"Fui marmita de traficante"

Elas se envolveram com criminosos e entraram em um perigoso jogo de poder, dinheiro, violência e drogas

Bia Sant'Anna Do UOL, em São Paulo

“Todo mundo quer ser a próxima Bibi Perigosa”, diz a jovem paulistana moradora de uma favela na zona Sul de São Paulo. A personagem de Juliana Paes na novela “A Força do Querer” - e inspirada em Fabiana Escobar, ex-mulher do traficante Saulo da Rocinha, o "Barão do Pó" - tem mesmo seu apelo. É uma mulher cheia de vida, de atitude e que não leva desaforo pra casa.

E, claro, instiga também o imaginário: a promessa de uma vida de “mimos”, aventuras e muito respeito na comunidade. “Ninguém mexe comigo e essa sensação de poder é muito boa”, continua M.*, que tem 20 anos e namora há um ano e meio um traficante local.

Ele ainda não é um líder na cadeia de comando, mas já transmite confiança e, digamos, imunidade à namorada.

M. não está sozinha: apesar das fugas constantes e do perigo iminente de um confronto com a polícia ou outros traficantes, muitas jovens almejam esse status.

Tudo, claro, tem seu preço: nenhuma personagem da matéria quis dar o nome completo ou se deixou fotografar (*todas as identidades foram preservadas a pedido delas). “Melhor não arrumar confusão”, “A atual dele manda me matar”, “Não quero expor ninguém”, “Minha família não pode saber que saí com ele” foram algumas das coisas que disseram à reportagem.

No Brasil, o principal motivo que leva mulheres ao encarceramento é o tráfico de drogas. Ou a associação com esse crime. E o número de mulheres que vão para a cadeia por conta disso não para de crescer: 567% entre 2000 e 2014.

Veja agora como vivem, pensam e o que desejam as primeiras-damas do tráfico.

Ninguém mexe com a mulher do traficante

“Sim, é bom se sentir respeitada e ser conhecida como a mulher do chefe”, admite L., de 24 anos, e moradora de Heliópolis, bairro da zona Sul de SP que abriga uma favela com o mesmo nome.

Ela esteve nessa condição por quase três anos. Ganhava presentes caros, ninguém a desafiava na comunidade e andava na rua com uma despreocupação nada habitual para os outros moradores. O poder era sedutor, mas sua vida também era cercada de medo. “Foram várias fugas da polícia! E brigas bem violentas entre ele e outros caras”, conta.

A violência também transbordava para dentro de casa. “Quando o conheci, aos 21 anos, não sabia que era ligado ao tráfico, mas logo fui vendo as coisas que aconteciam à minha volta, as drogas, o dinheiro, as armas, e um dia ele abriu tudo. E então começaram as brigas, por ciúme, e apanhei algumas vezes. Tentava me afastar, era sufocante, mas não dava.”

A gota d’água, segundo L., foi um murro no maxilar que a deixou internada por três dias no hospital. “Depois disso, só voltei a falar com ele quando tomou um tiro e me ligaram. Fiquei ao lado dele até ter alta. Levei pra casa e tudo, mas falei que dali em diante seríamos só amigos.”

Grávida e bloqueada nas redes sociais

“Quando se namora alguém desse “ramo”, todo mundo que o odeia passa a te odiar também. A gente saía de casa sem saber se ia voltar vivo. Era muito medo. O tempo todo. E não estou falando só de outros bandidos, não, tem a polícia também”, conta B., de 19 anos e grávida de 8 meses do ex. Quando contou que esperava um filho dele, foi bloqueada nas redes sociais e agora estão afastados.

B. conta que no começo, quando o pai do menino que espera mudou para sua rua, a relação era cheia de carinho. Ele era muito educado e brincalhão. “Depois foi se mostrando quem realmente era. Reclamava das minhas roupas, mexia no meu celular, apagava fotos. Quase me bateu.”

Um traficante que, segundo ela, “criou metade das favelas daqui (São Paulo), já foi o bambambam e depois caiu, foi procurado, quase preso, e até mesmo quase morto”. Diz que não chegou a viver uma situação real de perigo, mas andava sempre cismada, porque “ele não era do tipo querido por todos”.

Ela não tem muitas expectativas de que o pai do filho vai participar de sua criação. Mas diz que não irá impedir o contato entre os dois. “Só não quero intimidade comigo. Aprendi a lição. Namorar esses caras é dormir sem saber se você vai acordar.”

