Vale todo mundo

No MMA sem regulamentos, qualquer um pode subir ao octógono mesmo sem nunca ter treinado

Adriano Wilkson De São Paulo

#MMAsemlei

O MMA não é considerado um esporte pela lei brasileira. Há anos, o Congresso discute uma regulamentação para o esporte de luta mais popular do século 21, mas enquanto isso não acontece, a modalidade vive em um limbo, alheio à legislação.

Durante mais de um mês, o UOL Esporte entrevistou promotores, lutadores, técnicos e jornalistas especializados para criar reportagens sobre o mundo das lutas longe dos holofotes do UFC. A série #MMAsemlei tem quatro capítulos.

Este é o segundo. Relata a experiência de um jornalista que nunca treinou e, mesmo assim, foi chamado para subir no octógono. No primeiro, Os Organizadores do Caos, mostramos como os promotores tentam, a sua maneira, organizar esse mundo. A terceira parte conta a história de lutadores sonhadores. No final aparecem as histórias trágicas de quem se arriscou e pagou caro por isso.

Você está preparado?

Cara de mau

Meu telefone vibrou ao meio-dia de uma quarta-feira. Um promotor me enviava um cartaz de seu próximo evento, anunciando 14 lutas com ingressos a R$ 50. No destaque, dois lutadores separados por um VS me encaravam com cara de mau.

Do lado direito, um fortão erguia os braços como um Popeye moderno: cotovelos ao alto para exibir seus músculos, olhar fechado, cabeça raspada, postura de quem não estava ali pra brincadeira. Do lado esquerdo estava... eu: punhos fechados na altura do peito e a expressão mais ameaçadora que tinha conseguido conjurar na véspera.

Jornalista x lutador

Aquela imagem mostrava uma verdade inconveniente: dali a duas semanas, de acordo com aquele promotor, eu subiria no octógono para sair na mão com o outro cara, em uma luta do esporte mais badalado – e controverso – dos últimos anos. Só tinha um problema: eu nunca tinha dado um soco na vida, nunca tinha pisado numa academia de artes marciais e nunca sequer tinha visto uma luta ao vivo.

O outro cara era um atleta de verdade.

Seria uma cena curiosa pra quem estivesse vendo. Na melhor das hipóteses, uma situação embaraçosa. Na pior, um massacre. Mas esse é só o começo da história.

Adriano Wilkson/UOL Adriano Wilkson/UOL

Nunca dei um soco. Posso lutar?

Alguns dias antes, eu tinha encontrado o presidente de uma das federações de MMA e ele me disse que muitos promotores não checam o histórico das pessoas que eles permitem subir no octógono de seus eventos.

“Os caras não pedem nada, exame, diploma, carteirinha, antidoping, não conferem se a pessoa é de alguma academia ou não”, falou o presidente, indignado. “Eles só querem saber se o cara vai subir lá disposto a dar e tomar porrada.”

Resolvi testar a afirmação.

Na primeira ligação que fiz, o representante de um torneio de uma academia no centro de São Paulo disse que sentia muito, mas eu não conseguiria lutar porque o card já estava montado. “Manda um e-mail que no próximo evento que a gente fizer, você está dentro.”

Precisa pagar alguma coisa?

Não. Nós é que pagamos para você!

Promotor do evento, questionado sobre a documentação ou taxas de inscrição exigidos

Aiuri Rebello/UOL Aiuri Rebello/UOL

Luta para iniciante

Procurei então um evento que não estivesse tão em cima. Por telefone, repeti a história que tinha criado: era um lutador iniciante que acabara de chegar a São Paulo e queria uma chance de mostrar serviço.

“Qual seu peso?”, perguntou o dono do evento. “Um pouco mais de 80, mas luto na [categoria] 77”, respondi. Eu já conhecia a necessidade de perda de peso nas artes marciais.

Não se preocupe que vou conseguir uma luta para você”.

Estreia em duas semanas

No dia seguinte, telefonou para dar a boa nova. “Guerreiro”, disse ele, animado, “consegui uma luta para você. Me mande uma foto e o nome da sua equipe que vou pedir para montarem o cartaz de divulgação para você colocar nas redes sociais e chamar sua torcida.”

Jamais conversamos sobre exames médicos, se eu tinha alguma doença infectocontagiosa, cardíaca, diabetes ou hipertensão. Eu havia dito que tinha feito algumas lutas, mas ele não se mostrou muito interessado em saber mais. Ele não me pagaria bolsa, mas eu teria direito a R$ 20 de cada ingresso que conseguisse vender.

Eu disse sim.

Olhei o calendário, o cartaz e fiz as contas. Faltavam duas semanas para a luta. 

Aiuri Rebello/UOL Aiuri Rebello/UOL

Eventos que aceitam qualquer um

Não se trata de uma situação isolada. Ao longo de mais de um mês da investigação para a série #MMAsemlei, conversamos com promotores de evento, treinadores, lutadores e jornalistas especializados e descobrimos que os critérios para lutar em torneios pequenos de MMA são frouxos. Luta quem quer, preparado ou não.

