram as pazes. A rede Globo sempre teve a exclusividade do futebol em sua grade de programação. Quando tudo já estava bem melhor, anos mais tarde, num almoço restritíssimo de confraternização, Ricardo me deixou exatamente ao lado do diretor que me recebera naquela ocasião. Ricardo falava calado.

Essa luta de sumo entre fontes e jornalistas, com caras como eu imprensados no meio, era uma constante. Noutra vez, havia marcado um “almoço” com os diretores da redação da “Veja”. Nessa época, estava trabalhando para o ex-secretário-geral da Presidência no governo FHC, Eduardo Jorge Caldas Pereira. Chamavam ele de EJ e de “esquema EJ” um arsenal infinito de acusações das mais estapafúrdias. EJ, depois, ganhou processos contra todos os veículos que o atacaram. EJ não era fraco, não.

Naquele dia, tínhamos marcado de conversar com os editores da revista porque EJ havia tomado outra. Dessa vez, era acusado numa matéria de título irônico: “Dudu, Lulu e Lalau”. Dudu era ele. Lulu era Luiz Estevão de Oliveira Neto, o primeiro senador cassado da história brasileira. Quanto a Lalau, era o apelido do juiz Nicolau dos Santos Neto, que foi condenado por irregularidades na construção da sede do Tribunal do Trabalho, de São Paulo, erguido pela empresa de “Lulu". A trama envolvia   “Lulu” Estevão e, naquele contexto, também “Dudu”, EJ.

Faltando dez minutos para o “almoço”, recebo uma ligação de um dos editores:

• Nós vamos ao almoço, contanto que não seja para conversar sobre o caso EJ.

Transmiti o recado. EJ, com lágrimas nos olhos, me perguntou por que ir então, afinal? Pense por um segundo só que ele fosse inocente e que estivesse na pele dele: como você se sentiria naquela situação?

Disse a ele que o importante é que estavam aceitando conversar. Era um avanço. Claro, havia um abismo no meio da conversa, mas era melhor atravessar um abismo do que cair nele.  “Deixe ver como as coisas vão e, se for tudo bem, lá no fim o senhor toca no assunto", recomendei.

Fomos. A conversa foi agradabilíssima. No cafezinho, ele se defendeu. Ao longo do tempo, a cobertura foi melhorando. Anos depois, EJ ainda saiu até bem por lá.

Dizer que essas interações  intramuros são só boas ou só ruins é uma generalização banal. Pessoas são pessoas e temos ou não temos afinidades com elas sem nem saber direito por quê. Vale pros dois lados, com a desvantagem, no meu: é que, quando o canhão está apontado contra você, se cismarem de lhe descarregar a munição, não há muita coisa a fazer, a não ser entubar.

Fui também muito bem tratado por jornalistas de todos os veículos. Tanto pessoalmente quanto profissionalmente. Eu diria que fui infinitamente mais bem tratado do que o oposto disso. Meus livros receberam generosas resenhas, o que empurrou minha carreira pra frente, reforçou a imagem junto ao “mercado” e por aí vai. Alguns títulos de resenhas de meus livros:

"Imagem é tudo. Ou nada"- revista “Veja”
“Querido consultor” - revista “Veja”
“Médico da imagem” - revista “IstoÉ”
“Uma vacina para manter a imagem” - revista “IstoÉ”
"Bombeiro de marcas"- revista “IstoÉ  Dinheiro”
"Lições para se proteger da mídia" - revista “Época”
"O manual da crise" - revista “Época”
"Salvador de reputações" - revista “Imprensa”
"Crises em carne e osso" - revista “Exame”
"Luz nos escândalos nativos" - revista “Carta Capital”

E por aí foi: resenhas em jornais dos meus três livros, tratamento de alto nível, algo que me ajudou. Não está aqui alguém com nenhuma dor de cotovelo. Pelo contrário.

Fui parar até na lista dos livros mais vendidos, por algumas semanas. Mais vendido, eu?

Seria reducionista demais, portanto, resumir relações humanas complexas, num contexto frenético, cheio de desconfianças, a algumas desagradáveis situações.

