Eu tenho orgulho do que fiz

Michael assumiu ser gay após ser hostilizado em um ginásio. Agora, conta como encara o mundo fora do armário

Depoimento a Felipe Pereira Do UOL, em Campinas (SP)
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Lei do silêncio

Eu já havia jogado com pessoas que xingavam. Mas eram sempre uns três, quatro que gritavam “viado”, “bicha”, “gay”, “vai errar o saque”. Como eram poucos, conseguia lidar. Naquele dia, tentei repetir a fórmula, mas tinha uma coisa diferente. Não eram três ou quatro. Era praticamente o ginásio inteiro. Eles berravam em todas as bolas. Em todos os saques.

Aquilo influenciou no meu jogo. Cada vez que a torcida xingava, eu tentava fazer melhor ainda, queria jogar mais. Aí me atrapalhou. Esta sensação de constrangimento é muito foda. Dá uma sensação de incapacidade que você não consegue compreender direito.

Quando fui para Contagem, em Minas, eu só pensava no tamanho da partida. Era uma semifinal de Superliga. Mas aconteceu tudo aquilo e o supervisor proibiu todo mundo de falar com a imprensa. Eu não estava entendendo direito o que acontecia. Perguntavam: você já passou por isso? Foi a primeira vez?

Para falar a verdade, naquela dimensão era a primeira vez. 

1º de abril de 2011

O jogo em questão valia pelos playoffs da Superliga masculina de vôlei da temporada 2010/2011. Na época, o meio de rede Michael era jogador do Vôlei Futuro, de Araçatuba, que enfrentava o Sada/Cruzeiro em uma série melhor de três por uma vaga na final.

Michael e seus companheiros perderam aquele jogo por 3 sets a 2. Venceram o duelo em casa, em Araçatuba, mas acabaram eliminados duas semanas depois, derrotados por 3 a 0 no jogo que marcou a volta de Michael a Contagem, cidade mineira em que o Cruzeiro mandava seus jogos.

Esta é a história de como Michael lembra daquele jogo e das mudanças que sofreu depois assumir que era homossexual.

"Na hora, não percebi"

A dor vem depois

Quando assisti ao jogo com o som ambiente do ginásio, entendi porque minha mãe e meus avós ficaram tão assustados. Percebi que foi muito maior do que aquilo que senti na quadra. Sem falar que doeu bastante ver o sofrimento da minha família e dos meus amigos. É mais dolorido quando você percebe que eles estão tristes. Mas também é reconfortante.

Você descobre que não está sozinho enfrentando tudo aquilo. Mas admito que quem me deixou mais sensibilizado foram os torcedores de Araçatuba. A comoção nas redes sociais foi imensa. Grande parte da coragem de falar sobre minha orientação sexual devo ao pessoal da cidade, que me incentivou por campanhas no Facebook.

Fiquei bem chateado com a situação. Pensava que não podia fazer nada. Não que eu considere normal, mas já tinha passado por outros momentos. De repente, fui surpreendido e descobri que não estava sozinho.

Alessandro Iwata/VIPCOMM Alessandro Iwata/VIPCOMM

"Você é gay?"

Terminei de ser convencido quando o Vôlei Futuro me abraçou. Na segunda-feira depois do jogo, o Basílio, supervisor do clube, conversou com a equipe. Cobrou que o Ricardinho, como capitão, tinha que ter pedido ao juiz para parar o jogo se aquela situação não mudasse. Só que ninguém sabia desta possibilidade. Depois, pediu para falar comigo em particular. "O clube vai soltar uma nota na internet. A diretoria não vai aceitar o que aconteceu".

Ele perguntou se eu queria falar sobre aquilo. Aceitei. O primeiro órgão de imprensa com que conversei foi o SBT local, a TVI. Falei o que senti naquela quadra, o que estou falando para você agora. Em nenhum momento ele perguntou sobre minha sexualidade e eu não falei. No dia seguinte, dei entrevista para o site do Globo Esporte e o cara me perguntou.

É muito engraçado. Eu tinha dado uma entrevista antes para a Globo local, que é a TV Tem. Falei sobre tudo que perguntaram. Logo em seguida, veio o GloboEsporte.com e questionaram: “Você é gay?” Falei sim. A menina que gravou de manhã na TV Tem teve que voltar para também ter aquela manchete.

