O despertar da força

Como Lara Croft se adaptou aos novos tempos e mostrou muito mais do que apenas pernas torneadas

Mariana Tramontina e Natalia Engler do UOL

Mais de 15 anos já se passaram e o nome Lara Croft associado ao rosto de Angelina Jolie ainda é forte demais para se esquecer. Os filmes de 2001 e 2003 baseados no game "Tomb Raider" deram à heroína virtual uma personificação tão legítima quanto complexa de se substituir nos cinemas. Até agora.

Alicia Vikander, a Lara Croft versão 2018, chega nesta quinta (15) aos cinemas para dar uma nova cara (e corpo, personalidade e história) para a personagem em "Tomb Raider - A Origem". Não é uma empreitada fácil para a atriz sueca de 29 anos, e prova disso está espalhada pela internet: desde o início de sua escalação, fãs da franquia torceram o nariz, especialmente pelo porte físico menos voluptuoso do que o de sua antecessora.

De fato, a nova Lara Croft não usa shortinho nem roupa colada ao corpo, e as pistolas já não fazem tanta parte de seu universo. O novo figurino, incluindo uma nada sensual calça cargo, faz a ocasião: é prático e utilitário para as aventuras que a heroína vai enfrentar pelo caminho. Os tempos são outros e a protagonista se reformulou. E é bom lembrar: 

Aquela Lara Croft sexy e destemida foi deixada para trás por seus próprios criadores.

A Lara Croft de Alicia Vikander, que já ganhou um Oscar de coadjuvante pelo papel em "A Garota Dinamarquesa" (2015), é um reflexo fiel da mudança de perfil da própria heroína nos games. O novo filme é inspirado nos dois últimos jogos, lançados em 2013 e 2015, que reformularam a personagem e no qual tomamos conhecimento de seu passado.

No filme "A Origem", Lara é uma jovem independente que ainda não aceitou o desaparecimento do pai, o investidor Richard Croft (Dominic West), sumido há sete anos. Justamente por esse motivo, se recusa a usufruir da herança milionária deixada por ele (e que só terá direito se o declarar oficialmente morto) e prefere se virar em Londres fazendo bicos como entregadora de comida para um restaurante e dividindo seu tempo entre aulas de MMA e corridas de bicicleta.

Quando ela finalmente decide tomar uma decisão sobre o destino dos negócios, descobre que Richard levava uma vida dupla. Com vários quebra-cabeças e pistas em mãos, ela parte para Yamatai, uma ilha misteriosa e desconhecida no Japão onde o pai esteve para investigar os segredos sobre a tumba da rainha Himiko, na esperança de encontrá-lo com vida. E é daí que desenrola a ação.

O filme se concentra em sua grande parte na relação entre Lara e Richard, através de flashbacks que nos mostram de onde vem sua determinação e nos explicam como ela aprendeu a manusear, por exemplo, um arco e flecha.

Embora a história de origem de Lara Croft já tenha sido contada algumas vezes nos games, foi o estúdio Crystal Dynamics, responsável pelo jogo, que decidiu reiniciar em 2013 toda a trama: no lugar da então aristocrata britânica, entediada, e valente caçadora de tesouros temos uma jovem geek, recém-graduada em arqueologia, inexperiente e cheia de inseguranças.

"O reboot do jogo é muito diferente dos anteriores. [Essa história] Já estava lá", explica Vikander, em entrevista ao UOL, sobre as mudanças da personagem.

Os shorts não são mais curtos, ela usa calça comprida, não se veste mais como nos primeiros jogos. E por quê? Acho que não foi simplesmente porque os criadores decidiram. Foi a sociedade. A imagem que tínhamos das mulheres 20 ou 30 anos atrás é extremamente diferente da de hoje

A nova Lara fala

Lara Croft revolucionou a imagem da mulher nos jogos. Na época em que garotas eram princesas que precisavam ser salvas em castelos, surgia ali a destemida aventureira arqueóloga, no auge dos games de luta. Ela não foi a primeira protagonista feminina, mas nenhuma outra alcançou o mesmo nível de influência cultural até então.

