Por uma festa mais segura

Rio age para evitar novas tragédias no desfile, mas vítimas de 2017 ainda sofrem

Anderson Baltar Do UOL, no Rio
Reprodução/TV Globo

Dois acidentes graves marcaram o desfile das escolas de samba do Rio em 2017. No domingo de Carnaval, o último carro alegórico do Paraíso do Tuiuti entrou na área de armação da Marquês de Sapucaí completamente desgovernado, chocou-se contra as grades e atropelou 20 pessoas, matando a radialista Liza Carioca. No dia seguinte, o módulo superior do segundo carro alegórico da Unidos da Tijuca despencou e provocou ferimentos em 12 componentes.

Os episódios evidenciaram o crescimento do espetáculo visual, com carros alegóricos cada vez maiores e mais suntuosos, mas sem a existência de um padrão de segurança para a construção. Em meio à dor das famílias das vítimas e da sua busca por Justiça, órgãos públicos entraram em cena e as escolas de samba tiveram de se habituar a uma nova realidade.

Neste domingo, o show na Sapucaí recomeça. As condições de segurança das alegorias e da passarela do samba já são diferentes em relação a 2017, mas as vítimas do Carnaval passado ainda sofrem as sequelas dos acidentes.

As mudanças no regulamento

A Liesa (Liga Independente das Escolas de Samba) e a Riotur (Empresa de Turismo do Rio de Janeiro) mexeram principalmente na área de armação da Marquês de Sapucaí, localizada entre o Setor 1 e as cabines de rádio. A medida mais efetiva foi a redução do número de credenciais para o local – em torno de 40%. A restrição atingiu órgãos de imprensa e, sobretudo, as escolas de samba, que não terão nenhuma credencial para este setor.  

O espaço físico foi reordenado com a criação de um corredor de circulação para a imprensa, separando-a da pista de desfiles. Do lado das arquibancadas do setor 1, onde a radialista Liza Carioca e a fotógrafa Lúcia Mello foram atropeladas, será pintada uma faixa amarela, que indica a proibição de permanência no local. 

Outra medida importante é a realização do teste de bafômetro em todos os motoristas das escolas, além da exigência de habilitação para dirigir veículos deste porte. No curso de jurados, foi pedido que os avaliadores sejam mais benevolentes com escolas que desfilem com os motoristas aparentes – anteriormente, este fato fazia as escolas perderem décimos preciosos em alegorias e adereços.

Em caso de acidentes com alegorias, três reboques estão à disposição: um na Praça da Apoteose e um em cada recuo de bateria. Sete postos médicos estarão em funcionamento ao longo de toda a avenida. 

Para este Carnaval, havia a expectativa de que a Liesa criasse um dispositivo que permitisse interromper o desfile em caso de acidente com alegorias, para que os órgãos de defesa civil pudessem agir. Este artigo não foi incluído no regulamento, mas a Comissão de Direção Artística tem a prerrogativa de fazer o desfile parar caso seja necessário

Fernando Frazão/Agência Brasil Fernando Frazão/Agência Brasil

De olho nas escolas

Fiscalização na preparação do Carnaval foi maior após os acidentes

O Crea-RJ (Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Rio de Janeiro) realizou, ao longo dos preparativos para os desfiles, um intenso trabalho de fiscalização nos barracões das 13 escolas do Grupo Especial. De acordo com o presidente da entidade, Luiz Cosenza, a ação deu resultados imediatos e as escolas de samba já estão fazendo seus carros alegóricos dentro de uma nova realidade.

"Garantimos que, nos barracões da Cidade do Samba, hoje existem profissionais de todas as áreas envolvidas na preparação do desfile: mecânica, civil, elétrica, segurança do trabalho, dentre outras. A Liesa assumiu um compromisso e ele está sendo cumprido em todos os barracões", assegura Cosenza.

De acordo com o conselheiro do Crea Marco Antonio Barbosa, a entidade visitou os barracões das escolas para entender como os carros alegóricos eram confeccionados. E encontraram um quadro que não era o desejado, com poucos engenheiros sendo responsáveis por mais de 60 carros alegóricos.

"Precisamos entender que as escolas de samba têm uma forma artesanal de construção nas alegorias. Fomos levar um pouco mais de técnica. Já existiam engenheiros, mas não na quantidade e nas especificações que achamos recomendável".

Segundo Barbosa, o número de engenheiros responsáveis pelas alegorias subiu de 6 para 18, o que é considerado aceitável pelo Conselho.

Em um segundo momento, o Crea-RJ visitou os barracões para verificar se as especificações estavam sendo atendidas. Este trabalho, iniciado em outubro, observou as condições de construção dos carros e sugeriu mudanças. Em seguida, atestou se os pedidos foram atendidos. 

Também avançam as discussões para a criação de normas técnicas para carros alegóricos. A ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) criou uma comissão para debater o assunto. O grupo, que contará com integrantes das ligas das escolas de samba do Rio de Janeiro e de São Paulo, além de membros do Crea e outros órgãos, deverá iniciar seus trabalhos logo após o Carnaval. 

Nunca podemos assegurar que não haverá acidentes. É igual a uma obra. O profissional calculou e se algo acontecer, o Crea responsabilizará. Mas tenho certeza de que os riscos estão bem menores.

Marco Antonio Barbosa, conselheiro do Crea

O que os engenheiros avaliam na construção dos carros alegóricos

  • 1. Chassis

    Estudo para entender os chassis das alegorias, geralmente adaptados de caminhões ou ônibus.

