O porradeiro de Hollywood

Como o coordenador de dublês Clayton J. Barber deu nova cara às lutas de "Punho de Ferro"

Beatriz Amendola Do UOL, em Nova York
Divulgação/Netflix

“Acho que houve boas lutas na última temporada. Pegamos o que eles fizeram muito bem e tentamos fazer uma versão 2.0 disso”. Clayton J. Barber, novo coordenador de dublês de “Punho de Ferro”, é elegante ao falar com a imprensa sobre as duras críticas em relação à escassez (e a execução questionável) das cenas de luta do primeiro ano da série da parceria Marvel-Netflix, que retornou na última sexta (7). 

Com blockbusters como “Pantera Negra” e “Creed – Nascido Para Lutar” em seu currículo, Barber foi convocado para cuidar das lutas e do trabalho dos dublês no segundo ano da série, substituindo o veterano Brett Chan. A própria Netflix vinha apostando tanto em seus talentos que divulgou, antes da estreia da nova temporada, um vídeo estrelado por ele. E compensou: o profissional pode ser creditado como um dos responsáveis pela visível melhora das sequências de ação da série – componentes essenciais de uma produção que se propõe a retratar um herói especialista em artes marciais.

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Ensaios e ensaios

Ex-atleta de taekwondo pela seleção norte-americana, Barber recebeu o UOL e um grupo de jornalistas da América Latina em uma academia no bairro do Brooklyn, em Nova York. À época, em março deste ano, as gravações de Punho de Ferro estavam a pleno vapor e, no tablado, um grupo de dublês e o ator Sacha Dhawan ensaiavam para uma cena em que Davos, rival de Danny Rand nesta nova temporada, prepara um grupo de guerreiros.

Para cada novo episódio, os atores e os dublês ensaiam por uma ou duas semanas, explica o coordenador.

Tentamos conseguir o máximo de tempo possível para os ensaios, para que os atores consigam entregar a melhor performance que puderem quando estiverem no set. Tentamos fazer parecer que eles sabem o que estão fazendo.

Os trabalhos, é claro, começaram bem antes. Cinco meses antes, na verdade. “Começamos em novembro”, lembra. “No minuto em que entrei, começamos a levar os protagonistas para treinar, tentando prepará-los para as cenas de artes marciais que iríamos fazer, ensinando a eles kung-fu e caratê, no caso de Collen [interpretada pela atriz Jessica Henwick]. Cada personagem tem um estilo muito particular”.

Conforme os roteiros dos episódios vão chegando, Barber e seu time adaptam os treinos e criam as coreografias específicas para cada cena. “Os movimentos que vamos ensinar terão a ver com aquele tipo de história. Se Colleen está lutando com certo personagem, tal personagem tem um determinado conjunto de habilidades, e precisamos ensinar Colleen a encarar isso. Se ela está lutando com alguém melhor do que ela, criamos uma coreografia em que ela tem que se desviar, evadir, coisas assim”.

Eu não preciso do roteiro para treinar os atores, porque eles podem continuar ficando melhores e mais afiados. Mas a cada vez que chega um novo roteiro, há uma nova história com a qual precisamos os adequar.

Os bastidores da ação

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Hollywood-Fu

Barber não costuma trabalhar com só um tipo de arte marcial: "Eu chamo de Hollywood-Fu, Hollywood-Do. É o mesmo macarrão, mas você mistura com coisas diferentes". Quando há a necessidade de movimentos mais específicos, ele procura ajuda. "Você só pode ser tão forte quanto os generais que te aconselham. Eu falo com um conselheiro técnico, ou mando meus atletas e atores fazerem uma aula hardcore de treino naquele campo específico".

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Trabalho em equipe

"Não há só uma pessoa criando tudo, é um time inteiro. Tenho dois coordenadores de lutas, um assistente e outros funcionários que me ajudam. E é assim que funciona. Nós nos sentamos em uma mesa redonda como um monte de roteiristas, vemos vídeos ou aulas ou filmes e falamos 'vamos fazer assim', 'isso foi bom'. Misturamos tudo e fazemos".

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Reinvenção da roda

"Dizem que não dá para reinventar a roda, e há muito pouco que dá para reinventar fazendo ação, mas você tem que encontrar novas formas de preparar essa ação. Tudo é igual, um soco é um soco, um chute é um chute, mas como você faz isso [ficar diferente]? É como mexer com palavras. O escritor escreve: 'o cachorro pulou a cerca'. Como ele torna isso único? Ele coloca 'o cachorro enorme pulou sobre a cerca e pegou a bola'. Voilá! É o mesmo com a ação".

