A máquina artista

Inteligência artificial já pinta quadro, faz música e escreve livro: a criatividade humana está ameaçada?

João Paulo Vicente Colaboração para o UOL Tecnologia
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No final de outubro, algo inédito acontecerá no mundo das artes: um quadro produzido por uma inteligência artificial será vendido na tradicional casa de leilões Christie's. O valor da pintura, batizada "Portrait of Edmond de Belamy", deve ficar entre US$ 7 mil e US$ 10 mil.

Está longe de ser um fato isolado. Nos últimos anos, gigantes da tecnologia, pesquisadores, desenvolvedores e artista têm experimento com sistemas e algoritmos em busca de novas ferramentas na produção de obras de arte. Do lado tecnológico, há o desejo de criar um computador capaz de emular algo inerente ao ser humano, a criatividade. Do artístico, a necessidade de seguir em frente na investigação de novas linguagens e processos de trabalho.

Pinturas, filmes, música, literatura, moda e até o humor. Nenhuma expressão humana está imune às investidas das máquinas. Por enquanto, elas ainda têm ar de experimentos curiosos. Mas, emprestado o título de um livro clássico de Philip K. Dick, nunca custa perguntar: Androides sonham com obras de arte?

Pintura

  • Inspiração humana

    "Portrait of Edmond de Belamy" faz parte de uma série de onze quadros sobre a família fictícia Belamy. O coletivo francês Obvious, criador da IA, usou um método conhecido como GAN (Generative Adversarial Network), composto por dois algoritmos: um deles cria um quadro inspirado em quinze mil retratos feitos entre os séculos 14 e 20, e o outro compara esse quadro ao banco de dados para identificar discrepâncias. Quando o primeiro algoritmo consegue enganar o segundo, o resultado está aceitável. Todos os quadros do Obvious trazem como assinatura o algoritmo utilizado.

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  • Enganando humanos

    O Laboratório de Artes e Inteligência Artificial da Universidade Rutgers, nos EUA, desenvolveu um algoritmo pintor e conduziu testes cegos que comparavam suas telas com as de artistas de renome. A ideia ers identificar qual era obra de um humano e qual era de uma máquina - entre 59% e 75% dos quadros identificados como obras de humanos haviam sido feitos pelo algoritmo. Para chegar nesse resultado, o laboratório foi além do GAN e criou um método chamado CAN (Creative Adversarial Network). A ideia é que ele vá além de um banco de dados, escape das influências e desenvolva algo novo.

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Música

Diversas empresas têm investido em sistemas capazes de compor música sozinhos - ou de serem utilizadas durante alguma etapa do processo de gravação, como mixagem e masterização.

A cantora Taryn Southern (foto) lançará em breve I AM I, um álbum feito junto à plataforma de inteligência artificial Amper Music. Antes dela, em 2016, a música Daddy?s Car chamou atenção. Ela é resultado de tentativa de uma inteligência artificial chamada Flow Machines de fazer uma canção na linha dos Beatles.

Em ambos os casos, a composição das inteligências artificiais foi o ponto de partida para o trabalho de humanos, que refinaram posteriormente os trabalhos.

Ouça "Daddy's Car"

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Literatura

  • Game of Thrones

    No ano passado, um desenvolvedor chamado Zack Thoutt mostrou ao mundo como estava treinamento um algoritmo para escrever o próximo livro da série Game of Thrones. Já é possível ler os cincos primeiros capítulos em inglês.

  • Poesia

    Xiaolce, a assistente pessoal da Microsoft para o mercado chinês, converte imagens em poesia. Um livro reunindo diversos trabalhos do sistema foi lançado no país.

  • O Dia em que o Computador Escreve um Romance

    Um algoritmo desenvolvido na Future University Hakodate, no Japão, escreveu o conto "The Day a Computer Writes a Novel" (O Dia em que o Computador Escreve um Romance). A obra passou da primeira fase de seleção de um prêmio literário no país.

Eu me contorcia de alegria, o quê experimentava pela primeira vez, e continuava a escrever excitado. O dia que o computador escreveu uma novela. O computador, que passou a priorizar a busca por sua própria alegria, parou de trabalhar para os humanos.

Último parágrafo do conto "The Day a Computer Writes a Novel"

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Cinema

Edição e correção de cor são duas etapas da produção cinematográfica - e de vídeos em geral - onde já há pesquisas para automatizar o processo com o uso de inteligência artificial. No campo da criação, a área mais mais promissora são os roteiros.

Fazer algoritmos analisarem milhares de páginas de roteiros e criarem um análogo virou quase uma brincadeira - já foi feito tanto para "Jogos Mortais" quanto para a série "Scrubs" (aqui com a ajuda de humanos para melhorar as piadas).

O curta-metragem de ficção científica "Sunspring" (foto) é um caso à parte. Ele foi escrito por Benjamim, uma inteligência artificial de rede neural recorrente (Recurrent Neural Network) e dirigido por Oscar Sharp. É meio sem sentido, mas (talvez pelo trabalho da equipe humana), bastante interessante.

