Alô, Terezinhaaaaa!

Há 100 anos, nascia Abelardo Barbosa, o Chacrinha, que revolucionou a TV com seu estilo inconfundível

Giselle de Almeida Do UOL, no Rio
Divulgação Divulgação

“Na hora que entrava no palco, ele virava o Chacrinha, o ‘velho palhaço’. Fora dali, era uma pessoa tímida, que trabalhava 24 horas por dia”.

Pela descrição de Leleco Barbosa, filho e diretor do programa do pai por 30 anos, fica até difícil imaginar que José Abelardo Barbosa de Medeiros por pouco não seguiu um caminho bem diferente.

Chacrinha nasceu em 30 de setembro de 1917, em Surubim, Pernambuco, e cursou a Faculdade de Medicina, em Recife, onde teve seu primeiro contato com a rádio. Mas foi no Rio que surgiu seu apelido, quando era locutor na Rádio Clube Niterói.

“Foi destino”, diz Leleco.

“Ele gostava de tudo certinho. Se o compromisso era às 9h, não era para chegar às 9h05. Era muito rígido com horário, tinha as regras dele. Se a gente cumprisse, estava tudo lindo”, lembra a ex-chacrete Rita Cadillac, que levou para a vida o exemplo de profissionalismo.

Segundo Leleco, Chacrinha investia dinheiro do próprio bolso no programa. “Tive briga com ele por causa disso. Gastava para comprar brinde para dar no programa, até roupa de chacrete ele comprava. Ele só foi para o exterior uma vez, assim mesmo porque o Boni [então diretor-geral da Globo] deu as passagens."

  • 1917

    Chacrinha nasceu em 30 de setembro, em Surubim, Pernambuco, e cursou Medicina, em Recife, onde teve seu primeiro contato com rádio. Mas foi no Rio que surgiu seu apelido, quando era locutor na Rádio Clube Niterói

    Imagem: Divulgação/Leya
  • 1956

    A estreia na televisão acontece na extinta TV Tupi, onde comanda vários programas, incluindo o infantil "Rancho Alegre" e a "Discoteca do Chacrinha", atração que levaria depois para a TV Paulista, a TV Rio e a TV Excelsior

    Imagem: Folhapress
  • 1967

    Começa na Globo. Além da "Discoteca", às quartas, ele entra na programação de domingo com "A Hora da Buzina", depois rebatizada "Buzina do Chacrinha"

    Imagem: Folhapress
  • 1972

    O apresentador deixa a emissora carioca brigado, após uma queda de braço com o poderoso Boni. Antes do retorno, ele passa pela Bandeirantes, Tupi e Record

    Imagem: Reprodução/Memória Globo, Eduardo Knapp/Folhapress
  • 1982

    A volta para a Globo acontece em março e ele domina as tardes de sábado com seu "Cassino do Chacrinha", que ficou no ar até sua morte, em 1988

    Imagem: Fátima Pombo/Folhapress
Fátima Pombo/Folhapress Fátima Pombo/Folhapress

Nada se cria, tudo se copia

Mesmo quem não foi contemporâneo de Chacrinha é capaz de identificar sua voz anasalada, seus bordões e suas brincadeiras. Improviso era a marca registrada: se precisasse inverter a ordem dos convidados em cima da hora, ele invertia.

“Ele modernizou a televisão, trouxe a espontaneidade. Quando Fausto Silva sai do foco da câmera, brinca com as bailarinas, está sendo Chacrinha também”, afirma Denilson Monteiro, autor de “Chacrinha – A Biografia”.

“Ele era uma esponjinha, absorvia o que estava à sua volta. Aquele ‘realmente’ que ele dizia é do locutor de rádio Cesar Ladeira. A buzina, que ele dizia que tinha a ver com o caminhão do pai, vinha dos irmãos Marx”, enumera.

Até as famosas frases, ele pegava emprestado, entrega Leleco. “Se ele encontrasse com você na rua e gostasse, ele pegava aquilo e botava na televisão. Ele dava os apelidos das chacretes assim. Um conhecido comentou com ele que a Rita dançando parecia um Cadillac, como se fosse uma Ferrari hoje em dia. E ele batizou”, lembra.

Nelson Di Rago/TV Globo Nelson Di Rago/TV Globo

Eu vim para confundir, não para explicar

Se, hoje, aquela figura extravagante e excêntrica jogando bacalhau e farinha na plateia é quase uma unanimidade, na época enfrentou alguns obstáculos.

“Chacrinha era um espírito livre, solto, sem rédeas. Levava à loucura os diretores das emissoras. O Boni e o Walter Clark [executivo da Globo] queriam introduzir o padrão Globo de qualidade, buscavam uma coisa mais refinada. Queriam o Chacrinha um pouco mais comedido, mas não conseguiam. Eles tinham grandes embates”, revela o biógrafo do comunicador.

