Mais Edson que Pelé

Ídolo fala de relação com a morte, desilusão com a política e "corneta" Fifa e Neymar

Bruno Freitas, Samir Carvalho e Vinicius Mesquita Do UOL, em Santos
UOL

O homem que rompia defesas pelo mundo hoje precisa de uma bengala para se locomover, mesmo em distâncias pequenas. Pelé enfrentou uma série de internações e cirurgias nos últimos anos, mas diz não temer a morte. Existencialmente, a tragédia recente com o avião da Chapecoense inspirou mais reflexões ao "Rei" do que as idas e vindas aos hospitais.

"Acho que temos que encarar a morte como uma coisa natural, acreditar em Deus. Porque quando Ele chamar, não importa onde você esteja, quem você é", afirmou.

Pelé é (imortal) mesmo. Mas o Edson vai morrer qualquer dia", acrescentou o maior goleador da história do futebol.

Se as pernas não têm mais a potência de impulsão da Copa de 1970, o cérebro continua atualizado com os temas mais relevantes da atualidade, da Lava Jato à nova Fifa. Na entrevista a seguir, o ídolo enfrentou questões polêmicas como a distância dos netos reconhecidos judicialmente, a fase de Neymar e o famoso comentário de Romário sobre "Pelé calado ser um poeta". O "Rei" ainda ofereceu histórias divertidas sobre celebridades, de Xuxa a Sylvester Stallone. 

Morte não preocupa

Rubens Chiri/Site oficial do São Paulo Rubens Chiri/Site oficial do São Paulo

Longe dos netos

A imagem pública quase beatificada de Pelé sofreu um arranhão quando Sandra Regina Machado expôs a luta pelo reconhecimento de paternidade. Nos anos 90, após se submeter a testes de DNA, a ex-vereadora de Santos conseguiu na Justiça o direito de usar o sobrenome Arantes do Nascimento. A herdeira morreu em 2006, vítima de câncer de mama, mas seus dois filhos conseguiram judicialmente em 2013 a prerrogativa de receber pensão do avô.  

"Quando teve aquele episódio de uma filha minha, que faleceu, que falaram que eu nunca dei atenção. Depois de 30 anos que ela veio dizer. Eu não conhecia, não sabia quem era. Que Deus a tenha em bom lugar. Agora eu tenho os netinhos, filhos da Sandra, os netinhos dela estão aí. Me perguntaram se eu tenho contato, eu falo que não tenho tido. Porque os meus netos todos, dos meus filhos legítimos, eu tenho contato", declarou Pelé.

Broncas da mãe de 93 anos

De vez em quando ela acha ruim que eu não telefono muito para ela. Mas eu falo: 'Mãe, muitas vezes eu ligo e não tem ninguém, a senhora não usa o telefone'. Ela fala: 'Se eu não atender a primeira vez, você tem que tentar até eu atender'. 'Mãe, mas eu tô ligando de Nova York, às vezes estou ligando de fora'. 'Mas eu que coloquei você no mundo', ela diz

Pelé

Pelé, sobre a relação atual com a mãe, Dona Celeste

Camarote: a mágoa com o Santos

Folhapress Folhapress

Fifa fez "besteira" com Mundiais

O time de Pelé atropelou Eusébio e companhia em 1962. No ano seguinte, uma lesão fez o craque ver os companheiros derrotarem o Milan numa batalha de três jogos. O decantado Santos dos anos 60 foi o primeiro clube brasileiro a celebrar o status de campeão mundial – duas vezes seguidas. No entanto, a nova administração da Fifa manifestou em janeiro passado que não reconhece os troféus. Para a entidade, valem como títulos mundiais apenas os torneios após 2000, realizados com a chancela da organização.  

"Essa é uma decisão, da minha maneira de entender, totalmente errada da Fifa", criticou.

Como eles podem querer anular um título que foi o único dos Mundiais que foi até o final e disputaram os campeões de cada região. Quer dizer, é um absurdo, né? Até difícil de entender como eles querem fazer uma besteira dessa, porque não têm razão para não considerar válidos esses títulos"

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Perdão para Romário

"Calado é um poeta" é uma ofensa que se tornou comum na boca de Romário, em referência a Pelé. A primeira cutucada do gênero veio em janeiro de 2005, quando o "Rei" sugeriu que o "Baixinho" se aposentasse. Na época, o vascaíno estava a toda na busca para repetir a façanha dos mil gols.

Sobre a polêmica, Pelé diz que já teve a oportunidade de conversar com Romário e relata ter ouvido que tudo não passou de exagero.

"Eu soube disso. Ele falou que Pelé com a boca fechada é um poeta, né? Aliás, a gente falou a respeito disso e ele disse que não foi bem assim. Eu cruzei com ele na véspera de um jogo da seleção, e ele falou: 'Não, fofoca, bicho, fofoca'. Mas dizem que ele falou mesmo, né?", disse.

