A atriz eterna

Aos 90, Laura Cardoso se prepara para a 80ª novela e revela por que não sai de cena: "Nunca escolhi papel"

Felipe Abílio Do UOL, em São Paulo
Marcelo Ferraz/UOL
Reprodução/Astros em Revistas Reprodução/Astros em Revistas

Tarde de verão de 1935, duas meninas fantasiadas com acessórios de escola de samba correm em direção à esquina das ruas Major Diogo e São Domingos no tradicional bairro da Bela Vista, em São Paulo, para esperar o bonde passar. Há 82 anos, esta foi a primeira experiência de Laurinda de Jesus Cardoso Baleroni vivendo um personagem.

“Tinha uma amiguinha cuja mãe era de uma escola de samba. A gente pegava as roupas da escola, vestíamos, as bijuterias e íamos pra rua. A gente fazia um teatrinho de rua que era bom, engraçado. Fingia que subia no bonde e descia correndo porque senão ele ia embora. Foi a primeira personagem da minha vida”, relembra.

Nascida em 13 de setembro de 1927, Laura Cardoso, nome que adotou como atriz, completa 90 anos nesta quarta-feira (13) preparando-se para estrear seu 80º trabalho na TV. Dessa vez, viverá a dona de prostíbulo Caetana em “O Outro Lado do Paraíso”, próxima novela das 21h. Entre protagonistas e personagens menores na televisão, teatro e cinema, soma pelo menos 120 produções desde sua estreia no início da década de 1940 e tem na ponta da língua a resposta de por que nunca, num mercado tão concorrido, parou de atuar.

Não sou de escolher papel, nunca escolhi. O personagem pode ser pequeno, mas o ator é que faz o papel. Tive sorte, nunca fiquei sem emprego.”

“Não sou de escolher papel, nunca escolhi. O personagem pode ser pequeno, mas o ator é que faz o papel. Tive sorte, nunca fiquei sem emprego”, conta ela que, mesmo afastada durante três meses da última trama, "Sol Nascente", para tratar de uma infecção urinária, diz que não tem planos de se aposentar. “Amo meu trabalho, amo a minha profissão, amo os meus colegas. Toda essa gente que faz parte da minha vida há tantos anos, eu amo e defendo. Só vou parar se Deus quiser que eu pare ou quando eu morrer.”

Resistência pela profissão

Reprodução/Astros em Revistas Reprodução/Astros em Revistas

"O frio na barriga nunca acaba"

Filha dos comerciantes Adriano e Carolina, dois imigrantes portugueses, Laura aprendeu a ler com o pai, que era "um autodidata maravilhoso, gostava de teatro e cinema”, e com ele descobriu a paixão pela profissão. Na adolescência, começou a escutar radionovelas e percebeu que gostava da forma como as histórias ganhavam vida no rádio.

“Sempre gostei de ler sobre teatro, ouvia e me encantava com a radionovela porque te fazia pensar e fantasiar. Um dia pensei: ‘Quero fazer isso, quero ser radioatriz’. Me vesti, me pintei e fui para duas ou três rádios. Fiz um teste na Rádio Cosmos, passei e me contrataram.”

A atriz lembra que o pai acatou de cara, e a mãe, apesar de certa resistência no início, acabou entendendo. Depois de quase 10 anos dando voz a personagens no rádio, ela pediu uma oportunidade para o diretor e autor de novelas Cassiano Gabus Mendes e estreou seu primeiro trabalho televisivo em 1952, na recém-inaugurada TV Tupi.

O frio na barriga nunca acaba, dá dor no corpo, dor na barriga, fico querendo fugir, querendo que aconteça alguma coisa para a estreia não acontecer.”

“Sempre passava pelo Cassiano Gabus Mendes e pedia: ‘Deixa eu fazer, deixa eu experimentar, me escala em um papel. Quero mostrar que eu sei fazer’. Então fui escalada para um programa chamado ‘Tribunal do Coração.’”

Sessenta e cinco anos depois, a atriz diz que até hoje sofre como na primeira vez sempre que começa um trabalho novo. ”O frio na barriga nunca acaba, dá dor no corpo, dor na barriga, fico querendo fugir, querendo que aconteça alguma coisa para a estreia não acontecer, que caia uma tempestade e alague tudo”, conta, rindo.

O segredo da vitalidade

Acho que é a genética de pais, avós, mas não tem segredo. É só amar a vida, amar o seu semelhante, amar o seu trabalho, isso é o mais importante

Laura Cardoso

Uma mulher do seu tempo

Jacob Wackerhausen / iStock Jacob Wackerhausen / iStock

Nova geração

"Acho que vem vindo gente muito boa, mas também acho que tem gente que vê essa carreira de um modo meio bobo, acha que tudo é sofá branco, piscina, tapetes... É uma carreira difícil, árdua, precisa ter amor e se doar de verdade."