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Sem folga para os atores

O coordenador de dublês deu início a seus trabalhos em “Punho de Ferro” com uma meta ambiciosa: fazer com que os atores fizessem a maior parte de suas cenas de ação, diminuindo o uso de dublês. E ele conseguiu. “Neste caso, você provavelmente terá cerca de 90% de toda a ação feita pelos atores. Ponto final. Usamos muito pouco os dublês”. Feito semelhante ao que ele já havia conseguido com Chadwick Boseman, Michael B. Jordan e companhia em “Pantera Negra”.

O objetivo é fazer com que a personalidade dos personagens se sobressaia mesmo na hora da pancadaria. “Quando pego esses atores, eu falo pra eles: ‘você vai aprender, você vai se esforçar’. E todos eles abraçam isso, todos nós pomos a mão na massa. Minha meta é fazê-los se transformarem naqueles personagens tendo que realmente agir como eles. Isso ajuda na motivação, ajuda na forma como eles atuam na cena, na minha opinião. Sou muito fã de pressionar todo ator com quem trabalho a fazer sua própria cena de ação.”

Isso exclui, obviamente, sequências que exijam maiores riscos. “Se é uma cena muito perigosa, se tem algo que vai machucá-los no chão, ou algo saindo de uma janela, aí coloco um dublê. Mas se é só coreografia, eu quero eles interpretando o personagem”, conta.

Como exemplo do resultado a ser atingido, ele lembra o duelo de espadas de Liam Neeson e Tim Roth em “Rob Roy, a Saga de uma Paixão” (1995). “A câmera vê Liam Neeson e Tim Roth fazendo toda a cena. É isso que explico a eles. Eu não quero que a câmera vá por trás de uma peruca feia, e então eles apareçam fazendo ‘A-há!’ Esse é a meta. Acho que isso fomenta um ambiente criativo e os encoraja a se esforçarem. Nós miramos em Marte. Se alcançarmos a lua, eu estou feliz. Desde que saiamos da Terra...”, diverte-se.

Na experiência dele, os atores de “Punho de Ferro” definitivamente saíram da Terra, ainda que tenham suas limitações. “Não acho que nenhuma dessas pessoas esteja vindo do UFC”, brinca Barber, aos risos. “Acho que eles são atores por uma razão, e são muito bons no trabalho deles. Mas no curso desta última temporada, todos os atores se tronaram muito proficientes nos seus movimentos, como em ‘John Wick’. Por alguns meses, parece que ele [o astro Keanu Reeves] é mesmo um assassino com uma arma”. A referência não é gratuita: ele trabalhou como dublê na sequência do filme de ação, lançada no ano passado.

Todos são muito, muito bons no que fazem. Não tem um irmão melhor nesse caso. Tenho cinco filhos e amo todos da mesa forma.

Clayton J. Barber, sobre o desempenho dos atores de "Punho de Ferro"

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"Mr. Hollywood"

Clayton J. Barber ainda era criança quando começou a praticar o taekwondo. Adolescente, passou a competir em competições internacionais. Anos mais tarde, já na seleção americana da modalidade, chegou a receber medalha de prata nos Jogos Pan-Americanos de Mar del Plata, na Argentina, em 1995. Mas ele queria mais e, ao deixar a carreira esportiva, mirou em Hollywood, origem de um apelido entre seus colegas atletas.

“Cuidado com o que você deseja, dizem eles”, diz ao recordar sua passagem para a indústria cinematográfica. “Meu apelido, quando eu era um lutador, era Mr. Hollywood, porque eu sempre falava que queria estar no cinema, ir para Hollywood. Os caras brincavam: ‘você não vai estar no cinema, você é só um showman’. E quando eu me aposentei, eu peguei meu carro, vim para Los Angeles, e aí é aquela antiga história. Comecei por baixo. Sabia que tinha uma habilidade, algo que poderia oferecer, então eu decidi começar por aí.”

