Por dentro da Netflix

Fomos conhecer as engrenagens da gigante de streaming que mudou a forma como assistimos à TV

Beatriz Amendola Do UOL, na Califórnia
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“Havia só 400 funcionários, e apenas uma dúzia estava trabalhando no serviço de streaming”. A descrição de Greg Peters, presidente de produtos da Netflix, parece inconcebível, mesmo sabendo que ela se refere a um passado dez anos distante. Na época, a Netflix tinha acabado de entrar no ramo da transmissão online de filmes e séries, e poucos arriscariam apostar que a empresa que começou alugando DVDs pelo correio se transformaria em uma das mais importantes – e conhecidas – marcas do entretenimento.

Com 12 vezes mais funcionários e já totalmente dedicada ao streaming, a Netflix de 2018 está presente na vida de mais de 300 milhões de pessoas ao redor do mundo e foi abraçada inclusive pelo mercado financeiro: com um valor na casa dos 158 bilhões de dólares, a companhia se tornou a mais valiosa do segmento de mídia, concorrendo diretamente com a toda-poderosa e onipresente Disney.

Mas qual é, afinal, o segredo da Netflix? A convite da empresa, o UOL foi aos seus escritórios em Los Angeles e Los Gatos, na Califórnia, para participar do Labs Day, evento que reuniu jornalistas de todo o mundo, e pôde ter um relance de como a gigante do streaming opera nos bastidores.

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A gigante vista por dentro

Como muitas empresas surgidas no Vale do Silício, berço de Facebook, Google e Apple, a Netflix se propõe a ser disruptiva e pouco tradicional em seu dia a dia de trabalho. Seja em Los Angeles ou em Los Gatos, onde fica a sede, a decoração é descolada e cheia de referências às produções da companhia: pôsteres, fotos e almofadas temáticas dividem espaço com prêmios Emmy e objetos como uma Eleven versão Funko em tamanho real ou o armário de Hannah Baker. Os banheiros, também, têm uma divisão temática: no lugar das placas de “masculino” e “feminino”, há “Luke” e “Jessica”.

Os funcionários – que aparentam estar, majoritariamente, entre os 20 e os 40 anos – não precisam trabalhar em um lugar demarcado. Os locais favoritos são as copas espaçosas e iluminadas, onde eles têm à disposição comidinhas e bebidas à vontade. Em Los Gatos, eles ainda têm a facilidade de poder pegar, em máquinas, acessórios eletrônicos como carregadores e fones de ouvido novinhos – os preços estão lá, mas os colaboradores não pagam nada por isso. 

No fim das contas, porém, o foco é o mesmo foco de muitas empresas tradicionais: deixar o cliente feliz.

“Queremos testar muitas coisas, mas o princípio fundamental organizador da empresa é buscar a satisfação do cliente, buscar como agradar aos nossos assinantes”, diz Reed Hastings, CEO da companhia. É, afinal, o dinheiro dos assinantes que faz a empresa girar, já que, diferentemente das emissoras de TV tradicionais, a Netflix não abre espaço para anúncios publicitários – e nem pretende fazê-lo no futuro.

Para atingir esse objetivo, a empresa tem feito um investimento pesado em produções originais, que vem aumentando significativamente desde 2013, quando lançou sua primeira série própria, “House of Cards”. Entre filmes, séries e documentários, já são centenas de conteúdos próprios, que vão de blockbusters (“Bright”, com Will Smith) a oscarizados (o documentário “Icarus”, premiado esse ano), passando por séries capazes de mobilizar milhões nas redes sociais (“Stranger Things”, “13 Reasons Why”).

Até o fim deste ano, que coincidentemente marcará a despedida de “House of Cards” (sem seu protagonista, um Kevin Spacey caído em desgraça), a companhia irá gastar impressionantes 8 bilhões de dólares em conteúdo original. É mais da metade dos 15 bilhões de dólares que ela deve faturar com assinaturas em 2018.