Tesão pelo perigo

“Nossa, dá muita sensação de poder, parece que você está protegida e o ego vai lá em cima. Você fica sem medo de nada.” Ainda assim, a vida ao lado de um traficante botou a adolescente R, de 16 anos, em perigo algumas vezes. “Ele estava sendo procurado e a Polícia quase pegou ele na minha casa. Já tivemos que nos esconder no mato também. A pior coisa é isso, que você nunca sabe quando a polícia vai aparecer de novo. Pode ser preso a qualquer momento ou alguém pode querer matar a pessoa”, lembra. “Mas o perigo também dá tesão, e com a gente era assim, uma transa casual.” O envolvimento, apesar de não ser monogâmico, durou cerca de seis meses.

“Eu tinha 16 e ele 21 anos. Várias pessoas me chamavam de “marmitinha”. Sim, já fui marmita de traficante, mas eu sabia o que queria. Mesmo assim ele morria de ciúme. Nunca me proibiu de nada, pelo contrário, era um amor comigo. Eles (traficantes) são super protetores, carinhosos.”

A relação também envolvia cumplicidade. Os dois conversavam bastante, mas a frieza do ficante assustou R. algumas vezes: “Quando ele foi matar um rapaz e passou na minha casa pra me contar depois do ato agiu como se nada tivesse acontecido”. Segundo ela, quem vê o ex-parceiro na rua jamais diria que ele leva essa vida: “carinha de bobinho, mas uma mente super calculista”.

Hoje, aos 17, ela diz ter aprendido uma lição: “Não namoraria, porque quando estamos envolvidos com pessoas assim, acabamos sabendo de muitaaa coisa”.

"Namorar traficante é fazer um pacto pra viver sozinha", diz a verdadeira Bibi Perigosa

"Eu entendo a menina que quer namorar um traficante. Ela, que não tem nada, de repente recebe um maço de dinheiro pra ir ao salão, pra comprar roupa nova pro baile. E eles são bonitos, sedutores mesmo. Mas o que elas têm que entender é que essa é uma embalagem furreca. Isso aí dura só uns dias, não vale a pena!", diz Fabiana Escobar, a verdadeira Bibi Perigosa, que inspirou Glória Perez a criar a personagem de Juliana Paes na novela "A Força do Querer".

"Depois você vai apanhar por causa de outras mulheres, vai dormir sozinha, vai criar filho sozinha. Eles não são fiéis e ainda podem te envolver no tráfico também. E, claro, você vai ficar lá na cadeia sozinha, porque eles é que não vão fazer visita. Traficante sempre acaba morto ou na cadeia."

"Quer a real? Não vai ter uma linda história de amor."

Fabiana hoje tem 37 anos e ainda mora na Rocinha. Ela conheceu Saulo de Sá e Silva ainda na adolescência e ficou ao seu lado por 14 anos. Ele, que é pai de seus dois filhos, ficou conhecido como o Barão do Pó, chefe poderoso - e procurado - do tráfico. Fabiana encarou a barra de estar ao seu lado - "é polícia metendo o pé na sua porta toda hora" -  e passou a levar uma vida um pouco diferente da que um dia tinha sonhado.

Sim, por um lado, ela tinha muito luxo, dinheiro e poder. Por outro, vivia em fuga e os filhos, às vezes, em perigo.

Hoje, aliás, eles vivem longe do pai, que está encarcerado em Bangu, zona Oeste do Rio, desde 2008. Saulo foi preso após um café da manhã da família em Maragogi, em Alagoas. Estava foragido. Fabiana e ele se separaram em 2010. Ela chegou a ser investigada, mas se livrou da acusação de associação ao tráfico.

 

Amor da vida inteira

“Eu conheço o D. desde criança, nossos pais eram muito amigos, vivia lá em casa. Mas depois que o pai dele morreu, nunca mais foi o mesmo e se afastou. Os anos se passaram e um dia me ligou pedindo para visitar o irmão dele, que tinha se envolvido num tiroteio e estava paraplégico”, relembra T, de 19 anos.

No encontro, ela descobriu que o amigo de infância estava no mundo do crime e planejando vingar a morte do outro irmão. Ficou preocupada e algum tempo depois acabaram se encontrando. “Ele passou em casa com um cara no carro e durante o trajeto conversaram sobre como iam ‘cobrar’ o cara que não pagou pela droga. O outro disse que podiam fazer a mesma coisa que tinham feito com sei lá quem, era só enterrar que ninguém ia saber”, conta.

