Raimundo Braga Gomes é mais enfático: "Dentro do rio, eu era rei". Quando vivia no beiradão, ele era conhecido como Raimundo "Berro Grosso", apelido herdado do pai. "Beiradão" é uma palavra-conceito. Significa toda a beira de rio na região amazônica, mas significa também um modo de vida. Quem vive no beiradão é "beiradeiro" ou "ribeirinho", população tradicional da floresta. É também um dos povos mais invisíveis e menos compreendidos do Brasil.
Ser ribeirinho é ter uma identidade singular, determinada por uma relação íntima com a floresta e o rio. Eles não possuem a terra, são eles que pertencem a ela. É, como diz Berro Grosso, "pisar na riqueza": "Eu não precisava de dinheiro para viver na felicidade. Minha casa toda era natureza. A madeira, a palha, não precisava de nenhum prego. Tinha minha roça onde plantava de tudo, as fruteiras onde dava tudo, pescava o meu peixe, fazia a farinha pra comer com o meu peixe. Se queria comer outra coisa pegava uma galinha que eu criava, se queria carne caçava no mato. E para fazer dinheiro eu pescava mais e vendia na rua. Criei minhas três filhas orgulhoso do que eu era. Eu era um homem rico".
A maioria dos ribeirinhos é, como Berro Grosso, descendente de sertanejos pobres do Nordeste do Brasil, que foram levados para a floresta para explorar o látex, no fim do século 19, ou como "soldados da borracha", na Segunda Guerra Mundial. Quando o preço da borracha caiu ou a guerra acabou, foram abandonados na mata pelos patrões. Muitos fizeram famílias com mulheres indígenas, por amor ou porque as roubaram de suas aldeias, e passaram a viver uma vida fluida que se tornou uma das experiências mais fascinantes da floresta amazônica.
Os ribeirinhos podem ter origem indígena ou não. Eles plantam, mas não são apenas agricultores. Fazem várias atividades ao mesmo tempo, priorizando uma ou outra conforme a época do ano e os acontecimentos econômicos. Ser ribeirinho é soma, não subtração. É também ser um entremundos.
Acostumados a trocar de ilha por um motivo ou outro, desligados do conceito de terra como mercadoria, os ribeirinhos costumam causar espanto ao proclamar: "Nunca tive emprego". Ou a variação: "Nunca fui mandado por ninguém". Não ter emprego ou patrão é uma declaração tanto de identidade quanto de liberdade. Os ribeirinhos trabalham muito, porque a vida na floresta é dura, é uma vida que se vive com o corpo todo. Mas nesse espaço amplo, também do ponto de vista simbólico, eles buscam viver segundo seus próprios termos.
Ao serem convertidos em pobres, nas periferias urbanas, são esvaziados de sua essência. E viram párias, já que não conseguem emprego. Alguns tinham também uma casinha na cidade, na beira do rio, um ponto de apoio para vender o peixe ou botar os filhos na escola. Outros só tinham a moradia principal, nas ilhas. Casa não é apenas o teto, mas todo o entorno de floresta e de rio, assim como as relações de vizinhança e de ajuda mútua. O nome que dão à cidade é "rua", o que é bastante significativo. Rua no sentido de "fora". "Eu nunca trabalhei pra ninguém. Sempre fui livre", diz Antonio das Chagas. "No rio eu sei tudo, na rua eu não sou nada. Quem vai dar um emprego pra mim?"
Na construção da hidrelétrica, no rio Xingu, os ribeirinhos sequer foram reconhecidos como população tradicional pelo governo e pela Norte Energia, a concessionária de Belo Monte, formada por empresas públicas e privadas e fundos de pensão. Num dia de 2012, Berro Grosso se espantou com uma lancha que chegou com gente estranha. Eram os homens "da empresa". Disseram a ele que sua ilha seria "removida". Berro Grosso respondeu: "Daqui eu não saio". Disseram então que sua ilha ficaria embaixo d'água, era assinar ou afundar junto. "Assinei um documento. Mas eu não leio. Só sei desenhar meu nome."
Berro Grosso foi jogado numa das casas padronizadas de um dos "Reassentamentos Urbanos Coletivos" (RUCs), nome dos bairros construídos pela Norte Energia para abrigar as famílias expulsas por Belo Monte. Batizado de "Água Azul", o nome do reassentamento em que Berro Grosso foi confinado é uma ironia. O RUC está localizado a mais de sete quilômetros do rio.
Como as casas ficam muito mais longe do que havia sido determinado e já começaram a rachar, em 2017 a Justiça determinou a paralisação das obras da hidrelétrica. Uma das condicionantes que permitiram a instalação da usina estipulava que os reassentamentos não poderiam estar a mais de dois quilômetros das moradias originais dos atingidos. Também estavam previstos três modelos de casas com tamanhos diferentes. As moradias deveriam ainda ter sido construídas com material de melhor qualidade e adequadas ao modo de vida da região.
Enquanto espera a lei ser cumprida, Berro Grosso acompanha impotente as rachaduras escavarem as paredes. E diz: "Fiquei pobre. Não tenho fartura nem tenho lazer. Tudo o que preciso agora tenho que comprar. Sem dinheiro para comprar o que quero, compro o que posso. Gosto de farinha, mas só tenho dinheiro para o arroz. Antes colhia 400 melancias boas, hoje não consigo comprar uma ruim. Antes escolhia a galinha que queria comer, hoje não posso comprar uma. Antes tinha um rio vivo, hoje tenho um lago morto, e para chegar até ele preciso pagar transporte".