O governo deu sinais de que o ajuste fiscal pode parar e que pretende estimular o consumo com subsídios. Qual o papel das próximas eleições nessa decisão?
Acredito que ele vai ter de mudar. Efetivamente, todo presidente quer ficar no poder e precisa garantir popularidade e governabilidade. Para isso, Macri está tentando estabelecer vínculos com sindicatos e organizações sociais também. Mas isso supõe que ele deve dar algo em troca.
Por enquanto basta a palavra, mas as promessas que ele faz aos movimentos vai precisar ser efetivada. Estão negociando os bônus de fim de ano aos trabalhadores, não vão colocar o imposto de renda ao aguinaldo [uma espécie de 13º salário]. Mas são pequenas medidas, nada de fundo, tudo conjuntural. É como dar um pão para o povo para continuar a governar com apoio. Nada é estrutural.
A coligação do governo conseguiu se manter neste ano bem coesa. Até que ponto a coalizão do governo pode se manter em 2017?
Depende bastante do cenário político. Eu apostaria que a probabilidade de que se mantenha unida é baixa. A UCR [União Cívica Radical, de centro, principal partido da base aliada de Macri] tem um espaço pequeno no governo, mas teve importância na eleição, sobretudo porque a margem de vitória foi estreita. São minorias que, somadas, fizeram a maioria, mas existe uma debilidade aí.
Gente de dentro do governo defende que a coalizão não seja ampliada. Mas alguns deputados defendem que o governo busque mais apoio político para garantir a governabilidade.
O problema é que o governo está buscando apoio político nessas pessoas que eu mencionei antes, nos kirchneristas arrependidos. Pode ser uma vantagem política a curto prazo, mas no longo prazo não. Porque pode perder membros da coalizão atual do governo. Elisa Carrió [deputada de centro-direita da base aliada, foi feroz opositora do kirchnerismo], por exemplo. Não sei quão importante pode ser politicamente para o governo, mas o fato é que ela não vai suportar uma aliança com setores que antes ela combatia.
Frente à cidadania, é pouco crível esse movimento. Agora o governo defende uma aliança com políticos que, muitos deles, têm uma imagem de corruptos.
Se dizia no começo do governo que a governabilidade seria um tema importante, mas até agora o governo conseguiu aprovar leis. Elegeu o presidente da Câmara e a presidente do Senado. Como isso foi possível com uma bancada tão pequena?
Acredito que aí o mais importante para o governo foi que um grupo importante de kirchneristas [12 deputados] romperam com Cristina e saíram da bancada. Nessa decisão, as acusações de corrupção contra Cristina influenciaram bastante. Isso é muito forte, o cidadão comum tem bastante clara a imagem de que a corrupção no governo Kirchner foi gigante.
Mas as enquetes mostram que a imagem da Cristina Kirchner junto aos argentinos vem melhorando.
De fato, para alguns está melhorando porque mostram ela como uma vítima. Ela é muito boa nesses gestos, fala de perseguição política. E isso não é totalmente falso.
Quem a persegue, o governo?
Não, ao governo não convém perseguir Cristina. Ela enfrenta uma série de processos na Justiça. Em alguns deles, há juízes que parecem estar perseguindo a ex-presidente. Existem algumas acusações fortes contra ela, mas não são as que estão em debate agora, como a do caso do dólar, que é, na verdade, uma acusação relativamente frágil frente a tantos outros atos mais fortes de corrupção.
Frente a medidas impopulares tomadas pelo governo, como o ajuste de preços nas tarifas públicas, houve ameaças das centrais sindicais de fazer uma greve geral no país. Essa proposta não se concretizou. Por quê?
O governo conseguiu fazer acordos com setores populares, o que acabou fazendo com que a ideia perdesse força. Um dos problemas do movimento sindical argentino é que é dividido, o que tira sua força e seu poder de pressão.
Há muitas divisões, dentro da CTG, dentro da CTA [a primeira e a segunda maiores centrais sindicais do país, respectivamente]. Há setores com o kirchnerismo, há setores com a esquerda que não negocia, há setores que priorizam a negociação.
O que os sindicatos têm a ganhar com as negociações a ponto de desistir da greve?
Acredito que estão apostando em uma estratégia de longo prazo de ir negociando pouco a pouco. Mas os sindicatos apesar de serem poderosos, têm de lidar com pressões. Fazer uma greve geral tem custos econômicos e políticos consideráveis.
O governo disse que a gestão anterior não fazia investimentos em energia e que o fato de as tarifas estarem congeladas há uma década os levou a ter que promover esse grande ajuste. Até que ponto esse diagnóstico pe correto?
É verdade, isso de fato ocorreu. Há um certo consenso de que a tarifa estar congelada para todos não era justo. Os subsídios eram para todos. Para te dar um exemplo: as pessoas que não têm acesso a gás são as mais pobres e pagam mais que alguém de classe média como eu, que tem um subsídio. Isso é uma tremenda distorção. Não é justo que ela pague mais do que eu.