Barber, que já havia atuado como dublê em “Power Rangers”, em 1993, então conseguiu vários trabalhos no ramo. Fez “Batman & Robin”, “Buffy – A Caça Vampiros”, “As Panteras” e “Zoolander” (foto), entre outros. Como coordenador, seu primeiro projeto foi o obscuro “Uma Cidade Sem Lei”, de 2010, estrelado por Josh Hartnett e Demi Moore. Com “Punho de Ferro”, se aventurou em outra área, trabalhando também como diretor de segunda unidade em alguns episódios. 

O segredo para se manter há 25 anos no ramo? Se cercar de gente boa. “Ao longo do caminho, você aprende a reconhecer talento. Você aprende a gerenciar boas ideias. E isso é realmente o trabalho de um coordenador de dublês ou de um diretor: gerenciar ideias que se unem. Como diretor de ação ou coordenador, eu me cerco de pessoas que são duas vezes melhores do que eu em tudo, para garantir que eu seja bem-sucedido em tudo o que eu faço. É simples assim”, diz. “Não conte isso para ninguém”, acrescenta, bem-humorado.

Só ajuda o fato de ele gostar bastante do que faz. “Eu me divirto levando os atores até o topo. É assim que eu vou para casa com um sorriso. Eu me olho e penso nossa, fizemos uma coisa do zero até o fim. Para mim, é isso que faz valer a pena”.

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Um trabalho que dá orgulho

Uma sequência de quatro minutos e meio, sem cortes, de Michael B. Jordan em "Creed". "Ele tinha 200, 300 movimentos e tinha que fazer como se fosse uma apresentação teatral", lembra Barber. "Ensaiamos, ensaiamos e ensaiamos por um mês. [O diretor] Ryan Coogler nos fez acreditar que conseguiríamos fazer, e quando deu certo, foi muito especial. Fazer uma tomada só, com um apenas ator encarnando um boxeador e entregando uma performance daquelas... Tenho orgulho de todas as cenas das quais participei, mas como compositor, essa é de longe a que mais tenho orgulho".

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As referências

"Os filmes clássicos de Jackie Chan são uma grande inspiração, por causa da fisicalidade. É como teatro", diz Barber, que também é fã dos filmes com violência ultrarrealista, à la "John Wick". "Eu gosto de 'gun-fu' [a mistura de artes marciais com armas]. É muito legal. Quanto mais balas, melhor pra mim. Gosto de ver isso, gosto do impacto. Pra mim, cenas de ação são como um esporte, como rúgbi, futebol ou boxe. É contato. Quanto mais contato você tem, mais realismo você traz ao que você está tentando fazer, em vez de fingir socos e desviar das pancadas. Eu prefiro uma versão mais realista do que fazemos".

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Odiado? Às vezes

Com seu método de levar os atores até o limite, não é sempre que Barber é querido por seus pupilos. Se eles o odeiam? “Às vezes”, diz, rindo. “Mas no fim eles sempre voltam, me dão um abraço e dizem ‘obrigado’. Às vezes eles se sentem nus, porque no começo eles não são bons. É como falar em público pela primeira vez, você fica inseguro. Mas é como eu digo a eles: a repetição resolve tudo. Repetição é o segredo de todo o sucesso. Com esforço e repetição, você vai se tornar um rei”.

Para o coordenador de dublês, é só depois de muito repetir que os atores finalmente se encontram no papel. “É aí que eles começam a acrescentar o próprio toque, é quando eles se tornam o personagem. Eu pego eles embaixo, quando eles estão nervosos e assustados, e depois que fazemos mil repetições, eles estão metidos e eu não posso dizer mais nada a eles sem ouvir ‘já sei disso, não se preocupe’”.

Mas não dá para usar a mesa receita com todos.

Todo ator é como uma criança diferente ou um aluno diferente. Você tem que cuidar deles, manipulá-los, treiná-los, ensiná-los, de formas diferentes. Se você fizer da forma errada, eles te mordem.

Do jeito certo, o treinamento não transforma o ator em um atleta, mas quase sempre é suficiente para fazer o público acreditar que ele é um assassino, um mestre kung-fu ou um militar, nota Barber. “Em muito poucos casos houve vezes em que eu falei ‘não posso fazer isso, não consigo’; em 99% das vezes você encontra uma forma de fazer um astro do cinema parecer que sabe o que está fazendo. É simples assim”.

Vale para anônimos também. “Se eu tivesse três dias com vocês, seis horas por dia, eu poderia fazer vocês aprenderem algumas coisas”, diz para os repórteres. 

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