Mas ele está perdoado, coitado. Coitado não, fica até chato, mas está perdoado

Pelé

Pelé, sobre o comentário de Romário que "Pelé calado é um poeta"

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Maradona na Fifa

O mais célebre antagonismo do futebol mundial vê uma inversão de papéis. Antigo desafeto da Fifa, Maradona agora é uma espécie de embaixador do novo presidente, Gianni Infantino. Já Pelé, que sempre foi próximo à entidade, agora acompanha a fase renovada à distância, em razão de seu estado físico.

"Quem conhece o Maradona sabe que ele é um carinha legal, boa gente para bater papo e tal. Mas quando ele vai dar entrevista e tomar alguma decisão, não sei o que acontece com ele", cutucou Pelé, um habitual alvo de críticas do argentino.

"Eu espero, se tiver algum conflito na Fifa, que ele tenha condições de melhorar, de resolver o problema. Vamos ver se dá certo para ele. É a maior oportunidade que ele tem", comentou o ex-camisa 10 da seleção.

Sobre a Lava Jato

Assim como a maioria dos brasileiros, Pelé também segue atento ao noticiário sobre a Lava Jato, apreensivo com os desdobramentos da crise. "Acho que na história do mundo, da política mundial, nunca teve um país com tanto político preso ou sendo condenado, julgado. Não tem em país nenhum, nem na época da guerra", afirmou.

O momento de instabilidade remete aos anos 80, na fase de redemocratização do país, quando um comentário de Pelé inspirou polêmica. O ídolo diz que tudo não passou de um problema de interpretação. Na época, o ex-jogador disse: "nós brasileiros temos que votar na pessoa certa, com seriedade, a gente não pode votar só porque a gente ganha um prêmio".

No entanto, ficou para o folclore nacional: "Pelé disse que brasileiro não sabe votar".

"Ainda tentei explicar, como estou explicando aqui. Alguns anos depois, todo mundo disse: 'Bem que o Pelé falou certo, bem que o Pelé tinha razão'. Que é uma coisa que até hoje nós estamos vivendo, que nós estamos vivendo na política", disse.

Brasileiro sabe votar?

Agora eu não sei, porque já faz tanto tempo que o Pelé já falou isso. A gente já devia ter aprendido a votar. E continua mais ou menos igual

Pelé

Pelé, sobre a situação política do Brasil e a participação da sociedade

Adriano Vizoni/Folhapress Adriano Vizoni/Folhapress

"Minha cor é negra"

O status de personalidade internacional impõe a Pelé posicionamentos mais sérios em debates sociais. Um deles é a questão da raça. Algumas pessoas engajadas na questão negra no Brasil entendem que o ídolo jamais ergueu efetivamente esta bandeira. O ex-jogador da seleção discorda dessa interpretação.

"Não me aborrece. Porque eu nunca entendi isso. Minha cor é negra, não amarela, não sou japonês. Não sou branco, não sou loiro. Então, tudo o que eu procurei fazer, dentro das coisas honestas, é defendendo a minha classe, a minha cor, defendendo a minha família. Então eu nunca me preocupei com isso", argumentou.

"E tudo o que eu faço, não faço vestido com um capuz branco ou com a cor branca. Eu faço com a minha cor. Entende? Então eu já ouvi falar um monte de coisa, que eu acho que é normal. Já ouvi falar um monte de coisas de artistas também. Pessoa comenta, mas essa coisa nunca me preocupou, porque eu sei o que estou fazendo", acrescentou. 

Romance com Xuxa virou amizade

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A cobrança de Galvão Bueno

Em campo, Pelé ajudou a seleção brasileira a conquistar suas três primeiras Copas. No entanto, quando a quarta taça veio, o "Rei" também deu o ar da graça. A cena do ex-jogador pulando abraçado com Galvão Bueno após Roberto Baggio errar sua cobrança de pênalti é uma das imagens icônicas do tetra de 1994. Hoje, os ex-colegas de TV Globo continuam amigos.  

De vez em quando, a gente conversa, bate papo. Aliás, eu estou devendo, porque era para ter ido no 'Bem Amigos', mas não deu para ir por causa da cirurgia. Aí eu viajei, não deu para ir. Faz umas duas semanas e ele estava cobrando: "Pô, vai continuar com essa frescura de não querer vir no meu programa?". Mas foi falta de tempo

Pelé

Pelé, sobre a relação de amizade com o narrador da TV Globo

Ajudando o amigo Stallone

Juca Varella/Folha Imagem Juca Varella/Folha Imagem

Quando fez FHC esperar no palácio

O principal ídolo do futebol brasileiro arriscou sua reputação ao aceitar a chefia do Ministério dos Esportes, durante o governo Fernando Henrique Cardoso. O ex-jogador respondeu pela pasta de 1995 a 1998, em gestão que teve como destaque a implementação da polêmica Lei Pelé.

Mas antes de tudo isso, quando foi a Brasília assumir oficialmente o ministério, Pelé ousou fazer o presidente da República esperar por mais de uma hora. Tudo porque, na saída do hotel, o "Rei" foi interpelado por uma pequena multidão de fãs, sequiosos por autógrafos. O goleador da seleção fez questão de atender um a um.

