A dor de quem ficou

Mãe de Fernandão, ídolo do Inter, conta como foi perder o filho de 36 anos em um acidente de helicóptero

Luiza Oliveira Do UOL, em Goiânia (GO)
Raquel Arriola/UOL

Marli Costa nunca vai se esquecer da última vez que viu o filho. Era Dia das Mães de 2014 e Fernandão, ex-atacante do Internacional e ídolo da conquista do Mundial de Clubes de 2006, chamou a mãe para comemorar em sua casa.

“Eu fui. Passamos o dia ali, na casa dele. Ele até fez uma postagem bonita no Face. Naquele dia, eu fiquei bastante tempo com ele. Mas peguei um momento estranho. Ele estava em pé, assim, olhando para algum lugar. Ele fazia muito isso de ficar pensando e olhando o horizonte. Mas, nesse dia em especial, eu o achei muito triste”, lembra Marli.

Foi a última imagem e o último presente que a mãe ganhou de seu filho. Fernandão morreu aos 36 anos, no dia 7 de junho daquele ano. Estava em um helicóptero que caiu no interior de Goiás, onde nasceu. Já se passaram quase quatro anos daquele dia, mas Marli ainda luta para se reerguer. Essa é a história de como uma mãe lida, dia após dia, com a sua dor mais profunda.

Jefferson Bernardes/Vipcomm Jefferson Bernardes/Vipcomm

O sonho de ser técnico

Fernandão foi um dos maiores nomes do Internacional. Em campo, conquistou a Copa Libertadores e o Mundial de Clubes, os dois maiores títulos colorados nas últimas décadas. Mas foi um período de menos de quatro meses depois que pendurou a chuteira que mudou sua vida.

Em 2012, o ex-atacante foi técnico do Internacional entre julho e novembro. E percebeu que havia descoberto a sua nova vocação. “Ele tinha só 36 anos, ainda estava começando a vida e tinha muitos planos. O sonho dele era ser técnico. Falar nisso fazia os olhos dele brilharem. A prioridade era ir para os Estados Unidos e fazer um curso para ser técnico”, lembra a mãe.

O objetivo não era fazer um curso técnico de esporte, mas de psicologia. O que ele queria era aprender a se relacionar melhor com os jogadores. Tanto que avisou Marli: “Mãe, eu vou ficar de um ano a dois anos lá. E aí eu volto. E vou ser treinador”.

“Ele tinha muita vontade de morar nos EUA depois que foi técnico do Internacional. Os meninos até foram para lá, fizeram prova, passaram e já estavam matriculados nas escolas. Mas ele veio para Goiânia ficar uns dias aqui antes de ir. Estava tudo pronto, casa comprada, tudo arrumadinho”. Mas aí tudo mudou.

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A culpa pelo conselho que faltou

O filho de Marli não era disso, mas mudou de ideia repentinamente: deixou para trás o sonho do futebol e decidiu se tornar sócio de uma empresa de caminhões de lixo ao lado de um amigo. Parecia um sinal do destino.

“Um amigo chamou para ser sócio dele na Planalto e, de um minuto para outro, ele ficou em Goiânia. Ele veio para cá e eu não sei o porquê. E eu me arrependo de não ter dito nada”, lamenta Marli. Um arrependimento de mãe.

“Na hora em que ele sentou na mesa e falou para mim e para os filhos que ele iria ficar em Goiânia, eu me arrependo de não ter falado: ‘Meu filho, não saia do rumo que Deus te deu, que é o futebol’. Não fiz isso. Fazer o quê?”

Até hoje, ela não entende aquela decisão. “A vontade de ir para os EUA era muito grande. Ele queria ficar lá para fazer esse curso. E de repente vira assim? Simplesmente não entendi essa. Ele não falava nada. Ele gostava desse amigo, o sócio dele, o Beto, que é uma pessoa muito boa. Mas eu acho que tudo é por Deus. Nós todos temos a nossa hora, o nosso destino. Temos a hora de chegar nessa terra. E a hora de sair também”.

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A última conversa

A hora de sair de Fernandão parecia estar mesmo escrita. Ele já trabalhava com o amigo em Goiânia, mas foi chamado pelo SporTV para ser comentarista da Copa do Mundo do Brasil. E estava muito empolgado. A mãe também morria de orgulho e sempre dizia que ele devia ser estrela de comerciais. Mas ela jamais imaginaria que um papo trivial com o filho seria o último.