Assista a "Sunspring"

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Moda

No final de agosto, o artista visual Robbie Barret revelou no Twitter o quê um algoritmo de inteligência artificial cria após ser alimentado por milhares de croquis, propagandas e fotos de produtos da marca Balenciaga. As roupas desenhadas pela IA variam de "brusinhas pretas básicas" a peças semelhantes a alta costura.

Para além disso, algoritmos também têm sido utilizados para identificar tendências e sugerir looks mais adequados conforme o histórico de vestimentos e formato do corpo do humano alvo. Algo como um personal computer stylist

Humor

O quê as novas formigas disseram sobre o cachorro?Era um pirata.

Piada criada por uma IA da pesquisadora Janelle Shane

A piada (meio sem graça) acima foi criada por uma inteligência artificial e é resultado do trabalho da pesquisadora Janelle Shane. Janelle diz que treina redes neurais para escrever humor não-proposital enquanto tenta imitar bancos de dados humanos. ?Quer dizer, o meu propósito é o humor. As redes neurais só estão fazendo o seu melhor para entender o que se passa.? Ela publica as pérolas que encontra no aiweirdness (esquisitices de IA).

Mas o computador é o autor?

A máquina está sempre sendo programada por alguém. Toda resposta que ela der vai ser dentro de um banco de dados criado pelo artista. Por mais que faça associações que o próprio autor não tenha vislumbrado, até porquê é humanamente impossível fazer todas as conexões que uma máquina consegue, eu não acho que a máquina crie uma obra de arte

Paula Perissinotto, Cofundadora, organizadora e cocuradora do FILE, Festival Internacional de Linguagem Eletrônica

A ideia de que um computador possa se tornar senciente e adquira critério de decidibilidade está muito distante. Todas as decisões são feitas com bases em parâmetros já existentes ou análises. Arte não é só representação de algo, mas intencionalidade que não tá presente naquele momento mas que vai se projetar no trabalho. Um "Magritte" computacional está bastante distante

Luís Carlos Petry, Pesquisador e professor no programa de pós-graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital da PUC - São Paulo

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A brincadeira é antiga

A discussão sobre arte produzida por inteligência artificial ganhou vulto na última década, mas máquinas já faziam arte muito antes disso. Em meados do século 20, Desmond Paul Henry adaptou computadores utilizados em bombardeiros da segunda guerra para pintarem quadros, como os da foto acima. Desmond podia guiar o resultado, mas não tinha controle total sobre o funcionamento.

É possível fazer paralelos com períodos anteriores aos computadores: Na música, os musikalisches Würfelspiel (jogos de dado musicais) eram uma fórmula para composição de peças a partir do resultado de um jogar de dados. O exemplo mais famoso é um criado por Mozart em 1792, que podia gerar variações de valsas na casa dos quatrilhões.

Também vêm ao caso movimentos literários que brincavam com técnicas como cut-up, em que as palavras de um texto são recortadas e rearranjadas ao acaso. Assim como a maneira como o pintor Jackson Pollock deixava tinta pingar sobre grandes telas para construir seus quadros.

Ferramenta acessível

Sabe aquela tio que faz a piadinha do "Mas isso é arte? Isso aí até eu faço". Pois é. O uso de computadores na produção artística é um passo natural do longo processo a partir do renascentismo em que a arte aos poucos passou a prescindir do conhecimento técnico.

Antes, um pintor precisava saber pintar de um ponto de vista técnico para fazer uma pintura. Com o tempo, o fazer artístico se dissociou em dois lados, a abstração do processo e expressão do criador (o gênio, digamos). Esse processo não necessita ser tecnológico, mas quando o é, facilita a criação de uma obra de arte mesmo por alguém que não domine a técnica.

Em um certo sentido, um algoritmo é a representação formal de um processo

Phil Jones, Programador, músico e artista digital inglês baseado em Brasília

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Sinuca de jazz

Phil Jones conta que tinha um amigo músico nos anos 90 cuja projeto de PhD era criar um programa capaz de improvisar jazz. Para isso, ele fez um banco de dados com trechos de composições do saxofonista Charlie Parker. Em certo momento, esse cara entrou em crise: ao mesmo tempo que esperava o sucesso da empreitada, temia que isso diminuísse o valor que fazia de si próprio como músico de jazz.

Deu certo, as músicas criadas pelo algoritmo soavam bem e o amigo de Phil foi aprovado no PhD. Ele também superou a crise e percebeu que o projeto não era exatamente um músico.

O futuro é logo ali

Os humanos manipulam a máquina. Usam a inteligência, a criatividade, para produzir o que se propõe dentro do máximo de recursos que a máquina oferece

Paula Perissinotto

Apesar dos computadores conseguirem fazer 99% da técnica, nós vamos continuar a enfatizar a história de que o gênio humano é a fonte real da arte

Phil Jones

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