Quem te viu, quem te vê

Dos festivais de música jovem à guinada religiosa, as mutações da Record nos últimos 65 anos

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Dois donos, duas emissoras

Por Mauricio Stycer

Terceiro canal inaugurado em São Paulo, a Record é a única emissora dos primórdios da televisão que permanece com o seu nome original. A Tupi, lançada em 1950 e fechada 30 anos depois, viu sua frequência ser concedida ao SBT em 1981. Já a TV Paulista, aberta em 1952, foi comprada e rebatizada pela Globo em 1965.

Mas, ainda que permaneça com o nome original, a Record também passou por uma transformação radical ao mudar de dono. 

Não está errado dizer que há duas Record, a fundada em 27 de setembro de 1953 por Paulo Machado de Carvalho e a refundada por Edir Macedo a partir do final de 1989. A primeira durou cerca de 35 anos e a segunda comemora ano que vem o seu 30º ano de vida.

É o aniversário desta primeira Record, vamos chamar assim, que se festeja nesta quinta-feira. Uma emissora familiar, comandada pelo patriarca e seus filhos, sempre lembrada pelo clima agradável oferecido aos funcionários, mas cuja gestão pouco profissional a levou à crise várias vezes.

Liga no "Canal 7"

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Pra ver a banda passar

A Record dos primórdios ficou conhecida, em especial, pelo investimento em programação musical e pelos famosos festivais da canção na segunda metade dos anos 1960. Lançou ou ajudou a popularizar nomes como Roberto Carlos e toda a Jovem Guarda, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Vinicius e Toquinho, Jair Rodrigues, Os Mutantes, Novos Baianos, Demônios da Garoa, Elis Regina, Wilson Simonal, Nara Leão etc etc.

Até hoje são lembrados programas exibidos naquele período áureo, como "Essa Noite se Improvisa", "Show do Sete" e "O Fino da Bossa". Na criação e no comando do que aquela Record fez de melhor estava a chamada "Equipe A", formada por Tuta, um dos filhos do fundador, Manoel Carlos, Raul Duarte e Nilton Travesso.

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O sucesso gerado pelos festivais da Record era tão grande que, na final da edição de 1966, cinemas da cidade de São Paulo ficaram às moscas e os teatros tiveram que suspender seus espetáculos por falta de público. 

Conforme relato publicado no livro "Prepare seu coração: histórias da MPB", de Solano Ribeiro, músico e produtor de festivais, ele chegou a receber uma comissão de produtores teatrais pedindo para que a Record mudasse o dia em que os festivais eram exibidos.

Em junho de 1967, veio a manifestação que ficou conhecida como "a passeata contra a guitarra elétrica". O ato foi liderado por representantes da "MPB tradicional", como Elis Regina, Edu Lobo, Geraldo Vandré e Gilberto Gil, para quem o instrumento representava a "invasão americana".

Elis era apresentadora de "O Fino da Bossa", e criou-se uma rixa com o "Programa Jovem Guarda", do roqueiro Roberto Carlos. De um lado, um grupo com tendência política de esquerda e o outro, uma turma que ganhou o rótulo de "alienada".

Segundo o crítico Zuza Homem de Mello, em seu livro "A Era dos Festivais", tudo não passava de uma tentativa de "salvação do modelo do programa 'O Fino da Bossa'" diante da concorrência que a turma da guitarra elétrica representava.

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Machado perdeu o bonde

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Mas a mesma Record que se tornava líder de audiência e sucesso entre o público jovem fechou os olhos para a necessidade de deixar de ser uma emissora paulista e operar em rede, como alguns já enxergavam na 2ª metade da década de 60. 

Machado de Carvalho não via sentido, ou não ambicionava, funcionar nacionalmente. Perdeu o bonde. 

Esta falta de visão o levou a dispensar, por exemplo, a produção de "O Direito de Nascer" (1964), a primeira novela a fazer sucesso na TV brasileira. Diante do desinteresse da Record, o folhetim foi exibido pela TV Rio, cujo dono era cunhado e sócio de Machado de Carvalho, e pela Tupi, em São Paulo.

Um capítulo importante desta primeira Record é a compra, de metade das suas ações, por Silvio Santos no início da década de 1970. Sinal da crise administrativa que a marcou, o negócio mostra também que o "patrão" não perdia oportunidades.

Silvio nunca deu palpites na programação da emissora, mas ajudou a mantê-la de pé e sempre a enxergou como um "plano B" caso não tivesse onde exibir o seu programa.

Por ironia, em 1989, ao vender as ações, junto com a família Machado de Carvalho, para Edir Macedo, não podia imaginar que a decadente Record de então chegaria a vice-líder de audiência, roubando o confortável lugar que o SBT ocupou por mais de uma década.

Mas esta é outra história.

Causos da Record

  • "Jornal da Tosse"

    O primeiro telejornal do Canal 7 foi o "Record em Notícias", lançado em 1973 e realizado num pequeno estúdio com apenas uma câmera. Sem imagens em vídeo, para ilustrar as notícias, eram utilizadas fotos dos fatos exibidos. Ficaria conhecido para sempre como "Jornal da Tosse", um telejornal comentado e analisado por Helio Ansaldo e outros jornalistas de terceira idade, que não raro tinham crises de tosse e pigarro durante a exibição.

