Tolerância zero

Comentários inadequados e ofensivos estão tirando o sono dos famosos, e o mesmo pode acontecer com você

Beatriz Amendola Do UOL, em São Paulo
Montagem UOL

Nos últimos meses, comentários inapropriados, insensíveis ou flagrantemente preconceituosos em redes sociais se tornaram a principal causa de demissões de figuras do alto escalão em Hollywood: foi de Roseanne Barr, demitida após fazer uma publicação racista no Twitter, até James Gunn, limado de "Guardiões da Galáxia Vol. 3" após o ressurgimento de tuítes antigos em que fazia piadas de mau gosto com pedofilia e estupro.

O Brasil também teve seu exemplo: o youtuber Julio Cocielo perdeu campanhas e virou "persona non grata" após uma publicação de teor racista envolvendo o jogador francês Mbappé durante a Copa do Mundo da Rússia.

Os três casos são exemplos simbólicos de uma nova era: uma vez nas redes sociais, tudo o que você diz ou escreve fica registrado para a eternidade --e pode se voltar contra você. E não precisa ser famoso para sofrer as consequências, justas ou não, daquilo que você fala na internet.

Faxina em Hollywood

Que redes sociais abrem inúmeras oportunidades para controvérsia --e para demissões-- não é exatamente novidade. O ator Alec Baldwin viu seu programa na rede americana MSNBC ser cancelado em 2013 após disparar uma rajada de comentários homofóbicos contra um paparazzo no Twitter; um ano depois, o cantor Cee Lo Green também perdeu seu programa no canal TBS depois de ser acusado de drogar uma mulher e, em seguida, tuitar que “pessoas que foram estupradas de verdade se lembram [do que aconteceu]”.

Desde então, o escrutínio público sobre o que famosos e anônimos publicam em seus canais digitais só aumentou, e era uma questão de tempo até que ele chegasse aos nomes mais poderosos de Hollywood. A Disney, dona da rede ABC, se viu obrigada a demitir Roseanne Barr e a cancelar a série que levava seu nome após ela classificar Valerie Jarrett, uma antiga assessora do ex-presidente Barack Obama, como "um cruzamento entre 'Planeta dos Macacos' e a Irmandade Muçulmana". Foi um movimento ousado, considerando que a produção chegou a ser, por semanas, a mais assistida de toda a TV americana e já estava renovada para outra temporada.

Foi a mesma Disney que, semanas depois, demitiu prontamente James Gunn quando os tuítes ofensivos do diretor, feitos entre 2008 e 2011, foram ressuscitados. Em sua justificativa, o estúdio usou praticamente as mesmas palavras que havia utilizado no caso de Roseanne, afirmando que os comentários não condiziam com os valores da empresa. O cineasta, por sua vez, pediu desculpas pelos comentários e disse que entendia a posição da Disney.

Dias depois foi Dan Harmon, criador de "Community" e "Rick & Morty", que viu seu passado se voltar contra ele: circulou pela web um antigo esquete que nunca foi ao ar, com uma paródia de "Dexter" em que o humorista simulava abusar de uma boneca, o que provocou uma onda de críticas contra ele. No entanto, o Cartoon Network saiu em defesa de Harmon, com um comunicado que notava a evolução do comediante desde a época em que o vídeo foi gravado.

Esses dois últimos casos provocaram uma debandada em Hollywood: Rian Johnson, diretor de "Star Wars: Os Últimos Jedi" e alvo constante dos haters, anunciou ter deletado uma série de tuítes antigos, enquanto Selma Blair deixou o Twitter em solidariedade a Gunn, seu amigo.

Arte UOL
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Você (também) está sendo vigiado

As celebridades podem ter suas redes sociais sob escrutínio 24 horas por dia, sete dias por semana, mas não estão sozinhas no reino dos problemas digitais. As empresas estão cada vez mais atentas ao uso que seus funcionários fazem das redes, e não precisa de muito para que uma publicação viralize com repercussões negativas. É uma mistura explosiva, com consequências muitas vezes desastrosas --como bem sabem os torcedores brasileiros que gravaram um vídeo fazendo uma russa repetir palavras chulas em português durante a Copa do Mundo 2018.