"Aí o povo começou a chegar e aí vieram: 'Pô, o presidente está esperando'. Eu falei: 'Mas vem cá, eu vim ver o presidente, vocês estão vendo, não estou aqui porque estou atrasado, estou aqui atendendo o pessoal. Então fala para parar, porque eu não vou falar para parar'. Falaram: 'Você é louco, é o presidente'", relatou Pelé. 

Neymar precisa usar a cabeça para ser o melhor

Rodrigo Coca/Folha Imagem Rodrigo Coca/Folha Imagem

Empolgado com seleção de Tite

Com sete vitórias em sete partidas pela seleção, Tite resgatou a autoestima do torcedor brasileiro, que andava combalida desde a Copa de 2014. À distância, Pelé faz parte da turma de entusiastas do novo comandante da equipe nacional.  

"Uma das coisas que mais me deu satisfação foi ver esse trabalho do Tite. Porque o Brasil sempre teve jogadores. Desde a época de Leônidas que o Brasil sempre teve grandes jogadores. Mas o nosso problema no final qual era? Era não ter uma seleção. Isso aí por problema dos empresários, que têm uma força danada. Então não tinha um time formado. Aí aconteceu o desastre da Copa do Mundo. O Tite, agora, ele está tentando fazer o que sempre foi feito anteriormente no Brasil", comentou.

"Gostei da entrevista dele. Falou: 'Ó, vamos fazer esses jogos só com jogadores brasileiros que estão aqui, se a gente precisar, a gente chama os que já conhece, mas pelo menos dá a chance para esses que estão aqui começando, gente boa, nova, dá a chance para eles aparecerem'. Espero que dê certo, o Tite está no caminho certíssimo", emendou. 

AP Photo/Michael Probst AP Photo/Michael Probst

Não jogaria a Champions League

Num tempo em que o campeonato estadual tinha mais peso que a Libertadores para os grandes brasileiros, Pelé descartou insistentes assédios do futebol da Europa. Para o ídolo, na época compensou mais rodar o mundo lucrando com excursões do Santos. Mas e se fosse hoje, o "Rei" disputaria a Champions League por Barcelona, Real Madrid ou outro grande europeu? O ex-jogador diz que não.

"Acho que não mudava nada [sobre jogar na Europa atualmente]. Porque eu também tive propostas quando eu jogava. Tive várias propostas. Eu fui para o Cosmos porque eu quis. Quando parei de jogar no Santos, eu tinha duas, três propostas para jogar no Real Madrid, no Milan. Eu falei não porque estava parando no Santos, queria descansar e nos Estados Unidos o futebol é mais tranquilo, menos competitivo, menos cobrança", afirmou.

"Quando me ofereciam fortunas para jogar no Real Madrid, me ofereciam e eu não fui. Hoje não acontece isso. Jogador tem uma propostazinha… mas graças a Deus eu fiz certo", concluiu.

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Era corintiano?

Se tem algo que cortaria o coração dos santistas seria a confirmação do rumor de que Pelé foi torcedor do Corinthians na infância. Mas o "Rei" mantém a versão de que seu apreço ao time mais popular de São Paulo não passa de uma lenda.

"Não, não… inclusive disseram que eu saí de Bauru, vim treinar no Corinthians e não fui aprovado. Isso aí não é verdade, não", afirmou.

"O que é verdade, que o pessoal parou de falar, na época que meu pai jogava lá em Bauru, eu e meu irmão tínhamos um jogo de botão. Meu jogo de botão era Corinthians, o do meu irmão era Palmeiras. Muita gente falava que eu era corintiano por causa disso. Porque, naquela época, quando começaram a chegar os botões de times, com as equipes, o Corinthians era o time que chegou lá. Eu ganhei, na época não tinham outros times, eram só os times grandes", explicou.

Susumu Takahashi REUTERS Susumu Takahashi REUTERS

Uma vida inteira como celebridade

Edson Arantes do Nascimento é uma personalidade reconhecida mundialmente desde os 17 anos, quando encantou o planeta com a seleção na Copa da Suécia, em 1958. Hoje, aos 76, Pelé é um expert sobre ser o que significa ser uma celebridade.

"Quando eu saio para viajar com a família, quando eu estou em qualquer lugar, graças a Deus que o pessoal ainda está procurando, e não estão fugindo. Pior era se eu chegasse e falassem: ‘Chegou esse cara chato, vamos embora’. Acho que Deus está sendo bom comigo, porque graças a Deus eu ainda tenho boa aceitação", comentou.

"Depois de mais um pouco velho, eu já conheço os lugares que têm mais tranquilidade. Então eu fiquei esses 15 anos, mais 20 anos, que estou indo e voltando para os Estados Unidos, por causa do meu contrato com o Cosmos. Então eu já sei os restaurantes que eu posso ir, que são mais tranquilos, eu sei a igreja que eu posso ir e me confessar, comungar, que não tem muito tumulto, porque o pessoal já está mais ou menos acostumado. Então vou ajustando assim", descreve.

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