Alexandre Arruda/CBV Alexandre Arruda/CBV

"Nunca imaginei que fossem me apoiar"

Os dias seguintes foram um mix de medo e de segurança. Medo porque eu ia dar a cara e a minha vida a tapa. Sabia que, de alguma forma, eu mostraria quem eu era para o Brasil e seria julgado por isso. Eu sempre tentei me manter o mais recluso possível. Ao mesmo tempo, eu não tinha que temer nada. Meu patrocinador, meus amigos, minha família e meus torcedores de Araçatuba me apoiavam.

Eu só não sabia que a minha vida NUNCA mais ia ser a mesma. Não tinha noção que ia ter essa repercussão toda. Achei que ia falar na TV local e ia ficar naquilo. Primeiro, eu já não esperava que o tipo de conversa que tive com o Basílio fosse existir. Quando comecei a jogar, nunca pensei que um time ou uma marca pudesse defender um jogador gay, a causa LGBT.

Guyane Araújo/UOL Esporte Guyane Araújo/UOL Esporte

"A regra era ficar encolhido"

O Cruzeiro tentou fazer de tudo para abafar a situação. Acho que eles não esperavam que a gente fosse entrar com representação na Justiça desportiva por este motivo. Eles não imaginavam que uma instituição podia abrir um processo por homofobia.

Eu, Michael, não entrei com um processo. Entramos como instituição. Eu fiquei muito feliz com a condenação. Tem muita gente que só sente quando pega no bolso. Depois, quando a gente foi jogar a terceira partida do playoff lá, tinha cartilha, instrução, dez mil coisas. É foda falar que a culpa é do Cruzeiro, mas ficou feio quando eles negaram o que aconteceu.

Disseram que não tinham culpa, mas quando foram enfrentar o Vôlei Futuro de novo, comigo no time, vem com cartilha? Eu acho que o que aconteceu é o final de uma cadeia de falta de respeito e educação. Só vieram pedir desculpas depois que perderam a causa. Ridículo.

Alexandre Arruda/CBV Alexandre Arruda/CBV

"Vôlei Futuro contra o preconceito"

Antes do segundo jogo daquela semifinal, tive uma semana intensa. Eu precisava treinar para o jogo, marcado para um domingo de manhã, e falei até a sexta-feira com a mídia. Conversei com todos os veículos da imprensa nacional. Eu também olhava o Basílio. Sabia que ele gostava de inventar. É daqueles que paga as coisas com a mesma moeda. Ou até pior. Fiquei com a pulga atrás da orelha.

Dei uma apertada nele e descobri que iam fazer bastões bate-bate com o meu nome e colocariam uma faixa do arco-íris na camiseta. Falei que se fosse só isso, tudo bem. No dia do jogo, chegou joelheira rosa, meia rosa, camiseta do arco-íris para o líbero, camiseta rosa. Eu e o Ricardinho falamos que seria a camiseta de líbero, o bate-bate e só. Não precisaríamos de mais nada.

Fomos para o jogo. Quando a bandeira “Vôlei Futuro contra o preconceito” levantou, foi uma coisa muito emocionante. Não só pelo que eu tinha passado em Contagem, mas pelas coisas que eu passei antes, que meus amigos passaram antes. O ginásio inteiro fez tudo ficar mais bonito.

Alexandre Arruda/CBV Alexandre Arruda/CBV

"Não enganaria ninguém dizendo que era hétero"

Naquela semana, eu saí do constrangimento absoluto para a redenção. Foi um resumo da minha história de vida. Quando comecei a jogar vôlei, tive que interpretar muito para ser aceito. Saí de Birigui (SP) aos 15 anos. Sempre fui deste jeito e sei que não enganaria ninguém dizendo que era hétero.

Quando fui para São Paulo, fiquei no alojamento do Banespa. Logo começaram as gracinhas. Mandaram todo mundo dizer maçã e, na minha vez, foi aquela corneta. Disseram que falei com a língua presa. Depois que passei na peneira e me apresentei para jogar, ainda na categoria infanto, Todo mundo já tinha ouvido essa história. Durante a temporada, meu apelido foi maçã.

Eu até tentava interagir e saia com os caras para balada. A primeira vez em que beijei uma menina foi com 15 anos. Beijei porque, na minha cabeça, tinha que mostrar que não era o que eles pensavam. Fui levando isso por um bom tempo.