A preocupação das corporações não é à toa: nos últimos anos, tornou-se cada vez mais importante para elas cuidarem da própria imagem e se adequarem ao compliance, o conjunto de regras que regem os procedimentos da empresa. Essas regras podem tanto vir de fora, como as leis, quanto de dentro, como as normas de conduta criadas por muitas organizações.

Segundo Leonardo Berto, gerente de negócios da consultoria Robert Half, esse movimento no Brasil já acontece há cerca de cinco anos. "Isso está ligado a essa questão de empresas investigadas, à conduta de executivos vindo à tona nesse período. É um período em que as empresas passam a se preocupar muito com o compliance. A imagem das empresas passou a ser muito questionada não só por seus parceiros, como pelos funcionários".

Os clientes e o público em geral agora também podem confrontar as corporações, o que não acontecia antes --e o que pode realmente acabar com uma marca. "As empresas estão colocando os valores, mas não é mais para inglês ver. Se alguém passa daqueles valores, dependendo de como e onde ele passa, automaticamente a empresa tem que tomar uma decisão. E é uma questão de fato de exemplo, de imagem", afirma Raphael Falcão, diretor da consultoria Hays.

Pessoal vs. profissional

As demissões passaram a se estender inclusive a executivos poderosos que fazem comentários ofensivos a portas fechadas. Jonathan Friedland, da Netflix, e Amy Powell, da Paramount, engrossaram a estatística dos cortes em Hollywood após usarem insultos racistas em reuniões internas --e o que mais chama a atenção é que as demissões ocorreram antes mesmo de os respectivos casos serem divulgados pela imprensa, o que teria potencial para criar grandes repercussões.

De acordo com Berto e Falcão, esse tipo de atitude tomada pelas empresas já é uma realidade do mercado. E se engana quem pensa que isso não tem a ver com o uso das redes sociais fora do expediente.

"As empresas passam a se preocupar muito com a forma como você se comunica, como você se relaciona, seja a portas fechadas ou em um espaço aberto", nota Berto.

Você é um representante da marca e dos valores dessa empresa. Dependendo da forma como você se comunica, não dá para dissociar, você está relacionando isso a sua marca. E nenhuma marca quer ficar exposta em uma situação, uma crença ou um valor que possa atentar ou depor contra aquilo que ela acredita.

Tampouco ajuda que, ainda hoje, muitas pessoas não tenham claros os limites do que se deve postar ou não nas redes sociais. "Tem muita gente que mistura o pessoal e o profissional. Tem pessoas que viram as redes sociais crescerem e não têm a dimensão do que elas podem tomar", afirma Raphael Falcão.

E ainda há casos, reflete o consultor, em que a postura exibida nas redes sociais vai diretamente contra os valores da empresa. "Como eu trabalho para chegar a um determinado objetivo e um funcionário meu é a favor de outro? É sinal de que eu não estou me posicionando direito".

Para não fazer feio na web

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Cuidado com o que você fala

Evite se posicionar sobre temas dos quais você não tem conhecimento. Vai falar algo? Faça-o de forma respeitosa e empática, sem radicalismos. Pense também nas formas em que aquele conteúdo pode ser interpretado: como falamos para muitas pessoas nas redes, o que você postar pode ser compreendido de uma forma bem diferente.

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Restrinja o acesso aos posts

Achou importante falar de algum assunto que tenha potencial para causar polêmicas? Utilize as configurações de privacidade que as redes oferecem para restringir quem pode ver e interagir com elas. Tenha em mente que, hoje, muitos processos seletivos envolvem checagem dos perfis dos candidatos na web.

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Faça um pente fino

Se você mantém um perfil há anos, é normal que muitas postagens antigas não condigam mais com a pessoa que você se tornou; ou você pode ter feito comentários inadequados e preconceituosos dos quais nem se lembra mais. Faça uma checagem e apague aquilo que não te representa mais ou possa ser mal visto.

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Errou? Peça desculpas

Em caso de erro, o correto é reconhecer e pedir desculpas (sinceras). Também é necessário mostrar de forma prática que a postura equivocada ficou no passado -- e isso vale também para empresas. A Barilla, por exemplo, conseguiu se reposicionar após um comentário homofóbico de seu CEO e hoje é considerada uma empresa que celebra a diversidade.