Quando o amigo saiu, D. começou a falar sobre as drogas que vendia, as pessoas que tinha matado, e de como ele controlava tudo do irmão que estava na cadeia. No final, só perguntou a T. se ela aceitava ou se queria voltar pra casa. “Então eu o beijei e saímos dali. Esse dia ele ainda fez uma entrega, eu não sei o que era, pois estava em uma caixa bem grande que ocupava quase todo o porta-malas.”

Ela diz que realmente dá mais tesão por ele ser “do crime” e que sabe que a relação tem muitos riscos, como ele ser morto ou preso. “Mas conheço pessoas que já saíram dessa vida e acredito que ele pode sair também.” Os dois nunca namoraram realmente, mas permaneceram próximos durante um bom tempo:  “nossa relação era até bem comum, sempre tínhamos encontros clichês, cinema, jantar, barzinho”.

Atualmente T. mora nos Estados Unidos e o ex em Brasília. Ela, inclusive, não descarta uma relação mais duradoura na volta ao Brasil: “Ele me trata como uma princesa e é uma das pessoas que mais admiro”.

Vigiada até dentro de casa

“A qualquer momento da madrugada, se alguém me abordasse na rua, sempre tinha algum pessoal dele olhando. Se me roubassem, então, não iam longe, porque ele ia atrás. Aliás, me sentia vigiada até dentro de casa.” G, hoje com 18 anos, namorou um traficante que atuava na sua rua, na zona Norte de São Paulo. Admite, inclusive, que o que mais a atraiu foi a “profissão” do parceiro: “Acho que só me interessei por ele quando soube o que fazia”.

“A melhor coisa era essa sensação de poder e perigo. E os mimos. Tipo roupas ou então me levava onde eu quisesse. Bastava eu escolher: se quisesse algo ou ir pra algum lugar, ele sempre dava um jeito e fazia minha vontade.

G, na época com 16 anos, diz que o ficante, de 24 anos, era calmo, mas também muito ciumento. “Ele ia tirar satisfação, já dava um ‘apavoro’ em qualquer um.” O jovem queria namorar, “de aliança e eu não”, mas G. diz que sua família jamais aceitaria. “Tive que manter escondido e ele sempre anunciando pro mundo.”

As amigas também  tentaram dissuadi-la da ideia de levar a relação perigosa adiante, mas “aquilo só só me motivou a querer mais”. Segurança e respeito, era disso que ela mais gostava.

Até o dia em que descobriu que ele era casado: “Um dia chegou uma mensagem perguntando porque eu estava conversando com o marido dela”. Bloqueei ele, mas minha vida virou um inferno. Não parava de me ligar, criou vários perfis falsos no Facebook pra falar comigo, dizia que me amava. Sofri mais que tudo, mas não voltei atrás”.

Ameaça de morte

D., de 20 anos, conheceu seu “amor bandido” aos 13, em Campo Grande (MS). Os dois eram de família de classe média alta e ele tinha acabado de chegar dos Estados Unidos (onde nasceu). Era um pouco mais velho que ela, tinha 16, e começaram a namorar. “Ele tinha uma personalidade tímida, era discreto e misterioso.”

Com o tempo, porém, o namorado foi se tornando agressivo com ela e com todos na escola. “As pessoas tinham medo dele, menos eu.” Com 18, ele foi detido pela primeira vez, mas os dois não estávamos mais juntos. Na verdade, isso aconteceu logo após o término. “Descobri que ele estava preso porque esfaqueou um homem por dívida de tráfico de drogas”, conta a estudante.

O ex ficou aproximadamente um ano na cadeia e logo que saiu arrumou outra namorada. “Ela era bem vida louca, fui ameaçada diversas vezes. Cheguei a fazer boletim de ocorrência. Ela me ligava de manhã ou a qualquer horário pra me xingar e falar que ia me bater, até me matar.”

Apesar da experiência intensa, D. diz que foi uma história bonita. “Era um amor puro, intenso, nós nunca nem transamos. Fui muito feliz com ele, mas jamais namoraria alguém assim de novo.”

Namoradas de traficantes não recebem visitas na prisão

por Maria Carolina Trevisan

Não existe glamour quando a companheira do traficante é presa. No Brasil, o principal motivo que leva mulheres ao encarceramento é o tráfico de drogas. Mais de 60% das presas estão encarceradas por ligação com o comércio de entorpecentes. Impulsionada pela Lei de drogas, essa população vem aumentando: cresceu 567% entre 2000 e 2014, chegando a 37.380 mulheres presas. No mesmo período, a taxa de homens presos aumentou 200%, de acordo com o Departamento Penitenciário Nacional (Depen).