É verdade também que não houve investimentos em infraestrutura energética no país, zero investimento. O que faltou, neste caso, foi controle do governo sobre as operadoras de energia, privadas, para que elas fizessem os investimentos que deveriam fazer.
O problema de fato existe, mas em boa medida por conta das empresas. As concessionárias não perderam dinheiro, apesar do congelamento das tarifas, porque eram subsidiadas com verbas públicas. Não existe nenhuma justificativa plausível para a falta de investimentos. Nesse caso, o que ocorreu foi um aproveitamento dessa situação. O governo não cobrou e as empresas não fizeram.
Outro problema que existe com o subsídio é a falta de consciência sobre a questão do uso racional da energia. Sabemos que precisamos racionalizar o consumo, e investir em fontes energéticas renováveis.
A imprensa argentina tem ressaltado que o fim político do kirchnerismo chegou. Você acredita que isso vai ocorrer?
Sim, se não acabar, vai se reduzir à sua mínima expressão. Pode ser que mantenha um grupo, mas a sensação que eu tenho é que o kirchnerismo se esgotou. Não o peronismo, porque na Argentina o peronismo sempre sobrevive.
E qual seria o grupo hegemônico do peronismo?
Acredito que será um peronismo mais de direita. Não o de Menem, mas um distinto. O menemismo cumpriu uma etapa e não vai voltar. Nesse sentido, se assemelha ao kirchnerismo. O peronismo tem essa capacidade de metamorfose ideológica, é camaleônico. Se adapta à realidade política.
Quais são as perspectivas dos principais grupos políticos para as próximas eleições?
A Argentina é bastante imprevisível, mas eu diria que a economia vai ter um papel central nas chances do governo de ganhar as próximas eleições. Não será possível conquistar a maioria legislativa, mas é possível ganhar as eleições. Vai depender, em boa medida do controle da inflação. Se continuar como está, fora do controle, isso vai ter um impacto desgastante na vida das pessoas. Isso afeta todos os setores sociais, mas em particular os mais pobres. O salário não chegar ao fim do mês, isso é um ponto central.
Até que ponto podemos dizer que a eleição de Macri faz parte de um movimento global que tem favorecido mais as direitas?
Tenho minhas dúvidas sobre isso por várias razões. Principalmente porque dizer que o pêndulo ideológico virou à direita supõe dizer que o que havia até então era de esquerda. E se já era difícil definir o que é a esquerda na América Latina em geral, em particular na Argentina dizer ou aceitar que houve um governo de esquerda é polêmico.
Eu me nego a definir o governo Kirchner como um governo de esquerda. Primeiro por conta do partido dela, peronista. O peronismo não é nem nunca foi um movimento de esquerda. O discurso de Cristina efetivamente tinha conotações bem progressistas, mas eu não encontro medidas práticas que ela tenha tomado que possam definir seu governo como um governo de esquerda. A “asignación universal por hijo”, que é uma das coisas mais interessantes [de seu governo], foi uma ideia inspirada justamente em ideias de Lilita Carrió e sua equipe [opositores do kirchnerismo e apoiadores de Macri]. A origem do programa social não é do partido de Cristina, embora a adoção pelo seu governo seja positiva.
Eu não encontro medidas importantes que possam ser de esquerda, então eu me nego a identificar o governo dela dessa forma. E o que houve então não foi um giro da esquerda à direita propriamente.
É um governo populista?
Não diria populista. Eu acho que é preciso analisar mais profundamente o tema. Não acredito, por exemplo, que a vitória do “não” na Colômbia esteja relacionada à vitória de Macri. São fenômenos distintos. Não diria tão claramente que o momento é de não às esquerdas e sim às direitas. Eu esperaria um pouco mais antes de definir esse movimento.
Com a eleição de Trump, quais as implicações para a Argentina e para a América Latina?
Eu acredito que vai ter um impacto negativo para toda a América Latina em geral o fato de que alguém como Trump ganhe a presidência dos Estados Unidos. Esse discurso dele contra os imigrantes, contra a globalização, tem um efeito social que é até mesmo difícil de mensurar. Como isso afeta as novas gerações? Esse discurso tão xenófobo, machista, racista, por um lado, e por outro as consequências econômicas de uma visão protecionista e nacionalista.
Macri está buscando investimentos externos. Esse cenário internacional pode complicar sua situação?
O contexto não é o mesmo de anos atrás, quando o livre-mercado estava em voga. E isso vai afetar o governo Macri, que faz uma aposta pela economia aberta. Ele apostou que a política de abertura econômica iria gerar uma chuva de investimentos estrangeiros. Acontece que não choveu o investimento privado. Tivemos chuvas, mas não de investimentos.