'Temos medo dos brasileiros'

O temor de novos ataques vira mais um obstáculo no caminho dos venezuelanos

Joan Royo Gual Colaboração para o UOL, em Pacaraima e Boa Vista (RR)
Nacho Doce /REUTERS

Mais de uma semana após um grupo de moradores de Pacaraima, na fronteira com a Venezuela, queimar pertences de venezuelanos que acampavam nas ruas da cidade, o medo de novos ataques - e medo dos próprios brasileiros - se tornou mais um obstáculo na trajetória daqueles que tentam reconstruir a vida, fugindo da miséria que castiga o país vizinho.

Cantando o hino nacional brasileiro, em 18 de agosto, um grupo expulsou os venezuelanos da cidade, em uma demonstração que misturava patriotismo e xenofobia. O episódio deixou sequelas em muitos dos imigrantes.

Quero ir embora daqui o quanto antes e chegar pelo menos a Boa Vista. Não quero ficar na fronteira, porque está muito perigoso. Esta cidade surtou, e agora ficamos sem dinheiro, à deriva

Ildemar Maita, que veio sozinho ao Brasil e deixou esposa e quatro filhos na Venezuela

Avener Prado/Folhapress

Ataque

Maita, pedreiro da cidade de Puerto La Cruz, afirma ter perdido o que tinham durante o ataque: roupa, dinheiro e documentos. Centenas atacaram o acampamento no centro de Pacaraima, cidade de cerca de 12 mil habitantes. Uma das versões que circulam na cidade diz que a violência foi represália à agressão sofrida por um comerciante brasileiro, por parte de venezuelanos. Mas as circunstâncias exatas ainda são alvo de investigação policial.

Com paus, pedras e bombas caseiras, moradores de Pacaraima arrasaram o acampamento e queimaram as barracas que serviam de casa para os imigrantes. Segundo os militares que cuidam da fronteira, entre brasileiros e venezuelanos, houve 11 feridos.

Os próprios afetados dizem que 47 venezuelanos perderam tudo durante o ataque. Eles fizeram uma lista e apresentaram à Acnur - a agência da ONU para refugiados, na esperança de receber ao menos uma passagem para Boa Vista.

Mauro Pimentel / AFP Mauro Pimentel / AFP

Queremos que a ONU nos tire daqui, queremos ir-nos de uma vez, mas não temos como

Antonio Garcia, Imigrante venezuelano que perdeu seus pertences durante os ataques

Nacho Doce / Reuters

À noite, retorno para a Venezuela

Durante o dia, Pacaraima é um formigueiro de gente. Mas à noite, muitos imigrantes se afastam e vão dormir na periferia da cidade - inclusive do lado venezuelano, onde se sentem mais seguros. As mulheres são especialmente mais vulneráveis.

À noite, me recolho em casa, porque podem te confundir com prostituta e é perigoso; uma vez, um homem foi desagradável comigo

O relato é de Kelly González, que durante o dia recorre a cidade de ponta a ponta vendendo café em uma garrafa térmica.

O responsável do Exército pela Operação Acolhida, coronel Zanatta, diz que há "certo receio" entre os imigrantes desde o ataque, mas afirma que a situação está se normalizando.

"Os fluxos voltaram a funcionar, as pessoas estão entrando. Se fosse uma questão mais forte de xenofobia, haveria ataques a carros, bloqueios... e isso não aconteceu", declarou.

Joan Royo/UOL Joan Royo/UOL
Mauro Pimentel/AFP Mauro Pimentel/AFP

Segundo o Exército, nos dias anteriores ao incidente, cerca de 900 venezuelanos por dia apresentavam documentação para entrar no Brasil. Agora, a cifra caiu para 500 - mas o coronel Zanatta atribui a redução não ao medo, e sim à mudança cambial na Venezuela. Com dificuldade para obter o novo dinheiro, os venezuelanos têm mais dificuldade para viajar.

A maioria dos imigrantes e moradores de Pacaraima prefere pensar que o episódio foi um caso isolado. Mas, para os venezuelanos, ficou claro que a presença deles é incômoda para boa parte dos moradores.

No último sábado (25), cerca de 30 pessoas, incluindo indígenas, voltaram a protestar, pedindo mais controles e reclamando do aumento da criminalidade.

"Não é possível que a gente tenha medo quando dormimos trancados em casa. Não digo que todos sejam delinquentes, alguns devem ser boa gente", dizia Maria de Fátima de Souza reis, participante da manifestação. 

Em números

  • 25 mil

    Venezuelanos estão em Boa vista - 7,5% da população da cidade

  • 0,4%

    É a população estrangeira no Brasil - uma das menores taxas do mundo

  • 3 milhões

    de brasileiros vivem no exterior, um número muito menor do que o de imigrantes aqui

  • 1.200

    imigrantes da Venezuela deixaram Roraima depois do conflito

Joan Royo/UOL Joan Royo/UOL

Em Boa Vista, 215 quilômetros ao sul da fronteira, não se vive a mesma tensão. Mas as notícias do que acontece em Pacaraima contaminam o ambiente. 

Todo mundo estava aterrorizado. Não queríamos sair na rua, com medo de que algum brasileiro nos fizesse mal. E precisamos sair todos os dias para buscar trabalho

Luis Ángel Vega, técnico de informática venezuelano que mora com a mulher e os três filhos no albergue Rondon I, em Boa Vista

Chamado pelo governo de "abrigo", o Rondon I lembra um campo de refugiados: conta com 120 cabanas enfileiradas em um terreno de 22 mil metros quadrados, onde moram 700 pessoas.

Ao total, há 4.600 venezuelanos morando em nove centros parecidos a este. A maioria passa o dia na rua buscando trabalho e reclama que o clima recente de hostilidade não ajuda.

AFP AFP

Rober López, carpinteiro que mora com mulher, filho e sogra no albergue Jardim Floresta, também reclama dos novos empecilhos à integração.

"Eu fazia pequenos bicos: pintura, jardinagem, mas é cada vez mais difícil. Todos os dias, caminho duas horas para encontrar trabalho em outro bairro, porque aqui é impossível. Aqui perto tem tantos venezuelanos que as pessoas têm fobia", disse.

Entre os taxistas, os trabalhadores locais e os próprios imigrantes, tanto em Pacaraima quanto em Boa Vista, boatos e fake news envenenam ainda mais o ambiente ao alimentar as tensões.

Um dos mais difundidos é o de que um bebê morreu carbonizado. Os venezuelanos acusam os brasileiros, e os brasileiros apontam o dedo para os venezuelanos. No fundo, todo mundo intui que não é verdade, mas ninguém parece disposto a acabar com essa espiral de mentiras.

Curtiu? Compartilhe.

Topo