"Tomb Raider" bateu seis recordes do Guinness, vendeu mais de 45 milhões de cópias, teve a heroína como capa de inúmeras revistas, como se fosse uma modelo real, e chegou a fazer parte da turnê do U2. Não foi exagero quando o jornal "The New York Times" publicou na época que, na Grã-Bretanha, só as Spice Girls eram mais populares do que Lara Croft.

"Tomb Raider" foi inicialmente celebrado como um passo à frente em um mundo dominado por personagens masculinos. Finalmente as meninas tinham uma personagem forte e inteligente, com grandes habilidades físicas, para se inspirar.

A própria Vikander lembra do impacto que sentiu com o game, aos 8 anos. 

Fiquei muito animada de ver, pela primeira vez, um jogo que tinha uma heroína forte, porque eu adorava filmes de aventura como "Indiana Jones" e "A Múmia"

Quando foi transformada no primeiro filme estrelado por Jolie, a franquia também se tornou um marco: foi a maior bilheteria de uma adaptação de videogame até então (depois foi superada por "Príncipe da Pérsia") e a maior estreia de um filme protagonizado por uma mulher.

Isso tudo em uma época em que heroínas como a Ripley de "Alien" e a Sarah Connor de "O Exterminador do Futuro" eram lembranças quase distantes e os estúdios viam com receio a ideia de colocar uma mulher no comando de um blockbuster de ação.

Desvendando Lara Croft

O primeiro clone

Enquanto "Tomb Raider" era desenvolvido, versões para um protagonista eram testadas. E nas primeiras etapas, o personagem era um homem arqueólogo, aventureiro e caçador de tesouros. Alguém falou Indiana Jones? Pois foi para diferenciar do herói (e evitar possíveis processos pelo clone) que os criadores transformaram o herói em mulher.

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Uma militar latina

Depois de ser transformada em mulher, a heroína ganhou histórico: seria uma militar sul-americana chamada Laura Cruz. O nome não vingou: os americanos não pronunciavam Laura corretamente, e Cruz foi modificado pelo sobrenome britânico Croft, escolhido aleatoriamente em uma lista telefônica.

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Erro proposital

Embora não seja uma falha apropriada, as curvas de Lara Croft são resultado de um erro dos programadores do jogo. Durante os ajustes da personagem, a proporção do busto foi aumentada acidentalmente em 150%, em vez dos 50% inicialmente planejados. Virou piada e a equipe resolveu mantê-lo.

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Em turnê com U2

Fã do game, Bono pediu autorização para usar a imagem de Lara Croft nos shows do U2. Durante a turnê Popmart, em 1997, a personagem era projetada em um telão. Anos mais tarde, a música "Elevation" foi escolhida como tema para o primeiro filme de "Tomb Raider". O clipe oficial tem os músicos como personagens na vida de Lara.

O currículo de atributos de Lara é extenso: arqueóloga, aventureira, rica, bela e dona de um corpo escultural. A questão é: como desbravar o mundo em busca de tesouros, correr os perigos da selva, desvendar tumbas e ruínas no Egito, e vestindo apenas um short curto e uma regata?

A representação gráfica de Lara Croft tem contexto: foi criada em meados dos anos 1990, época em que vivia-se o ápice da sexualização das personagens femininas, tanto nos filmes quanto nos games.

"Por ser um jogo em terceira pessoa, você está sempre olhando para as costas dela. Não tinha como não tirar os olhos do traseiro da Lara", diz a comunicadora Karin Cristina, 29, que jogou as primeiras versões do game na época. "Eu nem sabia o que era representatividade ou representação feminina, mas é claro que a Lara em 'Tomb Raider 2' era bastante incômoda. Aqueles peitos enormes eram estranhos para mim aos 12 anos".

Karin tem outra lembrança marcante da personagem: os gemidos. "Tudo o que você faz no jogo, a Lara geme. Ela corre, dá cambalhota, cai no chão, atira, se esquiva, e faz tudo isso gemendo".