A presença de Cacilda de Assis, que incorporava Seu Sete da Lira, também não era bem vista – e chegou a desagradar representantes da Igreja Católica. “Imagina um terreiro de umbanda em pleno programa de televisão, com atabaques, ela fumando charuto, cuspindo no chão”, comenta o escritor.

Chacrinha também confundia a crítica: levou um tempo até ser aceito de verdade. Segundo Denilson Monteiro, o jogo começou a virar quando o sociólogo Edgar Morin o chamou de “papa da comunicação brasileira”.

Outro fator importante para destorcer os narizes mais refinados foi a presença da socialite carioca Beki Klabin no júri. “A partir daquele momento, parou aquela história de ‘estava passando pelo quarto da empregada e vi de relance o programa’. Ali se tornou uma coisa mais aceitável”, analisa Monteiro.

Cair nas graças da Tropicália – Chacrinha disse certa vez que ser chamado de “Velho Guerreiro” em “Aquele Abraço”, de Gilberto Gil, era uma consagração – e ter em seu palco nomes da MPB e do BRock também facilitou seu acesso à classe média. Mas sempre houve espaço em seus programas para nomes da música popular e romântica, como Nelson Ned, Cesar Sampaio e Teixeirinha.

Divulgação/TV Globo Divulgação/TV Globo

Quem não se comunica se trumbica

Quem trabalhou com Chacrinha diz que a razão de seu sucesso era simples: ele falava a língua do povo.

“Ele conseguia movimentar pessoas de todas as camadas, não tinha medo de dizer que era popular. Da mesma forma que trazia ao programa o Waldick Soriano, trazia Caetano Veloso. Tinha Chico Buarque e Agepê. Ele era um gênio por isso, tinha uma visão ampla do que erar ser um comunicador”, analisa João Kleber.

O bom humor também fazia diferença, segundo Rita Cadillac. “Ele tirava o sarro, coisa que o que o povo gosta. Ele era povão, não era classe A”, afirma.

No entanto, falar o que vinha à cabeça já teve um custo mais alto para Chacrinha, que convivia com censores na plateia do seu programa, fiscalizando desde as músicas executadas até as roupas das chacretes. Em julho de 1980, na TV Bandeirantes, chegou a ser preso.

“Ele mandou a censora para aquele lugar”, lembra Leleco.  “Foi fichado e passou uma noite toda na Polícia Federal. Quem livrou a barra dele depois foi a Consuelo Badra, que era muito influente em Brasília e fazia o júri de vez em quando. Ela era muito amiga da dona Dulce Figueiredo e do presidente Figueiredo e foi à Granja do Torto [onde eles viviam]. Daquele dia em diante, ninguém mais incomodou”, conta.

Outro ruído na comunicação ronda a carreira de Chacrinha: a cobrança de “jabá”, pagamento para um artista ou banda ser veiculado no rádio ou estar em um programa de TV. Segundo Monteiro, uma acusação que o comunicador não gostava nem um pouco de ouvir.

Divulgação/TV Globo Divulgação/TV Globo

O último programa

Já são quase trinta anos desde que o apresentador se despediu de seu lugar preferido: o palco. Vítima de um câncer de pulmão, Chacrinha morreu no dia 30 de junho de 1988, de infarto do miocárdio e insuficiência respiratória. Alguns dias depois, no dia 2 de julho, foi ao ar seu último “Cassino”, que ficou na memória de João Kleber.

“Quando nós entramos no palco, ele disse: ‘Concentre, que hoje é um programa muito importante’. Senti que ele estava num pique, estava a mil. Eu estava apresentando e ele entra, do nada, e começa a cantar: ‘Ai, minha mãe, minha Mãe Menininha...’, como se estivesse recebendo uma entidade. Ele fazia isso às vezes, mas dessa vez ficou parado um tempão. Sabe quando você sente uma energia diferente? Depois, no camarim, ele disse: ‘João, hoje nós arrebentamos’.”

Gostava muito dele e de ir ao seu programa. Era o momento de encontrar os amigos e conhecer talentos de outros segmentos. Era muito democrático. O dia em que ele e Russo tentaram me deixar só de cuecas eu tinha ido para cantar uma música, mas foram emendando várias e acabou virando uma cena icônica da irreverência dele

Leo Jaime

Leo Jaime, Ator e cantor que era atração do "Cassino"

Eu o conheci fora dos palcos também, tive um grande convívio com toda a família. E a lembrança mais marcante que tenho dele era sua integridade. Como todo bom nordestino, um homem determinado, amoroso, dedicado ao seu trabalho e à sua família. Ele era único, por seu caráter, sua personalidade e sua sensibilidade.

