Goleiro desconstruído

Do combate à "trapaça" aos passes, dribles e gols: a história de uma posição que trocou as mãos pelos pés

Lucas Pastore Do UOL, em São Paulo

No dia 27 de agosto, o Liverpool vencia o Leicester City por 2 a 0 quando Alisson, goleiro titular também da seleção brasileira de Tite, errou ao tentar driblar um oponente e cedeu o gol de honra aos adversários. Estopim para que a discussão sobre a utilização dos pés por jogadores da posição, que parece crescer a cada ano, aumentasse. Argumentos favoráveis e contrários foram explorados. Mas qual a origem desse fenômeno?

A função foi desconstruída após mudança de regra realizada pela Fifa em 1992, que tornou proibido pegar com a mão os recuos de bola. Era uma tentativa de aumentar o dinamismo do esporte, abrangia diferentes conceitos, ideias e possibilidades, mas ao obrigar goleiros a participar do jogo com os pés também no ataque, ajudou, de fato, na construção de um novo papel para o jogador da posição.

Além disso, a função também passou por grande evolução técnica. Assim, até equipes de médio porte estão bem servidas debaixo das traves. O resultado disso é que outras habilidades passaram a ser vistas como diferenciais. Entre elas, o jogo com os pés.

A origem da mudança

Como uma trapaça mudou o papel do camisa 1

Até 1992, o goleiro podia pegar a bola com as mãos mesmo se ela fosse recuada por um colega de equipe. Porém, na Eurocopa daquele ano, a Dinamarca usou a possibilidade de maneira pragmática, gastando o tempo quando tinha vantagem no placar, o que ajudou a seleção a vencer a Alemanha na final e conquistar o título da competição pela primeira vez na história.

Além disso, o goleiro podia dar no máximo cinco passos dentro da área após defendê-la para colocá-la novamente em jogo. Passou a poder caminhar livremente, e a restrição passou a ser de tempo. Ali, ainda que sem intenção, começava a revolução da posição. 

Shaun Botterill/Allsport Shaun Botterill/Allsport

Acho que alguns goleiros da minha época certamente teriam dificuldades com a forma como o jogo é jogado hoje. Mas como qualquer coisa, é impossível comparar equipes de dez ou vinte anos atrás. Hoje em dia existem mais goleiros e mais goleiros de qualidade"

Peter Schmeichel, goleiro dinamarquês que fez carreira entre 1981 e 2003, em entrevista ao site oficial da Fifa.

Juca Varella/Folhapress Juca Varella/Folhapress

Uso dos pés tem origem no São Paulo de Telê e Valdir Joaquim de Moraes

De acordo com Carlos Thiengo, Doutorando em Pedagogia do Esporte Unicamp e autor do livro "Com a Nação nas Mãos: A história do treinamento de goleiros no futebol brasileiro", a construção do goleiro como elemento proativo do jogo pode ter origem em uma ideia brasileira. Telê Santana, técnico multicampeão pelo São Paulo em sua segunda passagem pelo clube, que durou entre 1990 e 1996, queria que as bolas chegassem com mais velocidade aos rápidos pontas da equipe. Levou o problema a Valdir Joaquim de Moraes, então preparador de goleiros do clube e pioneiro na posição.

A abordagem de Telê fez com que Valdir, que já tinha o trabalho com os pés em sua metodologia, desenvolvesse uma nova maneira de bater na bola. O preparador criou a reposição em voleio, que preza mais pela precisão do que pela força. Antes os goleiros colocavam a bola em jogo com o "balão", batendo nela de maneira mais frontal em um chute que fazia com que ela ganhasse mais altura.

Ex-goleiro e hoje comentarista dos canais ESPN, Zetti, que administra uma academia de goleiros, confirmou que incorporou o conceito quando passou a trabalhar com Valdir e Telê no São Paulo. 

"Quando eu comecei no Palmeiras, eu achava que chutar forte era ótimo, me ajudava porque eu dava o “balão”. Nunca se considerava que o goleiro dava um lançamento para o atacante. No São Paulo, com o Valdir e o Gilmar, eu comecei a mudar isso. Aprendi muito vendo o Gilmar. Eu chutava muito forte e não tinha a preocupação de onde a bola ia. A única preocupação era mandar a bola o mais longe possível da minha área. O Valdir falava que não precisava de tanta força, precisava de precisão. Assim, comecei a acertar o posicionamento", contou, ao UOL Esporte.

