O malvado favorito

O incansável Udo Kier já fez mais de 250 filmes, mas são os vilões excêntricos sua marca registrada

Carlos Helí de Almeida Colaboração para o UOL, em Macau (China)
Jason Kempin/Getty Images
Jason Kempin/Getty Images Jason Kempin/Getty Images

São quase 60 anos de profissão, trabalhando ao lado de diretores das mais diferentes inclinações cinematográficas: Wim Wenders, Michael Bay, Gus Van Sant, Quentin Tarantino, Dario Argento ou Lars von Triers. O currículo generoso já contém mais de 250 filmes, e abrange gêneros tão distintos como o drama, o erótico, a aventura, a comédia, a ficção científica e filmes de terror. Mas a verdade é que o alemão Udo Kier sempre será lembrado pelos vilões e os tipos de aparência excêntrica que vem interpretando ao longo da prolífera carreira.

"As gerações mais velhas me reconhecem de 'Carne de Frankenstein' (1973) ou 'Sangue de Drácula' (1970), que fiz com o Paul Morrissey. Quando estou nos Estados Unidos, onde moro há 20 anos, os mais jovens se aproximam para perguntar: 'Você é o vampiro de 'Blade - O Caçador de Vampiros', não é?'. Os vilões sempre me pareceram mais divertidos de fazer", conta ao UOL o ator de 73 anos, que foi homenageado na segunda edição do Festival de Macau, em dezembro, onde recebeu um prêmio honorário pelo conjunto carreira e acompanhar a exibição de "Confronto no Pavilhão 99", um dos seus trabalhos mais recentes.

As feições exóticas e os olhos azuis penetrantes são marca registrada do incansável ator nascido na cidade de Colônia, que tem pelo menos dez novos filmes para lançar ainda este ano. Entre eles está o drama familiar "Famiglia Mia", da diretora italiana Laura Gusman, um dos títulos da competição do Festival de Berlim. O outro é a fantasia "Pequena Grande Vida", de Alexander Payne, que chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (22).

Neste último, faz dupla com o austríaco Christoph Waltz, de "Bastardos Inglórios" (2008), outro ator marcado por tipos vilanescos. No filme, eles interpretam, respectivamente, Dusan e Konrad, playboys europeus que gostam de promover festas regadas a muita bebida e mulheres bonitas. São eles que introduzem o pacato Paul (Matt Damon) no submundo de uma comunidade em miniatura, parte de um projeto científico para tornar os seres humanos econômica e ecologicamente mais viáveis.

"Christoph e eu temos a mesma técnica de interpretação. Não fazemos aqueles bandidos exagerados, que saem gritando: 'Vou te matar!'. Prefiro um método mais sutil, fazendo o tipo tranquilo que limpa os dedos calmamente enquanto fala sem sobressaltos: 'Sabe, quando eu terminar aqui, vou te matar'. E bang!. É brutal e surpreendente", diverte-se Kier, interpretando com os olhares e as mãos uma cena imaginária.

Mas não se preocupem, sou um cara legal na vida real. Quando não estou trabalhando, resgato cachorros das ruas, pratico jardinagem e coleciono obras de arte.

Udo Kier

Um Drácula sem forças

Kier passou a infância e parte da adolescência na Alemanha. Aos 16 anos, rumou para a Grã Bretanha, com o propósito de estudar inglês. Aos 18, foi convidado pelo diretor Michael Sarne para interpretar um gigolô no curta-metragem "Roa to Saint Tropez" (1966). Mas voltou para a Alemanha porque, naquela época, não tinha planos de se tornar ator. "O problema é que eu gostava da atenção que recebia quando fazia filmes. As pessoas vinham me cumprimentar na rua. Então, comecei a participar de pequenos produções locais, a fazer mais contatos. Em pouco tempo já fazia parte do grupo de [Rainer Werner] Fassbinder".

A grande virada aconteceu no início dos anos 1970, num voo entre Roma e Monique. "O americano que viajava ao meu lado foi logo perguntando: 'O que você faz na vida?'. Respondi que era ator e mostrei minhas fotos de portfólio. Ele achou interessante e anotou meu telefone numa página do passaporte. Perguntei: 'E o que é que você faz?'. Ele disse: 'Trabalho para Andy Warhol. Meu nome é Paul Morrissey'. Semanas depois, ele me ligou, chamando para fazer um filme no Cinecittá, o estúdio italiano. Era uma versão proibida para menores de Frankenstein".