Quando virei escândalo na Operação Acrônimo, estavam fazendo uma grande reportagem sobre as assessorias de imprensa. Eu estava vulnerável naquele momento: era o único assessor que tinha uma pendência policial. O repórter da revista “Piauí” Luiz Maklouf tinha poder de vida ou morte sobre mim. Podia aumentar a minha agonia ou podia me fazer partir em paz. Ele me matou com grande dignidade. Fez tudo o que tinha de fazer, não omitiu nada, mas o fez de forma cuidadosa e multifacetada.

A palavra serve para revelar, mas no jornalismo também para esconder. Sob o álibi de uma descrição escorreita, pode haver uma grande brutalidade. Estive com Maklouf mais de dez horas. Mostrei tudo de minha vida pra ele. Me deixei levar num ímpeto que, consultor dos outros, se consultado pelos outros, tenderia a recomendar não fazerem o que fiz nessa vez. É muito mais fácil ter certeza com os outros do que com a gente - o que mostra que nossas certezas podem não ser certas, embora técnica e teoricamente corretas. E isso é ainda mais grave quando envolve um conselho que damos ao outro. Aprendi essa lição comigo.

Maklouf foi correto.

De tempos em tempos, acontecia de eu levar uma bordoada sem nem saber direito a razão. Serviu para entender um pouquinho como os clientes sofriam. Mas sempre achava incrivelmente inacreditável como um assunto irrelevante, como eu, podia substituir outros no noticiário e se transformar em conteúdo publicado. A agenda da imprensa é sempre realmente o que lhe interessa, prezado leitor, prezada leitora?

Pros meus clientes, eu declamei muitas vezes o mantra: informação é informação, notícia é notícia. Jornalistas gostam de notícia. Só de notícia pra eles.

Oswald de Andrade já dizia: “A gente escreve o que ouve, nunca o que houve”.

Informação é o boi no pasto. Notícia é o bife grelhado embaixo do cloche, às vezes de prata. São essencialmente a mesma coisa. Mas boi é boi e bife é bife. E o grelhado fica ao gosto de quem serve, não do cliente. Bom apetite.

Nesse ambiente de guerra fria que acontece em volta das redações, algumas vezes fui notícia apenas porque havia um celerado qualquer tentando acertar alguma pinimba pessoal comigo. E o leitor: o que ele tem a ver com isso? Em publicações mais robustas, isso é mais raro. Mas às vezes a peneira deixa passar. Eu mesmo não fui apresentado ao distinto leitor como uma bomba? Kabuuuuuum!

Tem muita paranoia e teoria conspiratória aí no meio, entre o que você lê e o que acontece. Faz parte. Quem é desse ramo da informação, digamos assim, não janta em alguns lugares. Mas, pra você, meu caro, seu consolo é a vigilância sanitária das redações, às vezes precária.

Dizia um velho amigo meu que aos amigos tudo, aos inimigos o manual de redação! Aos inimigos, a lei. Sempre haverá uma forma conceitualmente defensável de praticar uma barbaridade. O jornalismo não é exceção. Faz parte da vida.

A teoria conspiratória, certa feita, me custou caro. Fui solenemente sacaneado por uma publicação de renome. Sacaneado na pessoa física, não algum cliente meu. Pode haver coisa pior do que um dentista com mau hálito? Por melhor que ele seja, por mais bonito que seja o consultório? E um cara de crise de imprensa que toma uma pancada num artigo? Quando ainda não tinha vivido muito, achava esse perigo algo mortal. Os clientes não ligavam. A maioria nem via. Mas eu ficava angustiado, até ir aprendendo.

Um amigo teve uma vez um rompante e fez um mea-culpa de um erro seu como jornalista. Ele já estava fora das redações. Admitira um erro de cálculo da escala do milhar. Uma determinada quantia que ele disse que alguém havia recebido era mil vezes menor, mas o cara mencionado depois na matéria da dele - um político de primeira linha - jamais se recuperou totalmente do baque.

O autor da reportagem, esse amigo, escreveu um texto posteriormente admitindo a falha. O texto vazou e virou matéria de uma revista. O rapaz tinha 23 anos, coitado, quem nunca errou? Coitado também de quem sofreu com o erro dele. Mas quem nunca foi injustiçado?