  • Fogo!

    A Record foi atingida por quatro incêndios: em 1960, 1966 e 1969 (duas vezes no mesmo dia, 13 de julho). Talvez, um dos agravantes tenha sido a ausência de seguro contra esse tipo de incidente. Segundo Nilton Travesso, em depoimento dado aos jornalistas Flávio Ricco e José Armando Vannucci, "Paulo Machado de Carvalho era meio supersticioso e acreditava que isso [o seguro contra incêndio] poderia 'chamar o fogo'". Por causa da teimosia do dono, a Record perdeu quase todos os episódios da "Família Trapo", shows, musicais e boa parte das entrevistas de Hebe Camargo.

  • Calma, Hebe...

    Nos anos 1970, quando apresentava o seu programa na Record, Hebe Camargo ficou irritada nos bastidores a ponto de dar um soco e o seu anel de brilhantes ficar preso no batente da porta. A apresentadora precisou de ajuda para recuperar a joia preciosa.

  • Meu Louro

    No final dos anos 90, Ana Maria Braga apresentava o tradicional "Note e Anote" na Record, e a emissora entendia que ela necessitava de um "parceiro". Optou-se, então, por um papagaio. Nascia o Louro José. Depois de aprovado o desenho, faltava escolher a voz. Foi aí que a direção convidou os produtores do programa para fazer um teste. Na ocasião, Tom Veiga se saiu melhor.

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Segundo império

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A era da "televangelização"

Por Ricardo Feltrin

Só no momento em que a Record é vendida para Edir Macedo, ao fim dos anos 80, é que surge uma preocupação em transformá-la numa rede nacional.

Em termos de programação, teve ótimos momentos, com seriados norte-americanos de qualidade ("Viagem ao Fundo do Mar", "O Túnel do Tempo"), uma sessão de filmes, programas esportivos e outros de bate-papo, como o de Ferreira Netto.

Havia muita programação religiosa, porém. É um momento de "televangelização" neopentecostal, com pregações, sessões de descarrego, ataques à umbanda e outras religiões afro -- e isso vai crescer na medida em que a Record vai formando sua rede nacional, começando por Belém do Pará e depois Belo Horizonte.

Bispos e cultos eram vistos em todas as faixas horárias nos anos 90. Todos os finais de tarde, era possível assistir à bênção do copo de água por volta das 18h.

Em 1998, cria o formato original do programa "Fala que Eu Te Escuto", que já surge polêmico e sob forte crítica da imprensa.

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A Record de Macedo não faz questão de ser laica e não esconde sua relação com a Igreja Universal, fundada por Edir Macedo. A igreja e seus dirigentes usam a TV para dar suas versões sobre fatos, negar outras publicadas por concorrentes e atacar quem  considera "inimigo". 

O sucesso e a expansão da Igreja Universal pelo Brasil e pelo mundo tornaram Edir Macedo e sua religião bilionários. Isso fez com que a igreja acentuasse os investimentos na TV e fizesse dela um "estandarte".

Em meados dos anos 2000 a Record lança o slogan-estandarte "a caminho da liderança". Na prática afirmavam que os planos eram superar a Globo num prazo de 10 anos de audiência. 

Mas, em vez de se relançar com personalidade no mercado, a Record se torna um simulacro da concorrente e líder, reproduzindo formatos, equipamentos, técnicas, produtos e principalmente profissionais da Globo.

Houve quem chamasse de "Recópia".

5 lendas (ou não) sobre a Record

  • Edir Macedo não assiste à programação da Record

    Verdade. O líder da igreja Universal praticamente não vê TV. Nem mesmo os próprios programas. Macedo passa o dia preocupado única e exclusivamente com a Universal e seu futuro. Além disso viaja bastante pois ainda se considera um evangelizador, antes de um empresário.

  • Todo funcionário da Record pertence à Igreja Universal

    Mentira. A Record tem católicos, espíritas e até seguidores de religiões afro em seu quadro de funcionários, além de ateus. Mas, sim, há muitos funcionários que são fiéis da igreja, especialmente em cargos terceirizados --em áreas de segurança, limpeza, alimentação--, mas há também cargos artísticos e técnicos.

  • Na Record é proibido usar cruz ou imagem de Nossa Senhora

    Realidade - Hoje isso é mentira, mas no passado não era. Nunca foi emitida uma proibição por escrito pela direção, mas até meados da década passada a "regra" se espalhou entre os funcionários, certamente estimulada por bispos da Universal e seus auxiliares.

  • Artista da Record é obrigado a dar o dízimo para a Universal

    Mentira. Isso nunca ocorreu. O máximo que há de relação entre a Universal e os artistas da Record é que anualmente é feito um evento para Instituto Ressoar, que tem relação com a igreja. No evento há leilões, shows, convidados e eventualmente são pedidas colaborações para o instituto, mas nada obrigatório.

  • Apresentadores não podem levar padres aos programas

    Realidade. Hoje isso é verdade. Há uma orientação velada para que não sejam levados aos programas padres católicos e mesmo fiéis militantes de outras linhas religiosas que não a Universal. Quer entrevistar o bispo Formigoni? Liberado. O padre Marcelo? Não pode.

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