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Famosos sob a lupa

Claro que, quando se fala de celebridades, tudo é exponencializado --principalmente pelos grandes números de seguidores que elas têm e são capazes de atingir. Twitter, Facebook e Instagram encurtaram o caminho do fã para manter contato com seu ídolo, o que pode ser uma faca de dois gumes.

"Os artistas se humanizaram perante o público. Eles estão mais próximos e mostram em fotos, vídeos e palavras o dia-a-dia que vivem, e isso tem seu lado positivo, mas também o negativo, pois fica praticamente impossível manter uma imagem imaculada", avalia Karla Ikeda, especialista em gerenciamento de carreiras. "O ser humano é falho, todos têm seus defeitos e as pessoas parecem se esquecer disso e exigem dos artistas a perfeição".

A situação, às vezes, é ainda mais delicada porque os famosos fecham contratos milionários para se tornarem a face pública das marcas. É uma responsabilidade que acrescenta uma camada de complicação à já problemática zona cinzenta de público e privado que se estabelece na web.

A partir do momento em que um artista firma contrato com uma marca, ele já não pode alegar que está apenas emitindo "opiniões pessoais", na análise de Fred Lúcio, antropólogo da ESPM. "Não é pessoa física que assina o contrato com a marca, é a pessoa jurídica", diz. "Elas se colocam no espaço das redes sociais como públicas, mas querem ser tratadas como privadas, sobretudo quando ocorre esse tiro de conflito".

É o que motivou, por exemplo, a decisão de marcas como Adidas, Itaú e Coca-Cola de se distanciarem do youtuber Julio Cocielo. "Quando eu emito uma opinião, ela não é apenas a minha opinião, porque nos meios de comunicação já foi estabelecida essa vinculação entre a pessoa e a marca. Então é natural que a marca exija um posicionamento dessas pessoas e até venha a romper com elas", explica o antropólogo.

Mesmo conteúdos antigos podem ser prejudiciais, como demonstra a demissão de James Gunn ou, aqui no Brasil, as críticas que o ator Bruno Gagliasso recebeu por antigas publicações homofóbicas. "Ainda que sua opinião tenha mudado, ainda assim [esse conteúdo] reflete uma ideia que aquele indivíduo em algum momento defendeu. O quanto será nocivo dependerá do conteúdo", diz Ikeda, para quem falta de sensibilidade na forma como muitas pessoas públicas respondem às repercussões negativas daquilo que falam.

Infelizmente, ainda há muitos famosos e, especialmente, celebridades da internet que não conseguem enxergar a si mesmos como marca. Por isso, eles entendem que têm a liberdade para fazer e dizer o que quiserem e não se preparam nem se estruturam para tais situações.

Karla Ikeda, especialista em gerenciamento de imagem

Como se livrar dos tuítes antigos

  • Manualmente

    É a opção mais difícil. Você tem que rever seu perfil no Twitter e excluir aquilo que quer, o que pode levar algum tempo. Se estiver procurando por um tuíte específico, você pode ir à busca avançada e buscar por determinadas palavras, dentro da sua conta.

    Imagem: Soeren Stache/dpa/AP
  • Ferramentas gratuitas

    O TweetDelete permite excluir tuítes em massa, a partir de um período determinado, e ainda programar para que a ferramenta sempre delete seus tuítes depois de certo tempo. O TweetWipe funciona de modo semelhante.

    Imagem: Reprodução
  • Ferramentas pagas

    Os serviços pagos (em dólares) otimizam a busca por tuítes antigos e permitem que o usuário delete de uma vez todo o seu histórico. São exemplos o TweetDeleter (a partir de US$ 5,99) e o TweetEraser (a partir de US$ 6,99).

    Imagem: Reprodução
Kevin Winter/Getty Images Kevin Winter/Getty Images

Disney, polarização e #MeToo

Em casos como os das estrelas colocadas em xeque em Hollywood, há algumas variáveis a serem consideradas: a repercussão do #MeToo, o movimento da indústria cinematográfica contra o assédio e a discriminação sexual, e o forte clima de polarização política que tem dominado a web por lá (e por aqui) nos últimos anos.