Mas encomendar, produzir ou licenciar um produto como “La Casa de Papel” ou “Demolidor” é só uma parte do processo. Para assegurar que o usuário fique realmente feliz é necessário cuidar da forma como os conteúdos vão chegar a ele. Isso acontece de várias maneiras, que começam ainda na pré-produção e se estendem até o momento em que você dá o play no seu programa da vez – tudo fruto de reuniões que acontecem em sala com nomes de originais Netflix, como “San Junipero”, ou de filmes clássicos como “Curtindo a Vida Adoidado”.

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O algoritmo escolhe o que eu vou ver?

Sim e não. Comecemos pela parte negativa: não, não é o famoso algoritmo que dita os rumos do que a Netflix irá ou não produzir. “É metade dados, metade visão criativa e julgamento”, define Greg Peters. “Estamos usando os dados para entender quais são os grandes conjuntos de interesse entre os nossos assinantes. Nós levamos essa informação ao time que toma as decisões, mas eles trazem a visão do criador. Que história eles querem contar? Acreditamos que vai ser uma história atraente? Eles combinam esses dois elementos e tomam as decisões com base nisso. É a combinação que faz dar certo”.

E uma vez que uma série já foi lançada, ela não tem seus rumos afetados pelos dados. “Não usamos o algoritmo para ditar a parte criativa”, reforça Allie Goss, vice-presidente de séries originais. “Isso vem do nosso desejo de trabalhar com criadores que tenham uma visão forte e a habilidade de colocá-la em prática. O que nós fazemos é apoiá-los para que eles façam o melhor trabalho de suas vidas”.

Mas o algoritmo é de suma importância em outra etapa: quando você está na tela da Netflix, escolhendo ao que você quer assistir. Com base no seu gosto pessoal, ele vai listar uma ampla variedade de opções que têm potencial para te agradar. “Nós fazemos todo o trabalho de pensar para que, depois de um dia cansativo, as pessoas possam não usar a cabeça e só curtir a Netflix e algo do qual elas vão gostar”, resume o vice-presidente de produtos Todd Yellin.

A empresa estima que cada usuário olhe, em média, de 40 a 50 títulos antes de sair do serviço – daí a importância de ter um sistema que selecione aquilo que é mais relevante para ele. E, garantem os executivos, não há dois perfis exatamente iguais no serviço de streaming. Uma mesma categoria que apareça para você e um amigo, como “comédias americanas”, pode trazer títulos completamente diferentes para cada um. 

Mas a personalização não está restrita apenas aos títulos que aparecem para você. Até os trailers ou as imagens promocionais das séries podem variar. No caso de “La Casa de Papel”, alguns usuários veem as imagens dos ladrões com as máscaras, outros veem a protagonista Tóquio (Ursula Corberó). “Não sabemos quão grande ou pequeno será o sucesso de um título, mas podemos abri-lo para uma nova audiência usando essas técnicas de personalização”, resume Yellin.

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Antes da produção

Quando se envolve diretamente em uma produção, como no caso da série brasileira "3%", a Netflix presta auxílio aos criadores, pesquisando inovações tecnológicas em imagem e som. Isso significa ficar em dia com os últimos modelos de câmera e os novos sistemas de sons, por exemplo.

“Nós apoiamos a produção, é uma parceria”, explica Jimmy Fusil, gerente de tecnologias de produção. “Podemos trazer os recursos para fazer isso acontecer. Podemos trazer a expertise e podemos trazer o contato com os fornecedores para fazer algo que seria novo para os cineastas, ou pouco acessível em termos de recursos.”

O departamento tem dado apoio à captação de imagens em HDR (high dynamic range), tecnologia de exibição que resulta em imagens muito mais ricas em cores e contrastes, já adotada pelas produções da parceria Marvel-Netflix. Os profissionais ainda firmaram parceria com a Dolby para propiciar a instalação do Atmos, sistema de som surround, em estúdios da Europa e da América Latina.

Tudo isso acontece a partir no escritório de Los Angeles, escolhido a dedo para concentrar as ações de conteúdo justamente por sua localização privilegiada na capital mundial do cinema.

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Legendas e dublagens

Disponível no Brasil desde 2011, a Netflix completou sua expansão global em 2016, quando passou a operar em 190 países – a China sendo, até hoje, sua maior exceção. Na prática, agora é tão possível uma série dinamarquesa chegar ao Brasil quanto é para uma brasileira chegar lá.