Do ponto de vista da diferenciação, defender é como se fosse um vidro elétrico. No começo, era um diferencial de mercado. Hoje, é obrigação. O diferencial são outras coisas

Carlos Thiengo, autor do livro "Com a Nação nas Mãos: A história do treinamento de goleiros no futebol brasileiro"

Pedro Martins / MoWA Press Pedro Martins / MoWA Press

Clubes levam modelo de jogo em conta na busca por goleiros

Quando assumiu o Manchester City, em 2016, Pep Guardiola causou polêmica ao afastar Joe Hart, então titular da equipe e da seleção inglesa. O treinador queria alguém que trabalhasse melhor com os pés, e a primeira aposta foi o chileno Claudio Bravo. Na última temporada, o técnico ainda foi buscar o brasileiro Ederson para qualificar a posição.

Na última final da Liga dos Campeões, Loris Karius, goleiro do Liverpool, falhou tanto em finalização de longa distância de Garteh Bale quanto ao sair jogando em lance que terminou com gol de Karim Benzema. Por isso, o clube inglês foi buscar o também brasileiro Alisson na Roma, contratação que representou evolução tanto embaixo das traves quanto no jogo dos pés.

Na Europa, claramente já se leva em consideração o modelo de jogo na busca por um goleiro. No Brasil, ainda são dados os primeiros passos nesta direção.

"No Brasil, tirando o Audax, não vejo nenhum goleiro sendo protagonista nesse sentido. Trabalham bem com o pé, mas não como parte da estratégia de uma equipe", disse Renato Rodrigues, analista de desempenho e comentarista dos canais ESPN, ao UOL Esporte.

Mas "jogar com os pés" é um conceito genérico, que abrange diversas possibilidades. Cada goleiro participa do jogo de um jeito:

Reposição de bola tem maior exigência de velocidade e precisão

Um dos modos com que o goleiro pode ajudar com os pés é em reposição de bolas paradas, como tiros de meta e cobranças de falta no campo defensivo. Em um primeiro momento, a ideia era apenas cobrá-los o mais forte possível, colocando a bola longe da área para que a equipe pudesse brigar por ela em uma área que oferece poucos riscos.

Aos poucos, os goleiros passaram a apontar seus chutes na direção dos atacantes mais altos de sua equipe, propondo um duelo aéreo. Se tal atacante vencesse a disputa, poderia direcionar a cabeçada em direção a um companheiro de equipe, dando início a uma posse de bola ofensiva.

Hoje, a reposição consegue ser ainda mais precisa. Goleiros conseguem colocar os atacantes em melhor posição na disputa pela cabeçada, mas não só isso. Conseguem lançamentos para jogadores livres pelo campo e já começam a acumular assistências. 

O vídeo acima mostra isso. Cássio, do Corinthians, faz o lançamento (e não dá um chutão) para Pedrinho, que estava sozinho para receber a bola. Foi a velocidade do goleiro em avistar o companheiro livre de marcação e precisão para acertar o passe que criaram a chance para o gol de Romero.

Saída de bola pelo chão passa a ter o goleiro como elemento proativo

Hoje em dia, alguns modelos de jogo são baseados no "jogo apoiado". O conceito parte do pressuposto que a melhor maneira de avançar é ter um número de jogadores maior do que o do adversário na região do campo em que a bola se encontra. Deste modo, é possível encontrar, com passes curtos, um jogador livre para avançar com a bola. É possível aplicar a ideia desde o tiro de meta, com o goleiro ajudando na troca de passes com os jogadores de defesa. 

A ideia remete à "saída Lavolpiana", conceito de saída de bola desenvolvido pelo treinador mexicano Ricardo La Volpe. O técnico percebeu que os adversários utilizavam no máximo dois jogadores para pressionar os zagueiros. Com isso, achava que a melhor maneira de iniciar uma posse ofensiva era ter três jogadores trocando passes atrás até que um pudesse avançar ou conseguir um passe vertical. A ideia pode ser feita com o recuo de um jogador de meio de campo ou com a utilização do goleiro entre os defensores.

Há também treinadores que gostam de iniciar ataques atraindo o maior número de defensores para o seu próprio campo antes de aproveitar o espaço aberto para atacar. Assim, as trocas de passes envolvendo goleiros ganham mais uma possibilidade de entrada no modelo de jogo. O vídeo acima mostra treino de Rogério Lima, preparador de goleiros do Bahia, para treinar a saída de bola curta e rápida dos seus comandados.

Goleiros também usam os pés de maneira reativa cobrindo companheiros

É correto dizer que o goleiro passou a ter a possibilidade de ser um elemento proativo quando passou a utilizar os pés. Mas também é possível utilizá-los de maneira reativa. Para isso, basta recorrer ao conceito de coberturas, comum em sistemas defensivos.