A estudante de Ciências Sociais Samara Cardoso, 23, teve um choque ao rever Lara depois de crescida. "Passei muitos anos longe da franquia e retornei com o lançamento do reboot de 2013. Na época, já mais velha, eu me surpreendi porque nunca tinha pensado como era estranho a Lara correndo e pulando quase nua, sendo que ela é uma arqueóloga".

A mudança tem nome

O renascimento de Lara Croft tem uma outra mulher por trás: Rhianna Pratchett. Filha do autor de livros de fantasia Terry Pratchett e com um longo histórico na indústria de games (ela colaborou em títulos como "BioShock Infinite" e "Mirror's Edge"), a escritora britânica liderou o roteiro dos últimos jogos de "Tomb Raider" e deu uma nova interpretação para a personagem.

Sua intenção foi desmistificar a heroína e dar a ela uma história de vida. No jogo de 2013, Lara está perdida em uma ilha após um desastre de barco, sozinha, fragilizada e com medo. Ela enfrenta frio, fome e animais selvagens, e precisa aprender a caçar e a se defender. Conforme passam os perrengues, mais adquire habilidades para resistir às adversidades. A narrativa é intensa e o interessante mesmo é acompanhar a evolução física e psicológica da protagonista.

Na época em que assumiu o posto, Rhianna defendeu em uma entrevista ao site "Game Informer" o fator sexy em personagens femininas. "O problema é que a indústria tem usado a sexualidade como um traço de personalidade e usando para isso o excesso de sensualidade. Precisamos de mais diversidade e criar personagens que são sexy porque são inteligentes, engraçados, pensativos e leais. Eu ainda acho Lara sexy, mas agora ela não é só sensual. Lara é linda, feroz, empática, determinada e inteligente".

Depois de quase cinco anos trabalhando no jogo, a roteirista deixou a franquia no início de 2017 em busca de novas aventuras. Na época de seu desligamento, a produtora Crystal Dynamics enalteceu as mudanças feitas pela escritora:

Rhianna foi fundamental em ajudar a encontrar a voz de Lara na história de origem de 2013, e em 'Rise of the Tomb Raider' a moldou na heroína em evolução que conhecemos hoje

A nova Lara está pronta para desafios

Alicia Vikander conta qual foi a cena mais difícil de filmar

Se os jogos originais de "Tomb Raider" dividiram opiniões, os filmes estrelados por Angelina Jolie também foram recebidos com um pé atrás. A atriz já tinha ganhado um Oscar de coadjuvante por sua atuação em "Garota Interrompida", mas ainda não era uma estrela de primeira grandeza em Hollywood e tinha fama de bad girl, desafiando o status quo e os estereótipos clássicos sobre o papel feminino.

"Estávamos tentando estabelecê-la como um modelo de ação e aventura para garotas", lembrou o diretor daquele filme, Simon West, em uma entrevista recente à revista "Entertainment Weekly". "Acho que foi isso que fez Angelina se interessar pelo papel: ser um modelo".

Ao mesmo tempo, a câmera dava ênfase excessiva ao corpo da atriz. Nos primeiros minutos dos filmes, Jolie aparece tirando a roupa para tomar banho, de biquíni, com direito a close no decote. O modo como a Lara foi retratada era claramente destinado a agradar o público masculino: caras, bocas, muitas silhuetas e takes sensuais.

Em termos de personalidade, o charme de Jolie era inegável, mas sua Lara tinha a mesma frieza dos games: não demonstrava medo, preocupação ou qualquer emoção mais explícita, o que só ajudava a reforçar a aura de símbolo sexual inatingível.

É neste ponto que a versão de Vikander mais se distingue da anterior. Quem vê a poderosa Lara Croft cheia de atitude e rápida no gatilho não imagina que um dia ela foi só uma garota insegura e inexperiente.

"Eu queria que ela fosse multifacetada", explica Vikander. "Mas não precisávamos excluir o componente sexy. Lara tem uma personalidade muito forte. E é muito atraente o fato de que, mesmo quando as coisas não estão indo nada bem, ela é sempre sagaz e supera a situação com humor. 

Acho que esse é o tipo de mulher que tanto homens quanto mulheres querem ter por perto.

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