Divulgação Divulgação

Anitta

"Acho a Anitta ótima, uma mulher ativa, atuante, no seu tempo. Faz muito sucesso tanto aqui quanto lá fora."

Fabio Braga/Folhapress Fabio Braga/Folhapress

Feminismo

"Ainda acho que falta um bom pedaço do caminho para a mulher. O homem não tem que ganhar mais e nem ter um cargo melhor. Os dois podem e devem lutar pelo que querem. E temos que estar juntas, lutar juntas, defender os nossos direitos."

Reprodução/Globo Reprodução/Globo

Trans em novela

"Acho perfeito, importante para esclarecer que cada um pode ser o que quiser, amar quem quiser, como quiser. A vida é dele e é única. Não tenho nenhum preconceito. Aceitaria [um filho trans], a gente não é burra, pelo amor de Deus."

Três personagens inesquecíveis

A pedido do UOL, a atriz relembra alguns dos papeis que a marcaram nos últimos 75 anos

Divulgação/Viva Divulgação/Viva

Isaura de "Mulheres de Areia" (1993)

"O pessoal não entendia como aquela mãe defendia uma filha mais do que a outra, mas acho que mãe é assim mesmo. A Raquel era destrambelhada e não sabia o que queria, mas mãe faz isso hoje em dia: se tem dois filhos, um certinho e outro meio desviado, ela presta atenção em quem está desviado."

Reprodução/Astros em Revistas Reprodução/Astros em Revistas

Dona Guiomar de "A Viagem" (1994)

"Uma vez recebi uma visita de uma mãe com uma criança, ela tinha trazido o menino para ver quem eu era porque ele morria de medo da Dona Guiomar. Conversei com ele, falei que era só uma fantasia da televisão, mas o menino tinha pavor! A mãe trouxe e mostrou que eu era uma atriz."

Cedoc/TV Globo Cedoc/TV Globo

Soraya de "Explode Coração" (1995)

"Tenho uma certa fascinação pelos ciganos, pelas histórias de vida deles, acho muito interessante. A Soraya era linda, uma personagem muito bacana. Gosto muito de tudo que eu faço, sou vaidosa."

Raquel Cunha/Globo Raquel Cunha/Globo

Triângulo amoroso do horário nobre

Após um período de férias, Laura Cardoso está se dedicando em tempo integral à preparação de Caetana, dona de um prostíbulo em “O Outro Lado do Paraíso”, com previsão de estreia para outubro.

Na primeira fase da trama, em uma participação especial, a atriz vai viver um triângulo amoroso com Lima Duarte (Josafá) e Fernanda Montenegro (Mercerdes). Com mais de 50 anos de carreira cada, é a primeira vez que os três vão atuar juntos na televisão.

Para viver Caetana, peruca rosa e outros acessórios de caracterização já foram provados pela atriz, mas ela faz mistério ao falar da personagem. 

Lima faz cara feia e tudo, mas como pessoa é um meninão, uma beleza de pessoa, bondoso, generoso. Fernanda é uma das grandes atrizes do Brasil, uma profissional séria, que quer ensinar e ajudar os colegas."

“Não vou falar muito porque é segredo. Tenho certeza que as pessoas vão amar. A pesquisa começou a partir de um bordel. Ainda não definimos se vou usar peruca rosa. A gente prova as roupas todas e com o tempo vai vendo o que se encaixa melhor na personagem.”

Amigos de longa data, Laura diz que o ator continua um “meninão”. “Lima é meu amigo há mais de 50 anos, é um dos melhores atores do Brasil. Já trabalhei muito com ele na época de TV Tupi, em São Paulo, e na Globo. Fizemos cinema também. Ele faz cara feia e tudo, mas como pessoa é um meninão, uma beleza de pessoa, bondoso, generoso.”

Com Fernanda Montenegro, é a primeira vez que atriz contracenará na televisão – as duas atuaram juntas no filme “O Outro Lado da Rua”, em 2004. Laura também se diz uma admiradora da colega. “Admiro muito a Fernanda. É uma das grandes atrizes do Brasil, uma profissional séria, que quer ensinar e ajudar os colegas.”

Saudades sim, mas sem saudosismo

Você nunca sabe o que você tem pra viver ainda. Viva, deixa a vida de dar e te tirar as coisas. E agradece a Deus por você ter vida e poder olhar, rir, falar.

Laura Cardoso

Reportagem: Felipe Abílio | Edição: Amauri Arrais | Imagens: Marcelo Ferraz | Produção: Amanda Cavalcanti | Edição: Raquel Arriola

Curtiu? Compartilhe.

Topo