"Fazer a cobertura" significa estar pronto para interceder por meio de ação defensiva em um espaço que ficou aberto pelo avanço de um companheiro de equipe. Geralmente, zagueiros e volantes são responsáveis pela cobertura de laterais, por exemplo. 

Um goleiro, nesse contexto, pode cobrir seus defensores mesmo fora da área, utilizando apenas seus pés para isso. Assim, técnicos podem jogar com a linha de defesa alta - ou seja, pressionando os adversários desde o campo de ataque com os dez jogadores de linha.

O vídeo acima mostra lances em que Manuel Neuer, referência internacional no fundamento, faz a cobertura de seus zagueiros e usa os pés de maneira reativa, com suas ações tendo origem em posses de bola do time adversário.

Trabalho com os pés aumenta número de goleiros que decidem jogos com gols

Um dos desafios das comissões técnicas hoje em dia é integrar os goleiros aos treinos com os demais jogadores do elenco. O objetivo é que eles assimilem o modelo de jogo e participe dele, seja com as mãos ou com os pés. Assim, é cada vez mais normal ver jogadores da posição trabalhando cada vez mais fundamentos. Entre eles, as bolas paradas.

É normal que cada vez mais goleiros passem a treinar cobranças de faltas e pênaltis, por exemplo. Como consequência, cada vez mais jogadores da posição se sentem à vontade para executar cobranças em jogos oficiais.

Se antes os goleiros decidiam jogos com defesas difíceis, a cada dia ganham novas possibilidades. Entre elas estão a marcação de gols, como o de Everson, goleiro do Ceará, contra o Corinthians em partida válida pela 23ª rodada do Campeonato Brasileiro. Os cearenses venceram a partida por 2 a 1.

Goleiros se estabelecem como referência em fundamentos com os pés

Divulgação/Manchester City Divulgação/Manchester City

Ederson

Chegou ao Manchester City depois de encantar Guardiola com suas reposições. Consegue acionar o argentino Sergio Aguero, centroavante do time, com lançamentos fortes e rápidos.

Andrew Powell Andrew Powell

Alisson

Chegou ao Liverpool para melhorar a saída de bola pelo chão. Figura constante no jogo apoiado, dando opção de passes para zagueiros, laterais e meio-campistas que atuam na proteção da defesa.

Divulgação Divulgação

Manuel Neuer

Costumeiramente tratado como referência no jogo com os pés, Manuel Neuer trabalha mais reativamente. Costuma cobrir os zagueiros do Bayern, que adotam posicionamento avançado.

Reinaldo Reginato/Fotoarena/Estadão Conteúdo Reinaldo Reginato/Fotoarena/Estadão Conteúdo

Wilson

Batedor de pênaltis do Coritiba. Segue linha que teve como maiores referências José Luis Chilavert e Rogério Ceni. Denis, discípulo do segundo, também bate faltas no Figueirense.

Antes, o futebol era pensado com dez jogadores, e o goleiro isolado. Hoje, se pensa com 11. O goleiro passou a fazer parte do jogo. Deixa de ser reativo e passa a ser mais proativo

Rafael Kiyasu, preparador de goleiros do Santos

Ao assumirem mais riscos, goleiros falham em partidas decisivas

Seja com as mãos ou com os pés, o goleiro é o jogador que mais trabalha com risco em uma partida de futebol. Sua nova função potencializa as chances de algo dar errado. Foi assim com Loris Karius e Hugo Lloris, que entregaram gols nas finais da Liga dos Campeões e da Copa do Mundo, respectivamente, ao tentarem jogadas com os pés. 

"É preciso pesar e decidir se traz mais vantagem ou desvantagem. Se é algo que gerou 15 jogadas ofensivos e dois erros, talvez esteja valendo a pena. A questão é escolher, e não fazer porque é bonito. Vai te causar problemas em algum momento. Como você vai adaptar o time para resolver o problema?", questionou Renato.

Neste cenário, é possível detectar dois tipos de problemas. Um deles é o modelo de jogo. Se o goleiro é acionado a todo o momento mas não tem opções de passe, uma correção coletiva é necessária. Outro é o erro individual, de tomada de decisão, como foi o de Alisson contra o Leicester City.

A tomada de decisão com a bola nos pés é nova na vida dos goleiros. Aqueles que não se acostumarem a isso podem entregar gols - ou até títulos, se erraram em um momento decisivo.

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