Quando tudo parecia crer que os 15 minutos de fama previstos por Warhol haviam acabado, Kier foi convocado por Morrissey para fazer "Sangue de Drácula" (1974). "Paul me disse que eu teria que perder 6 kg em uma semana. Não vi problema algum. Não sou Robert DeNiro, mas tenho meus métodos. Parei de comer imediatamente. Só beliscava uma salada e tomava água. É por isso que o Drácula, no filme, está quase sempre numa cadeira de rodas. Eu não tinha forças para ficar de pé", ri o ator.

Udo Kier na abertura de "Sangue para Drácula"

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Um rosto cult da noite para o dia

Os filmes de terror experimentais de Paul Morrisey fizeram de Kier um rosto cult da noite para o dia. "Eles me colocaram em outro patamar artístico", concorda o ator. Naquele mesmo período veio o convite para protagonizar o polêmico "A História D'O" (1975), inspirado no best-seller erótico da francesa Dominique Aury. "O produtor Carlo da Silva me ofereceu o papel durante uma festa em um clube do Champs-Élysées, em Paris. Disse para ele que não ia fazer filme pornô, e todos começaram e me chutar por debaixo da mesa", conta, aos risos.

Roman  Polanski estava no grupo de Kier na ocasião. Foram reclamar com ele:

'Você está maluco? A 'História D'O' é um livro proibido na França. Você vai aparecer em todas as capas de jornais e revista'. Então, acabei ligando para o produtor para dizer: 'Ok, vamos fazer'

Dito e feito: o filme foi um sucesso dentro e fora da França. Mas Kier diz não ter ficado muito satisfeito com o resultado. "Não gostei muito, porque era um filme muito francês para o meu gosto (risos). Meu cabelo era marrom, as roupas do personagem me pareciam erradas".

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A figura enigmática de Udo Kier só foi capturada por Hollywood nos anos 1990, em filmes como "Garotos de Programa" (1991), de Gus van Sant, "Ace Ventura - Um Detetive Diferente" (1994), de Barry Sonnenfeld, e "Armageddon" (1998), de Michael Bay.

"Costumo chamar os atores de blockbusters de 'trailer stars', porque eles se importam mais com a qualidade dos carros-trailers que lhes dão para ficar durante as filmagens, se é muito frio ou muito quente, se é espaçoso. A gente pensa: 'Uau! Deve ser um grande ator'. E aí você vai para o estúdio e nada acontece", debocha.

O ator zomba da mentalidade dos grandes estúdios, mas reconhece a importância de trabalhar para eles. "Eu brinco sobre os filmes de Hollywood, mas gosto deles, porque te dão mais visibilidade, fica mais fácil encontrar dinheiro para projetos menores e produções independentes".

"Udo Kier de novo?"

A trajetória de Kier está cheia de encontros profissionais que se transformaram em parcerias para a vida inteira. Um deles foi Fassbinder, com que fez filmes como "Berlin Alexanderplatz" e "Lili Marlene", e só não continuou porque o cineasta morreu em 1987, aos 37 anos.

Outro colaborador frequente é Lars von Trier, com quem trabalha desde o telefilme "Medeia" (1986). "Desde então atuei em todos os filmes dele. Por incrível que pareça, não estarei neste novo filme dele, o 'The House That Jack Built', que sai ainda este ano. Acho que foi coisa dos produtores: 'Udo Kier de novo? Não!'", fala aos risos.

Kier diz que há diretores que não conseguem fazer filmes ruins, como Gus van Sant, Werner Herzog e Lars von Trier. "Ok, eles até podem fazer filmes que as pessoas não gostem, mas conhecem bem a arte que fazem. É maravilhoso trabalhar com pessoas assim. Trabalhei com diretores cujo nome já esqueci. De propósito. Já fiz filmes que nunca assisti, porque sabia que não eram bons", observa o veterano.

Com tantos projetos pela frente, ainda não conseguiu pensar em aposentadoria. "Mas sou realista: este dia chegará. Acho que tenho mais uns bons sete anos pela frente. Talvez pare quando chegar aos 80".

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