“A atual política de drogas é o principal motivo para o aumento exponencial do aprisionamento de mulheres”, mostra uma campanha do Instituto Terra Trabalho e Cidadania (ITTC). Em 2006, a Lei de drogas sofreu uma modificação: a posse para uso pessoal continuou a ser crime, mas a sanção deixou de ser a privação da liberdade e o usuário passou a cumprir penas alternativas à prisão. A distinção entre usuário e traficante é feita por interpretação do juiz. A lei não especifica quantidades para cada situação o que abre um vasto campo para a subjetividade.

Em um país racista como o Brasil, com um sistema de justiça majoritariamente branco, a tendência foi considerar negros e negras pobres como culpados de tráfico de drogas.   

Do total de mulheres privadas de liberdade, 68% são negras. Metade tem entre 18 e 29 anos e 50% não completou o Ensino Fundamental.  

Além disso, diante do crime de tráfico, considerado hediondo, com penas mais duras, tudo pode acontecer. “Quando o crime é tráfico de drogas, a punição é dada antes mesmo do julgamento e de forma mais gravosa do que em qualquer outro crime”, conclui uma análise do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP. 

Grande parte dessas mulheres privadas de liberdade cometeram crimes menores, sem relação profunda com o tráfico e não tinham antecedentes criminais. A maioria estava em situação de vulnerabilidade: sem acesso a empregos formais, com baixa escolaridade e figuravam como as principais e únicas provedoras do lar. Nesse contexto, ganhar dinheiro com tráfico pode parecer uma boa saída.

A vida das mulheres no cárcere também é muito solitária. Não tem fila na frente do presídio feminino nos dias de visita. Quem enfrenta a revista para visitar uma mulher presa são outras mulheres, geralmente a mãe ou a filha. 

Já as cadeias masculinas começam a receber familiares (a grande maioria mulheres) na tarde anterior ao dia de visita. São centenas de pessoas que passam a madrugada nas filas em frente aos presídios para ver seus parentes presos. Ao contrário das mulheres privadas de liberdade, as namoradas e esposas visitam seus companheiros encarcerados.   

Pouca gente se preocupa com as detentas. Ninguém faz vigília para visitá-las. E para a maioria, também não tem visita íntima, apesar de ser um direito previsto na Lei de Execução Penal. Mas o mais cruel para uma mulher presa é a separação dos filhos, a perda do convívio com as crianças, preço a pagar cujo valor é impossível de estimar.

Quando o crime é tráfico de drogas, a punição é dada antes mesmo do julgamento e de forma mais gravosa do que em qualquer outro crime

Análise do Núcleo de Estudos da Violência da USP

“De todos os tormentos do cárcere, o abandono é o que mais aflige as detentas. Cumprem suas penas esquecidas pelos familiares, amigos, maridos, namorados e até pelos filhos. A sociedade é capaz de encarar com alguma complacência a prisão de um parente homem, mas a da mulher envergonha a família inteira.

Enquanto estiver preso, o homem contará com a visita de uma mulher, seja a mãe, esposa, namorada, prima ou a vizinha, esteja ele num presídio de São Paulo ou a centenas de quilômetros. A mulher é esquecida.

Chova, faça frio ou calor, quem passa na frente de um presídio masculino nos fins de semana fica surpreso com o tamanho das filas, formadas basicamente por mulheres, crianças e um mar de sacolas plásticas abarrotadas de alimentos. Já na tarde do dia anterior chegam as que armam barracas de plástico para passar a noite nos primeiros lugares da fila, posição que lhes garantirá prioridade nos boxes de revista e mais tempo para desfrutar da companhia do ente querido.

Em onze anos de trabalho voluntário na Penitenciária Feminina, nunca vi nem soube de alguém que tivesse passado uma noite em vigília, à espera do horário de visita. As filas são pequenas, com o mesmo predomínio de mulheres e crianças; a minoria masculina é constituída por homens mais velhos, geralmente pais ou avôs. A minguada ala mais jovem se restringe a maridos e namorados registrados no Programa de Visitas Íntimas, ao qual as presidiárias só conseguiram acesso em 2002, quase vinte anos depois da implantação nos presídios masculinos. Ainda assim graças às pressões de grupos defensores dos direitos da mulher.

São poucas as que desfrutam desse privilégio. Na penitenciária o número das que recebem visitas íntimas oscila entre 180 e duzentas, menos de 10% da população da casa.”

Trecho do livro "Prisioneiras" (Cia das Letras), do médico Drauzio Varella  

Curtiu? Compartilhe.

Topo