Alessandro Iwata/Divulgação Alessandro Iwata/Divulgação

"Um dos casos mais mirabolantes da minha vida"

Eu tinha 21 anos, estava no segundo ano de adulto e rolou o amigo secreto de final de ano. Os meninos resolveram ir para um puteiro. Lá, uma menina ficava vindo conversar comigo toda hora. Um dos caras falou: “vou pagar aquela mulher pro Michael.” Fui com ela e foi um dos casos mais mirabolantes da minha vida. Não foi tão traumatizante, mas vi que não era minha praia.

Eu não sei porque precisava interpretar esse papel de hétero. Eu acho que foi porque eu era muito novo, estava longe de casa e no meio de um pessoal que nunca tinha visto. Quando você se sente frágil, a pior coisa é ser excluído. Eu tinha muito medo. E só para lembrar: isso era em 1999. Este personagem que eu interpretava foi quebrando conforme eu amadurecia.

Aos 22 anos, comecei a me assumir para quem eu achava que tinha de me assumir. Todo mundo falava: “Eu sempre soube”. Só faltava ouvir da minha boca. O caso de 2011, quando foi o jogo contra o Cruzeiro, foi um desfecho. Eu me assumi para o Brasil. Mas ser gay tinha um efeito colateral: eu sempre achei que, para alcançar um objetivo, tinha de fazer mais do que todo mundo.

Guyane Araújo/UOL Esporte Guyane Araújo/UOL Esporte

Raiva de assassino

Cheguei para aquele jogo contra o Cruzeiro com uma certa casca, mas a coisa saiu de controle. Teve a questão da torcida organizada, que é uma torcida machista. A gente não vê, em outros jogos, uma torcida organizada que vem do futebol. 

E os outros torcedores acompanharam aquele clima de hostilidade. Pensaram que era normal me xingar por ser gay. Mas não sou obrigado a ficar ouvindo pessoas contagiadas me xingando e ficar quieto.

E tem coisas que são espantosas. Quando assisti à fita do jogo, o vídeo focaliza uma senhora de uns 60, 70 anos gritando. A expressão de raiva dela fazia parecer que ela falava para um assassino. Mas estava gritando para mim.

Vôlei Brasil Kirin/Divulgação Vôlei Brasil Kirin/Divulgação

E se fosse em 2017?

Se uma coisa assim acontecesse hoje, seria um rebuliço. Vivemos uma revolução. A gente tem muito menos medo e dá mais a cara a tapa. O que ajuda, também, são as pessoas que não deixam as coisas assim passarem. Eu acho que sou parte da mudança. No começo, não achava, não.

Meu caso ficou muito exposto. Teve muita gente que disse: “minha mãe adora este menino”. E o sujeito era gay. Se a mãe do cara me adora, é porque meu caso, em algum momento, ajudou esse menino a falar com ela. Até porque eu já tive minhas dificuldades.

“Eu chorei e passei raiva por causa de preconceito umas três vezes na minha vida. Já xinguei de volta, mas é sempre triste”.

Uma vez, em Santo André, eu não estava muito bem em um jogo. E tinha uma galera chata para caramba. O Wallace, da seleção, completava o adulto do Banespa naquele dia. Eram uns quatro, cinco meninos gritando as mesmas coisas de sempre. Eu cheguei bem perto da grade e mandei eles tomarem no cu. Eu estava bem puto. A mãe do Wallace, dona Greci, e outras mulheres me defenderam.

Outra vez em Minas, na Arena, tinha uma galera muito sinistra. Não foi o ginásio inteiro, mas um coro enorme. Sabe a música do cowboy viado? Começaram a cantar “Senta, ele senta, eu sei que senta”. Foi em 2004. Aquilo me assustou muito. Fiquei muito puto, muito irritado. Mas não veio este sentimento de humilhação como em Contagem.

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Michael quer casar e ter filhos

Passado tudo isso, me encontro com 34 anos querendo curtir o que me resta de vôlei. Acho que tenho mais uns anos para queimar. Depois que parar, preciso fazer uma faculdade e voltar para Araçatuba. Nunca namorei, acho que vivi numa bolha por muito tempo. Quero casar... mas não é minha prioridade.

Já pensei em adotar uma criança porque vai ser triste não ter alguém para chamar de meu filho. Ensinaria ele a ser honesto, correto e nunca passar por cima de ninguém. Sair de casa aos 15 anos deu muita base para saber o que é certo e errado. Eu mostraria tudo isso ao meu filho.

Criaria ele para aceitar todas as pessoas. Este é o caminho. E contaria como reagi ao que passei em Contagem. Acho que ele teria orgulho do pai. E eu teria orgulho de contar, muito orgulho.

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