A alemã “Dark”, por exemplo, teve 90% de sua audiência proveniente de fora da Alemanha; no caso de “3%”, primeira série original brasileira da Netflix, metade dos espectadores veio do exterior.

Com isso, veio outro desafio: tornar as produções mais palatáveis para cada público oferecendo mais opções de legendas, dublagens, áudio-descrições e outros elementos que a Netflix chama de “recursos de linguagem” – o que inclui as sinopses e as descrições que você vê na plataforma.

Em certos casos, isso significa inclusive usar formatos específicos a cada país. Em um grupo focal na Polônia, por exemplo, os espectadores rejeitaram com veemência a dublagem tradicional. Isso porque no país o mais comum é o “lektoring”, em quem um único narrador, geralmente um homem, dubla todas as vozes, com o áudio original ao fundo. Hoje, o lektoring é a opção padrão para os espectadores locais.

Às vezes, as pesquisas surpreendem. O mercado americano, tradicionalmente pouco afeito à dublagem, mostrou-se muito mais amigável à prática do que se acreditava quando o serviço de streaming lançou “Marseille”, sua primeira série original francesa. “Os americanos que assistiram à série dublada eram mais propensos a assistir a série até o final do que aqueles que começavam com a legenda”, entrega Adrien Laneusse, vice-presidente de Consumer Insights.

Para além das pesquisas, a empresa também acompanha de perto os processos de legendagem e dublagem, feitos com parceiros locais. “Tentamos ao máximo entender o conteúdo para preservá-lo. Às vezes, até temos a oportunidade de trabalhar com os criadores para entender sua visão, de forma que consigamos mantê-la mesmo com o processo de localização”, explica Denise Kreeger, gerente de dublagem internacional.

Muito do trabalho envolve controlar como o conteúdo será traduzido para cada região: para algumas produções, há guias sobre como o processo deve ser feito. No caso de dublagem, a empresa ainda dá orientações sobre o tipo de voz para cada personagem e tem a aprovação final sobre as vozes escolhidas.

E quando há erros de tradução, como os já encontrados por muitos espectadores brasileiros? “Você pode reportar um problema no nosso site, e nós monitoramos as redes sociais. Nós verificamos se há alguma tendência e consertamos”, diz Kreeger.

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Testes e mais testes

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O dia a dia da Netflix no escritório de Los Gatos, no coração do Vale do Silício, está ligado aos aspectos mais técnicos da plataforma. É em um conjunto de prédios baixos localizados em um terreno com uma grande área verde onde estão engenheiros e outros profissionais dedicados a tornar o serviço viável.

Boa parte da rotina está ligada a testes para descobrir como a plataforma funciona em condições distintas. Se a intenção é analisar o serviço em condições 100% ideais, há uma sala conhecida como “the shue” – ou “a solitária”, como em “Orange Is The New Black”. O cômodo, que conta com uma rede própria de WiFi, é revestido de cobre para evitar interferências de redes externas.

Já os aparelhos móveis disponíveis no mercado são testados em um local conhecido como Mobile Automation Lab. Nele, 700 dispositivos diferentes são divididos em 11 caixas, capazes de reproduzir redes tão diferentes quanto uma 3G na Índia ou um bom WiFi na Europa. De forma automática, são feitos 100 mil testes por dia, movimentando sete terabytes de dados, o equivalente a 7 mil gigabytes. Como é tudo feito de forma automática, os resultados dos testes são exibidos simultaneamente em uma grande tela do lado de fora da sala e, em caso de falha, o aparelho consegue se recuperar sem interferência externa.

Como um filme ou uma série chega de fato até você

Tem muito mais do que um clique por trás do filme ou do programa que você escolheu para ver

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Compressão

Os arquivos são bem pesados. Um episódio de "Jessica Jones" em estado puro, por exemplo, tem 293 gigabytes - ou 750 mebagytes por segundo, bem mais do que o suportado pela maioria planos de banda larga. Por isso, a equipe da empresa tem de comprimir os arquivos, tornando-os cem ou mil vezes menores, mas mantendo a qualidade da imagem.