Na véspera do acidente, os dois se falaram pelo telefone. Ela esperava vê-lo viajando para o Rio de Janeiro, sede da emissora.

“Eu perguntei para ele se estava indo para o Rio. Ele disse que não, que estava indo para outro lugar. Só iria para o Rio na quinta-feira. E ainda me deu uma bronca”, conta Marli.

Fernandão tinha percebido na voz da mãe sinais de gripe. “Mãe, a senhora não tomou a vacina, né?”. “Eu respondi que não tinha tomado. Ele ficou bravo por isso. Eu prometi que iria tomar no dia seguinte”, lembra. Mas não tomou.

"Marli, você está sentada?"

Marli não tomou a vacina de gripe no dia seguinte porque, naquela noite, sua vida mudou. Como intuição de mãe não falha, ela, que estava na casa de uma tia, teve um sinal de que algo estava errado. Avisou para a parente que sentia um aperto no peito, alguma coisa ruim, uma angústia. E foi para casa, dormir mais cedo.

“Eu costumo dormir muito tarde, tenho insônia. Quando cheguei, abri o computador, fiquei ali mexendo e me sentindo mal. Fui deitar mais ou menos 1 e pouco da manhã. Mas na hora em que eu sentei na cama e virei o corpo para deitar, o meu celular tocou: ‘Uai, mas uma hora dessa?’”.

Era a notícia do acidente. Assim que pegou o celular, Marli estranhou o nome que via no identificador de chamadas. Era Bia, que trabalhava na casa que Fernandão tinha na região do Araguaia. “Marli, você está sentada?”

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"Não pega nesse celular que não aconteceu nada"

Foi a pergunta que introduziu a notícia de que Marli tinha perdido o filho: “Você está sentada?” Ela estava deitada na cama. Bia, a responsável por dar a notícia, foi rápida e direta: “Seu filho morreu”. Como uma mãe recebe uma notícia dessas?

“Eu gritei: ‘Mentira! Mentira!’. E joguei o celular longe. Não queria ouvir. Só gritava ‘não, não, não’. Uma amiga que estava em casa pegou o telefone. Eu gritei para ela: ‘Não pega, é mentira! Não pega!’. Eu não queria ter a certeza do que estava acontecendo. Eu batia na parede, dava murro na parede. Só gritando: ‘não, não, não, não e não’”.

Marli foi levada até a casa de Thayná, a filha mais velha de Fernandão. De lá, foi para um hospital, onde foi medicada. “Eu fiquei passada. Não estava entendendo muito mais o que acontecia. Quando voltava a consciência, eu só sabia falar ‘não’. Chorando e falando ‘não’. Não queria que fosse verdade. Eu não acreditava que era verdade”.

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Quando as lágrimas secaram

No hospital, o médico ainda temia pela saúde da jovem senhora. Mas Marli saiu de lá e foi direto para o Goiás Esporte Clube. O clube que foi símbolo do nascimento de um dos jogadores mais importantes de sua história, virou palco também de sua morte. Fernandão foi velado e recebeu as últimas homenagens na sede do time que o lançou para o futebol. 

“Foi muito difícil ver ele ali, no caixão. Eu fiquei nervosa porque tinha um vidro e eu não pude pegar em sua mão. Aquilo ali, nossa... Em alguns momentos, eu batia no vidro. Eu queria tocar nele, mas não conseguia”, conta Marli.

Ela não saiu do lado do corpo do filho e permaneceu no salão durante toda a madrugada sem arredar o pé. “Vou falar: a coisa mais difícil que existe na vida de uma mãe é perder um filho. Não tem coisa pior. Não tem. Você perde a sua mãe, você perde o seu pai, mas não pode perder o filho. Eu sempre falo que se não estou mais chorando, não é porque as minhas lágrimas acabaram. É porque elas secaram”.

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A aceitação da morte

Chegou o momento de seguir com a vida. Marli sofreu muito em cada estágio do luto. “Primeiro, coloquei na cabeça que ele estava viajando. A vida dele era isso. Aqui no Goiás, no São Paulo, no Internacional. Foi jogar na França. Eu falei assim: ‘Ele tá viajando’. Um dia vai voltar”.