O fato é que a publicação em que o rapaz trabalhava quando errou se sentiu atacada pelas costas. Preferiu achar que aquilo não era por acaso. Sobrou pra mim. Só porque ele era meu amigo. A publicação se convenceu de que havia um complô para desestabilizá-la. Provas? Nenhuma. Verdade? Não. Mas era aquilo e pronto. E quem era o cara por trás disso tudo? Eu. Sim, euzinho. Alguém tinha de ser o culpado. Eu era um ótimo culpado: não tinha nenhuma importância, né?

E tome sarrafo. Sofri e mandei uma mensagem quilométrica me justificando para o diretor de redação. Pedi que, como um César das impressoras, movesse seu augusto polegar e me poupasse dos leões. Que mandasse parar as máquinas. Qual o quê! Ele me mandou uma resposta desaforada, de madrugada:

• Caro Mario, entendo seu agravo. Quando vocês se reuniram naquela vergonhosa operação, estavam agindo em nome de uma causa, vagabunda na origem, mas uma causa. Atiraram contra uma coletividade, não contra uma pessoa. Entendo como deve doer quando o ataque é individualizado. Não quero alimentar rancores e mágoas. Life goes on! Abraços.

Veja bem, meu amigo: se eu, que fui do ramo, conhecia os meandros e ainda assim passei por esses perrengues, imagina quem tem muito inimigo, quem diz muito não, quem tá disputando uma bolada? Foi essa gente a que servi. Gente contra a qual paranoias ou complôs imaginários podiam ser um elemento de convicção. Paranoias que às vezes varrem a mente de editores, de todo tipo de gente, vaidosa, invejosa ou tão acima do bem e do mal que não está nem aí, embora queira se convencer de que está.

Aquele diretor de redação que permitiu um ataque contra mim passou anos lá e - quer saber? - ficou só naquilo mesmo. Saiu barato. Vida que segue.

Certa ocasião, um site bastante acessado botou meu nome lá no meio por causa de um prefácio qualquer que me citava. A manchete era: "Incendiários da era Collor viram bombeirinhos". Eu tinha sido um repórter na época do impeachment e depois tinha ido ganhar a vida como guarda das costas quentes.

O que sai na imprensa, e o que não sai; como sai na imprensa, e como não sai; o que entra na imprensa, e o que não entra, tudo isso o consumidor final do bife não vê. Mas nós, da cozinha, que sabíamos como as salsichas e as leis eram feitas, percebemos rapidamente quando o bolo queimou, quando o caldo salgou, quando o cozido passou do ponto. Por sinal, o dono do site depois virou meu amigo. Não guardo rancor. Posição oficial.

Já um alucinado, uma vez, publicou num blog que eu estava por trás de uma conspiração envolvendo o vazamento de dados em segredo de Justiça no âmbito do Supremo Tribunal Federal, pra prestar serviço na guerra do Senado da República com o Ministério Público. Meu objetivo? Derrubar o presidente da República.

Vou repetir porque talvez você não tenha reparado direito:

Uma vez, um alucinado publicou num blog que eu estava por trás de uma conspiração envolvendo o vazamento de dados em segredo de Justiça no âmbito do Supremo Tribunal Federal, agindo como lacaio na guerra do Senado da República com o Ministério Público. Meu objetivo? Derrubar o presidente da República.

O pobre coitado ainda “confirmou" essa grande informação exclusiva. Passadas algumas semanas, um conhecido veio comentar comigo aquele assunto. Ninguém tinha falado comigo e eu só soube naquela hora.

Perdeu, playboy! A parada é sinistra, o bagulho é doido.

Como é que você se protege disso?

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Mario Rosa

Mario Rosa é consultor de imagem, diretor da MR Consultoria, e jornalista formado pela Universidade de Brasília (UnB). Foi editor da revista "Veja", repórter do Jornal Nacional (TV Globo) e trabalhou também no "Jornal do Brasil". Venceu o Prêmio Esso por duas vezes. É autor de livros como "A Era do Escândalo" e "Reputação na Velocidade do Pensamento". No marketing político, atuou e coordenou campanhas eleitorais no Brasil e na Argentina.

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