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Distribuição

Após um episódio ou filme ser comprimido, cópias deles são distribuídas por vários servidores ao redor do mundo. Esse processo acontece durante a noite, para não sobrecarregar a rede usada pelos usuários, e com antecedência, para garantir que as estreias transcorram sem problemas, nas datas programadas.

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Play

Quando o usuário aperta o botão do play em qualquer um dos seus dispositivos, a rede envia um sinal que diz "é para cá que você precisa ir". E o streaming então puxa o arquivo daquele servidor que está mais próximo do cliente.

E quando falha?

Você abre a Netflix, escolhe o que quer assistir e, bem naquele momento crucial, o vídeo trava e começa a recarregar – o que parece levar uma eternidade. Ou então você mal consegue acessar o serviço, como aconteceu no último dia 11. Poucas coisas são mais irritantes do que isso, certo? A Netflix sabe disso – e vem tentando reduzir os problemas. A meta é atingir 99,9% de disponibilidade; em 2017, a plataforma chegou bem perto, nos 99,7%.

O momento em que fica claro se o serviço estará ou não disponível é chamado de “hora da verdade”. E ele é importante porque determina se o usuário vai insistir na Netflix ou vai partir para outra atividade. “Obviamente, nós temos muitos concorrentes dentro do entretenimento. Mas nós na verdade também competimos com qualquer coisa que as pessoas poderiam fazer”, diz Katharina Probst. A plataforma enfrentou concorrência até do último eclipse solar, quando a audiência caiu 10%.

A fim de manter tudo funcionando, são feitas “centenas, às vezes milhares” de mudanças todos os dias – a maioria delas invisíveis para o usuário. E, paralelamente, a equipe faz o uso de testes com uma ferramenta criada internamente chamada ChaosMonkey (sim, “macaco do caos”). Ela funciona introduzindo um elemento que bagunce as coisas para permitir a descoberta de um problema antes que ele chegue aos espectadores.

Nem sempre, claro, é possível evitar isso. E enquanto você está esperando a Netflix voltar a funcionar, muito provavelmente um engenheiro da empresa foi tirado da cama para cuidar do problema. “Temos sistemas automáticos que monitoram tudo, e se algo se comporta de uma forma que não estamos esperando, o sistema vai nos mandar um alerta e nos acordar no meio da noite”, conta Probst. O foco da equipe, no caso de falha, é limitá-la e resolvê-la o quanto antes. “Não precisamos saber na hora o que aconteceu. Só precisamos descobrir como voltar ao normal para os nossos clientes e então podemos fazer o diagnóstico”, completa.

Os números da Netflix

  • 21

    anos em operação.

  • 1.700

    tipos de dispositivos compatíveis.

  • 125 milhões

    de usuários cadastrados.

  • 450 milhões

    dispositivos individuais usados pelos usuários para acessar o serviço.

  • + de 300 milhões

    de perfis individuais.

  • US$ 15 bilhões

    A serem arrecadados, via assinaturas, em 2018.

  • 140 milhões

    De horas são vistas pelos assinantes da Netflix em um único dia.

  • US$ 8 bilhões

    É o que a Netflix pretende gastar com produções originais este ano.

Netflix em todos os lugares (literalmente)

A plataforma quer se tornar quase onipresente -- e está investindo alto nisso

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TV Paga

Rival histórica da Netflix, a TV por assinatura agora se tornou parceira. Algumas operadoras já estão disponibilizando o acesso ao serviço por meio de seu menu de canais, sem que o usuário tenha o incômodo de ter que sair do sistema da TV para ver algo na Netflix. No Brasil e outros países da América Latina, isso deve se tornar uma realidade em breve, já que a Netflix fechou um acordo com a operadora Telefônica.

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Planos de dados

De olho nos usuários que usam dispositivos móveis, a empresa tem estabelecido parcerias com operadoras de telefonia móvel para proporcionar aos usuários planos que permitam assistir a vídeos sem que a conta saia muito cara no mês seguinte. É o caso da T-Mobile, nos Estados Unidos, e de outras operadoras de locais como o Reino Unido e a Malásia.

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Hotéis

A Netflix já fechou parceira com a rede Marriott para disponibilizar o aplicativo nos quartos -- e pretende expandir isso a outras redes. O hóspede poderá logar em uma conta já existente ou criar uma nova do zero.

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