  • 2. Soldas

    Como são feitas as soldas nas ferragens do carro alegórico.

  • 3. Direção

    Como os carros conseguem virar a curva da concentração para o desfile.

  • 4. Freios

    A situação dos freios do carro alegórico.

  • 5. Motoristas

    A posição e a visibilidade dos motoristas.

  • 6. Peso

    Se os carros têm capacidade de suportar o peso das esculturas e das pessoas.

Bruna Prado/UOL Bruna Prado/UOL

Inquérito se arrasta na Justiça

O inquérito policial sobre o acidente do Paraíso do Tuiuti indicou como responsáveis o motorista do carro alegórico, Francisco de Assis, o engenheiro Edson Marcos Gaspar, o diretor de Carnaval da escola, Leandro Azevedo, e o diretor de alegorias, Jaime Benevides. Eles respondem por lesão corporal, atropelamento, imperícia, imprudência e negligência. O motorista ainda foi acusado de lesão corporal culposa.

O laudo pericial na alegoria da Unidos da Tijuca isentou a escola de culpa e responsabilizou a Berg Indústria Mecânica, responsável pelos equipamentos hidráulicos do carro alegórico. Os casos estão na Justiça, sem datas para serem julgados.

Para o Carnaval deste ano, o Paraíso do Tuiuti informa que contratou um técnico em segurança do trabalho e que os condutores dos carros alegóricos receberam aulas de direção defensiva. A escola também elaborou um projeto de alegorias que permite a visão total dos motoristas. Já a Unidos da Tijuca lamenta o acidente ocorrido no Carnaval de 2017 e reforça que prestou assistência a todos os componentes feridos. 

Leo Correa/AP Leo Correa/AP
Severino Silva/Agência O Dia/Estadão Conteúdo Severino Silva/Agência O Dia/Estadão Conteúdo

15 cirurgias e a volta ao Sambódromo

No dia 1º de fevereiro, a fotógrafa Lúcia Mello, de 57 anos, passou pela 15ª cirurgia para reconstituição de sua perna esquerda, esmagada após ser atropelada pelo último carro do Paraíso do Tuiuti no último Carnaval. A operação de enxerto ósseo, bem-sucedida, foi umas das etapas finais no tratamento. Ela ficou quatro meses internada no Hospital Miguel Couto e chegou a correr risco de morte.

Os médicos dizem que sou uma guerreira e eu acho isso engraçado, porque sou muito medrosa com as coisas. Mas eu não abro mão de retomar a minha vida. Chegaram a me dizer que se a perna fosse amputada, eu já estaria livre dessa rotina de internações. Porém, o pior já passou.

Apaixonada por Carnaval, Lúcia cobria os desfiles por um site especializado quando foi atingida pela alegoria. A sua prioridade é voltar ao Sambódromo – inclusive, está credenciada para o desfile deste ano. “Gostaria de ficar quietinha em algum canto batendo fotos. Vamos ver se eu consigo me posicionar. Uma coisa é fato: da concentração eu quero distância”.

Focada em retomar sua vida, Lúcia passará ainda por um longo trabalho de fisioterapia. O prazo estipulado para que volte a andar é de dois a três anos. O tratamento tem sido custeado por ela mesma, com ajuda de parentes e amigos. 

Tinha muita gente que não tinha nada que estar ali. Também nunca tinha visto um carro alegórico correr daquele jeito. Espero que invistam no treinamento desses motoristas.

Lúcia Mello, fotógrafa, vítima do acidente no ano passado

Silêncio entre as vítimas da Tijuca

O silêncio impera entre as 12 vítimas do acidente da Unidos da Tijuca. Pelo menos cinco ações judiciais correm contra a escola por danos materiais e morais. Orientadas por advogados, algumas vítimas procuradas pela reportagem do UOL se recusaram a falar. A única pessoa que aceitou conversar pediu anonimato. Segundo a vítima, que optou por não entrar com processo contra a escola, todo o seu tratamento médico está sendo custeado pelo seguro contratado pela Liesa.

Logo após o acidente, a escola a procurou e bancou os primeiros procedimentos, saindo de cena após a entrada da seguradora, que hoje custeia o tratamento e todas as despesas médicas. Experiente em desfiles, a vítima já havia saído em carros alegóricos na Portela e na própria Unidos da Tijuca –o que lhe deu confiança e vontade de repetir a dose em 2017, já que fizera amizade com os coreógrafos do carro. Nos ensaios no barracão, nada de estranho foi observado.

Ensaiei duas vezes e o carro balançava, mas de uma forma normal. Inclusive, nos dois ensaios, a parte superior, que despencaria no desfile, foi testada. Eu sentia um pouco de medo porque era muito alto, mas fui para a avenida bem.

Após um ano perdido por conta de todo o tratamento, a vítima começa, aos poucos, a ver a sua vida voltar ao normal. Ela não estará na avenida neste ano, mas pretende voltar a desfilar em 2019. Mas de uma forma diferente: “carro alegórico, nunca mais. Não quero nem chegar perto”.

Mal entramos na avenida e tudo desmoronou. Só me lembro de cair da alegoria já sangrando. Uma parte do carro bateu na minha cabeça, mas fiquei consciente e me recordo de tudo: dos gritos da multidão e dos bombeiros gritando com os diretores da escola que a alegoria não poderia sair do lugar.

Vítima do acidente com carro da Unidos da Tijuca

Carlos Junior/AP Carlos Junior/AP

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