Gretchen

Gretchen, Cantora revelada no programa

Quando Chacrinha me anunciou: "Vamo rrreceber o novo rrrei da juventude romântica do Brasil, Gelleard!" Entrei tremendo, mas ele deu muita força. Tinha uma frase na música "Não Diga Nada" que dizia: "Deixa que eu te coma com os olhos" e Chacrinha falava: "A mulherada fica louca, é por isso que tem que gravar música de sacanagem!"

Gilliard

Gilliard, Cantor que foi febre nos anos 80

Roda, roda, roda e avisa

  • O síndico fugiu

    Tim Maia já deu o cano em Chacrinha e também já causou uma saia justa no ar. Ele não gostou de uma brincadeira do assistente de palco Russo, que o agarrou por trás, e abandonou o palco no meio da música. "Papai teve que falar que ele teve uma dor de barriga", lembra Leleco

    Imagem: Lícia Nara e Maria Portuguesa
  • Olimpíada do Chacrinha

    Os concursos inusitados provocavam situações complicadas. A busca pelo cachorro com mais pulgas infestou o estúdio. Na procura pelo mais bonito, um cão abocanhou outro. Já a apresentadora Angélica venceu a disputa da criança mais bela do Brasil, sem sobressaltos

    Imagem: Reprodução/Facebook
  • Quem quer bacalhau?

    O famoso bacalhau que Chacrinha distribuía surgiu como merchandising. "O dono das Casas da Banha, que era amigo dele, estava com estoque encalhado. Ele falou que ia dar um jeito", conta Monteiro. O Alô, Terezinha! era originalmente o anúncio da água sanitária Clarinha, já com a clássica entonação

    Imagem: Divulgação/TV Globo
  • Isentão na política

    Chacrinha dizia que "artista não tinha partido", mas subiu ao palanque para apoiar as Diretas. "Na década de 50, ele fez propaganda para Cristiano Machado, candidato a presidente. Mas, quando lhe perguntaram seu voto, respondeu: 'Só estou trabalhando, vou votar no Getúlio'", conta seu biógrafo

    Imagem: Wikimedia Commons
Divulgação/Caio Gallucci Divulgação/Caio Gallucci

Vai para o trono ou não vai?

As várias homenagens ao centenário de Chacrinha provam que o apresentador continua “no trono”. No último Carnaval, o Velho Guerreiro já inspirou tributos do Bloco da Preta Gil, da Banda da Barra e da Banda de Ipanema. No teatro, o espetáculo “Chacrinha – O Musical”, estrelado por Stepan Nercessian, que estreou em 2014, voltou esta semana aos palcos do Rio, e a trajetória do apresentador em breve ganha as telas do cinema.

"Interpretar o Chacrinha é o mesmo que ser livre, corajoso, afetuoso e brasileiro, além de popular. Quem me dera ter o poder de comunicação dele e, principalmente, a disposição para o trabalho que ele tinha", diz Nercessian.

"Quando pensei que tudo estava tranquilo, depois de interpretá-lo no teatro, apareceu essa incrível homenagem na TV. O desafio foi grande: revivê-lo onde ele sempre viveu. Todos que fizeram o programa são fãs dele e isso importa muito. Agora vou fazer o filme e no Carnaval vou desfilar na Grande Rio com o enredo ‘Vai Para o Trono ou não Vai?’", conta o ator.

A homenagem na televisão é o especial “Chacrinha, o Eterno Guerreiro”, produzido pela Globo e pelo canal Viva, que também reprisa o “Cassino”. Casa da Moeda e o Vasco da Gama, time do coração do pernambucano, também prestam suas homenagens. E a festa segue até 2018, quando o comunicador será o tema da Grande Rio na folia carioca.

“Ele e mamãe eram muito devotos, iam à missa todo domingo. Alguns meses depois que ele morreu, uma amiga deles, a Irmã Zoé, que tinha uma instituição de caridade no Rio, perguntou se mamãe podia ceder umas roupas para um leilão para angariar fundos. Ela deu quase todas as roupas. Quando ele foi embora, levou uma buzina. Hoje não tenho mais nenhuma”, conta o filho.

Segundo Monteiro, Chacrinha “conseguia definir muito bem o ser humano”. “Ele dizia: ‘Eu dou o que brasileiro quer, brasileiro gosta de coisa de graça. Eu vou lá e dou’.

Reportagem: Giselle de Almeida; Edição de texto: Tereza Novaes; Edição de vídeos: Marcio Seiro Komesu

Curtiu? Compartilhe.

Topo