No Rio de Janeiro, uma prestigiosa academia que tem atletas no UFC, permitiu que um rapaz sem nenhuma experiência subisse ao octógono de um de seus torneios. O rapaz fez quatro lutas e não conseguiu se manter de pé por 50 segundos. Foi nocauteado ou finalizado no primeiro round em todas elas.

Quando o cara aparece querendo lutar, a gente não investiga a vida dele”, disse Rafael Rec, organizador desse evento no Rio.

“Fazemos uma entrevistinha rápida e botamos pra lutar. E o que mais tem é lutador querendo lutar por dinheiro, falando que está desesperado, que tem família pra sustentar.”

Giliard Paraná, o dono da Paraná Vale Tudo, equipe que organiza o torneio em questão, admitiu que “depois ficou claro que o rapaz não tinha nenhuma condição”.

“Mas não é tarefa nossa conferir isso”, disse ele.

Aiuri Rebello/UOL Aiuri Rebello/UOL

Iniciantes viram degrau para fortões

O caso ficou conhecido porque teria sido um exemplo de uma prática comum nesse meio: a fabricação de cartel. Diferentemente de outros esportes nos quais os confrontos são definidos por critérios técnicos ou sorteios, no MMA as lutas são casadas de acordo com a vontade dos organizadores dos eventos.

E como a maioria dos organizadores de eventos no Brasil são também donos de equipes, generalizou-se a prática de casar lutas para beneficiar os “atletas da casa”. Um lutador profissional, com um cartel positivo e bem preparado, pode ser posto na frente de um atleta pouco experiente só para melhorar ainda mais seus números e assim, habilitá-lo a assinar com torneios maiores.

"Já servi de escada para muito lutador famoso do UFC"

Reprodução Reprodução

"O atleta acaba se prostituindo"

Em quatro anos como lutador profissional, Saulo Eduardo da Silva fez 21 lutas registradas no Sherdog, o site que registra os cartéis de todos os lutadores do mundo. Foram 19 derrotas, a maioria para atletas muito mais experientes e fortes do que ele. Saulo admite que aceitou algumas lutas porque precisava do dinheiro

“O atleta acaba se prostituindo”, disse Saulo, que hoje dá aulas em uma academia do Rio. “Eu me sujeitava a lutas desiguais porque eu tinha mãe doente e conta pra pagar. Não ligava de perder, lutava contra qualquer um, nunca tive medo de ninguém, levava porrada pra caralho e achava que podia vencer as lutas, mesmo se eu tivesse lesionado.”

Ele admite que não estava preparado o suficiente para subir no octógono. A prática não é ilegal, mas é pelo menos eticamente questionável. 

O que eles dizem sobre formação de cartel

Eu já fiz muito isso no começo do meu evento, mas hoje não podemos mais. Todo mundo faz. Um cara que aceita lutar por muito pouco, por R$ 500, lógico que vai ser mais fraco que o adversário. Se o menino não se arriscar em uma luta dessa, é o fim da carreira dele

Marcelo Brigadeiro, dono do Áspera FC, um dos maiores eventos do Brasil

O organizador coloca lutador com 40 vitórias para pegar um estreante. É uma proposta indecente, mas como o cara está desesperado acaba aceitando. Todo dia aparece gente dizendo que está desesperado, que precisa lutar pra sustentar a família. Eles encaram qualquer coisa

Rafael Pec, treinador da equipe Paraná Vale Tudo

O fim da linha: a luta é cancelada

O telefone tocou outra vez. O promotor da minha primeira luta tinha mais e más notícias. “Guerreiro”, começou ele, “seu peso é 77, certo? Eu me confundi aqui, será que você não pode baixar pra 74 para casar com o outro menino?”

Ele se desculpava e sugeria que eu perdesse três quilos. Pedi um tempo para pensar.

Mas logo fiz o que sempre faço diante da iminência de um combate físico com alguém mais forte, mais apto e melhor treinado: fugi. “Tenho muita dificuldade para perder peso”, escrevi de volta. “Não vai dar. Espero que entenda.”

Ele disse que entendia. Alguns dias depois ligaria outra vez afirmando que tinha conseguido um outro lutador para mim, esse sim no meu peso. Ele realmente queria que eu lutasse no evento dele, sabe-se lá por quê. O telefone continuou tocando nos dias seguintes.

Veja todos os capítulos da série #MMAsemlei

  1. 1

    Organizadores do caos

    Sem leis, MMA não é considerado esporte no Brasil e promotores fazem o que querem

    Imagem: Reprodução
  2. 2

    Vale todo mundo

    No MMA sem regulamentos, qualquer um pode subir ao octógono mesmo sem nunca ter treinado (você está aqui)

    Imagem: Reprodução
  3. 3

    Dias de luta

    Para eles, o MMA não é só um esporte: é também a salvação (a ser publicado no sábado)

    Imagem: Aiuri Rebello/UOL
  4. 4

    Tragédia final

    Como vivem (e como morrem) as vítimas de um esporte sem lei no Brasil (a ser publicado na segunda)

    Imagem: Reprodução

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