O apartheid de Trump

Se a África do Sul pode superar a divisão política, os EUA também podem

Trevor Noah
Todd Heisler/The New York Times

Este artigo faz parte do especial Ano em transformações do "The New York Times News Service & Syndicate" que o UOL publica exclusivamente no Brasil. Ao final desta página você encontrará outros artigos relacionados a esse especial.

Para curar uma nação, lidere-a a partir do centro.

Quando assumi "The Daily Show" de Jon Stewart em 2015, fiquei surpreso ao saber que meu trabalho como anfitrião do programa cômico noturno, não era apenas entreter, mas eviscerar -- atacar, esmagar, demolir e destruir os adversários dos liberais e progressistas nos EUA. Rapidamente, pessoas de alguns setores -- principalmente os mesmos liberais progressistas -- me criticaram por não manter os níveis mínimos aceitáveis de evisceração diária que foram estabelecidos por meu antecessor.
 
A verdade é que Jon nunca gostou de ser rotulado de o "Grande Eviscerador". Ele não achava saudável, e sempre tentou pensar sobre os detalhes dos problemas com uma dose saudável de ceticismo antes de ir ao ar e transmitir suas ideias para o mundo. Mas através da lente da internet, não era isso que as pessoas viam. Nos primórdios da blogosfera, do YouTube e das redes sociais, as pessoas pegavam um comentário mais estridente de Jon e o transformavam em algo viral com manchetes que visavam apenas atrair visualizações, em algo desproporcional, em comparação com os segmentos mais racionais que compunham a maior parte do programa da TV. E hoje, infelizmente, quando olhamos para trás, a evisceração (e exasperação) é do que a maioria das pessoas se lembra.
 
A experiência de ocupar o lugar de Jon foi um enorme choque cultural para mim. Na África do Sul, de onde venho, também utilizamos a comédia para criticar e analisar, e mesmo que não deixemos nossos políticos de lado, não nos evisceramos. Meus shows de stand-up em casa nada mais são que um lugar onde podemos nos afastar da história das classificações de cor do apartheid -- onde negros, brancos e indianos usam o riso para lidar com a dor e o trauma compartilhado. Na África do Sul, a comédia nos une. Nos EUA, nos separa.

Cresci sob a dura opressão racial do apartheid como uma pessoa de etnia mista. As linhas entre negros e brancos foram claramente delimitadas e aplicadas com armas e tanques, mas porque não sou nem negro nem branco, fui forçado a viver entre essas linhas. Fui forçado a me comunicar entre essas linhas. Fui forçado a aprender como abordar pessoas e problemas com nuance. Se não tivesse aprendido, não teria sobrevivido.

Joshua Lott/New York Times Joshua Lott/New York Times

Os Estados Unidos, agora percebo, não gostam de nuance. Ou os negros são criminosos ou os policiais são racistas -- escolha um. Somos nós contra eles. Você está conosco ou contra nós. Essa mentalidade nacional é abastecida pela histeria de um ciclo de notícias 24 horas por dia, pelos silos ideológicos das redes sociais e pela estrutura política do país. O sistema bipartidário parece encorajar ativamente a divisão onde ela não precisaria existir.

Isso nunca foi mais aparente do que durante a campanha de Donald J. Trump para a presidência. Com seus flagrantes apelos misóginos e racistas aos eleitores temerosos, Trump conseguiu dividir um eleitorado já preparado para se voltar contra si mesmo. Sua candidatura raivosa obscureceu o fato de que a grande maioria dos americanos, tanto republicanos quanto democratas, queria muitas das mesmas coisas: bons empregos, casas decentes, acesso a oportunidade e, acima de tudo, respeito.

O ano de 2016 foi tão polarizador e nocivo que ainda me encontro enredado na extrema arrogância e agressividade. Mas, com os extremos, vêm o impasse e a morte do progresso. Em vez de falar em tons comedidos sobre o que nos une, estamos gritando um com o outro sobre o que nos divide -- que é exatamente o que figuras autoritárias como Trump querem: pessoas divididas são mais fáceis de comandar. No fim das contas, esse era o objetivo do apartheid.

Para os extremistas e os crentes de qualquer causa, existe a ideia de que moderação e compromisso são simplesmente um prelúdio para se vender e desistir, quando na verdade o oposto é verdadeiro — a moderação traz ideias radicais para o centro, para que possam ser viabilizadas. Nelson Mandela nunca vacilou em seu desejo de "um homem, um voto"; na verdade, ele suportou 27 anos na prisão para tornar essa noção uma realidade. Mas quando nossa nação chegou à beira da guerra civil, Mandela falou aos sul-africanos brancos em uma linguagem que acalmou seus medos e os tranquilizou, garantindo-lhes que tinham um lugar no nosso novo país. Ele falou aos militantes nacionalistas negros, acalmando seus ânimos, mas sem diminuir seu orgulho. Se os esforços de Mandela tivessem falhado, a transição pacífica da África do Sul para a democracia nunca aconteceria.

Infelizmente, com o que vimos nessa eleição, a vitória de Trump apenas amplificou as vozes do extremismo. Os argumentos usados foram mais simples e mais emocionais, quando de fato deveriam ser cada vez mais sutis e complexos. Não podemos dar vazão à intolerância e à injustiça neste mundo, mas podemos ser firmes em relação à inaptidão de Trump para o cargo ao mesmo tempo em que devemos apelar para a razão de seus partidários. Podemos ser inabaláveis em nosso compromisso com a igualdade racial ao mesmo tempo em que repartimos o pão com as mesmas pessoas racistas que já nos oprimiram. Sei que isso pode ser feito porque essa era minha única escolha, e é por isso que estou onde estou hoje.

Quando você cresce no meio termo, percebe que a vida está mais no meio do que nos extremos. A maioria das pessoas está no meio, a margem de vitória quase sempre está no meio, e muitas vezes a verdade também está lá, esperando por nós.

Peter Yang Peter Yang

Nascido na África do Sul de um casal inter-racial em uma época em que tais relações eram ilegais sob o apartheid, Trevor Noah frequentemente tece observações sobre raça e etnia em sua comédia. Ele já foi apresentador de vários programas de TV na África do Sul, incluindo "Tonight with Trevor Noah", e atualmente apresenta "The Daily Show", na cidade de Nova York

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