Um dia, ela percebeu que o retorno não iria acontecer. “De repente, eu disse: ‘Gente, ele não vai voltar, meu Deus. Todo mundo já foi e ninguém voltou’”, relata. “Chega a um momento nesse processo de luto em que não adianta chorar mais, não resolve. Ele não vai voltar. Comecei a conversar com Deus, como se Deus estivesse ouvindo as minhas conversas”.

Nessas conversas, Marli pedia a Deus que conversasse com Fernandão. Pedia para transmitir uma mensagem ao filho: “Eu dizia: ‘Meu filho, eu te amo muito. Estou com muita saudade’. E aí foi passando, foi amenizando aquela saudade”.

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Distância dos netos

Nesses quase quatro anos, a vida de Marli mudou muito. Até mesmo a relação com os netos se alterou. Fernandão teve três filhos. Thayná tem 18 anos. Os gêmeos Enzo e Eloá, 14. “Graças a Deus ele deixou esses três pedacinhos para mim. O Fernando era assim paizão, muito paizão mesmo. Ele brincava de rolar no chão quando eles eram menores. Eu fui bastante avó também... Nossa, eu adorava”.

O verbo no passado não é porque as crianças cresceram. Marli ainda é muito próxima da mais velha, que ajudou a criar enquanto a mãe trabalhava. Thayná também mora em Goiânia. Já os mais novos nasceram na França e viveram na ponte aérea entre Porto Alegre, São Paulo e Goiânia. Quando Fernandão morreu, a relação difícil com a nora Fernanda, que envolve até uma disputa judicial pela divisão de bens, acabou aumentando as distâncias.

“São coisas que não têm como a gente falar. Eu não sei o motivo desse afastamento. Aconteceu. Não tem nem como eu procurar as crianças. É, assim, meio que difícil. Mas se Deus quiser, vai dar tudo certo e eu vou encontrar um jeito. Vou encontrar um momento em que eu possa chegar e cumprimentar. Eu sei que eles me amam porque eu amo muito os dois. Demais. Mas, neste momento, está um pouco difícil”.

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Os sonhos com o filho

Os netos estão distantes, mas Fernandão ainda é muito presente na vida de Marli. Mais do que você imagina. “Um dia, eu sonhei com ele. Eu estava em uma janela e ele caiu de um muro, se segurando. Parecia que tinha caído lá de cima. Ele disse: ‘Sou eu, mãe. Eu voltei”, conta.

“Eu acho que sonhei isso porque tinha colocado muito na cabeça que ele ia voltar. E, no sonho, eu o abracei e disse: ‘Meu filho, eu chorei muito quando você foi embora’. Ele disse que sabia disso. Eu lembro muito bem desse pedacinho do sonho. Foi muito real”, conta.

Marli também sonhou com o filho quando o Internacional, clube que mais marcou a carreira de Fernandão, vivia uma fase ruim na disputa da Série B. “O Inter estava muito mal por esses dias. Aí eu sonhei com o Fernando. Ele falou: ‘Mãe, eu voltei. Voltei porque eu preciso arrumar algumas coisas aqui’. No sonho, eu não vi mais nada. Mas depois disso, o Inter passou a ganhar. Foi ganhando, ganhando. Tanto que ficou em primeiro lugar depois desse sonho. Eu coloquei na cabeça: ‘Meu filho veio consertar o Inter. Tinha alguma coisa errada’”.

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A força da torcida colorada

A relação com o Inter vai bem além dos encontros noturnos do subconsciente. Na época em que as lágrimas tinham secado, Marli buscou forças na torcida colorada e no apoio de milhões de fãs.

“Deus, em primeiro lugar, te dá muita força. Mas, depois, quando eu tive condições de ver televisão, vi todas aquelas homenagens. Tem um vídeo que me emociona até hoje, em que os torcedores gritam o nome do meu filho e começam a cantar a música do Fernando. Com aquilo ali eles me ajudaram. Parecia que eu estava de mãos dadas com eles. Era como se estivessem falando: ‘Força que estamos aqui’. Nossa... Você não entende o tanto que eles me ajudaram”.

Por causa disso, o Inter faz parte de sua vida até hoje. “É um lugar em que meu filho foi feliz. E eu tenho muita gratidão por isso. Ele amava aquela alegria daquele povo gaúcho. E eu amo muito também. Eu tenho eles como uma família, os colorados”.

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