A começar por James Gunn. A Disney, tradicionalmente um estúdio com apelo familiar a avesso à controvérsia, trata uma recontratação do diretor de "Guardiões da Galáxia" como improvável, apesar do apoio de Chris Pratt, Zoe Saldana e outros astros da franquia a ele. De acordo com a revista "Variety", o estúdio considera que as piadas do diretor sobre estupro e pedofilia, algumas de uma década atrás, não estão de acordo nem com a imagem da empresa e nem com a era do #MeToo.

Em uma das publicações problemáticas, o diretor escreveu: "A melhor coisa de ser estuprado é quando você termina de ser estuprado e pensa: 'Nossa, isso é ótimo, não ser estuprado'". Tuítes desse tipo feitos por Gunn já haviam circulado na web em 2012, mas as fontes citadas pela "Variety" afirmaram que a Disney só teve conhecimento deles quando voltaram à tona, recentemente.

É aí que entra outra questão: as publicações foram ressuscitadas por Mike Cernovich, conhecido comunicador da direita americana que tem criticado abertamente as personalidades liberais de Hollywood. Gunn, crítico ferrenho do presidente norte-americano Donald Trump, se tornou um dos alvos do blogueiro, que, no final de 2017, já havia prometido levantar comentários inapropriados de jornalistas da esquerda, em resposta a acontecimentos semelhantes com personalidades da direita.

Para complicar a história, a demissão do diretor veio poucas semanas após a de Roseanne Barr, por seu comentário racista contra a ex-assessora de Obama. A atriz é simpatizante de Trump, o que havia sido incorporado a sua personagem na sitcom que levava seu nome, e seu histórico no Twitter era recheado de teorias da conspiração e outros tipos de comentários preconceituosos.

Nas redes sociais, há quem veja a demissão de Gunn como retaliação pelo que ocorreu com Barr. Mas vale lembrar que há uma diferença significativa entre os dois casos: enquanto os comentários ofensivos do cineasta eram antigos e, até onde se sabe, não foram repetidos recentemente, o tuíte racista da comediante estava fresquinho e acompanhado por publicações semelhantes, o que indica um padrão de comportamento.

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E a arte?

E a arte, como fica? À época dos tuítes de mau gosto, James Gunn era um provocador, e o principal foco de sua arte, feita em uma produtora trash, estava no choque puro e simples. Sem o cineasta e seu passado em filmes experimentais, os dois "Guardiões da Galáxia" provavelmente teriam uma identidade completamente diferente, se tivessem de fato saído do papel.

"Arte é uma coisa complexa e fluída, algumas pessoas mudam para melhor, outras continuam com os mesmos pensamentos mesquinhos, terríveis e criminosos", escreveu o crítico de cinema e blogueiro do UOL Roberto Sadovski. "Mas nem é preciso dizer que cada caso é um caso. Se as grandes corporações capitularem ante a multidão armada com facões e ancinhos depois de cada acusação, sem dar dois passos para trás e avaliar a situação, o preço a ser pago num futuro não muito distante pode ser severo com a indústria do entretenimento".

Na mesma linha, Scott Mendelson, da revista "Forbes", considera um "sinal preocupante" o fato de que a Disney, uma das maiores forças do entretenimento, "não irá se impor diante de trolls hipócritas e desonestos, nem para proteger um cineasta que rendeu a eles bilhões de dólares". "Qual o ponto de ter todo esse poder se você cede ao menor sinal de risco?", questionou ele em um artigo. "Demitindo o cara que fez uma franquia sobre pessoas ruins se tornando heróis, porque ele era um cara 'ruim' que se tornou uma pessoa melhor, novamente a Disney destaca a discrepância entre seu entretenimento de fantasia e seu comportamento na vida real".

Já Daniel D'Addario, crítico da "Variety", acredita que os casos recentes provam que o Twitter, antes interessante pela espontaneidade que permitia, não combina mais com a necessidade dos artistas de trabalharem em seus processos criativos de forma aberta. "A era do Twitter parecia uma utopia para os artistas, desejosos de acesso fácil aos seus públicos; o fato de que o público agora inclui não só fãs, mas todos nós, detratores ativos e leitores sem familiaridade com a extensão da vida pública do artista, torna impossível sustentá-la".

Ainda podemos não saber qual será o efeito de toda essa discussão em novos projetos e nas bilheterias, mas uma coisa é certa: daqui para a frente, seu artista favorito vai ter muito mais cuidado com o que publica.

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