É grave, doutor?

O SUS pode salvar a sua vida, mas o próprio sistema tem sintoma de estar doente

O sistema universal e gratuito de saúde inclui mais do que os hospitais públicos cheios. Se você nasceu ou viveu no Brasil desde a década de 1990, é quase certo que já tenha usado alguns dos serviços custeados pela rede pública --mesmo se tiver planos de saúde. Campanhas de prevenção, como as da Aids ou do mosquito Aedes aegypti, vacinas, o Samu e até a vigilância sanitária são pagos com dinheiro público.

E assim nasceu o SUS

Igualdade de$igual

O princípio de equidade do SUS (Sistema Único de Saúde) prevê que todos tenham direito à saúde pública e gratuita conforme sua necessidade. Isso significa ter, por exemplo, prevenção para quem está sadio, remédios eficientes para os doentes e também a possibilidade de uma operação neurológica ou um tratamento de câncer de alta tecnologia para quem precisa.

A proposta do SUS é diferente da de um plano de saúde. O SUS é um sistema de garantias para a saúde pública e também a do indivíduo. A vigilância em saúde tem que estar articulada com atendimento para ser efetiva e eficiente Maria Angélica Borges dos Santos, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz

Na prática, o sistema que inclui 400 milhões de vacinas aplicadas anualmente e que gasta R$ 4,4 milhões para transplante de órgãos do bebê Sofia é o mesmo dos hospitais em que faltam médicos, leitos e remédios. Segundo o DataSUS, 707 mil pessoas entre 5 e 74 anos morreram só em 2014 por causas consideradas evitáveis --como gripe, tuberculose ou infecções intestinais.

O SUS paga por 95% dos transplantes de órgãos realizados no país --o Brasil é o segundo no mundo em número de transplantes de rins e fígado. No entanto, a vigilância sanitária --parte da rede pública-- não consegue controlar o mosquito Aedes aegypti, transmissor de zika, dengue, chikungunya e febre amarela. Mais de 1,2 milhão de brasileiros foram infectados por dengue só em 2016.

Para quem pesquisa gestão do sistema, a desigualdade é resultado do subfinanciamento histórico da rede pública somado a problemas de administração.

A saúde nunca foi tratada como prioritária na política de Estado brasileira. Nos 28 anos do SUS, o financiamento nunca deixou de ser discutido como um tema problemático Áquila Mendes, professor de economia da saúde da USP

O dinheiro, que sempre foi insuficiente, ainda sofre cortes recorrentes pela indefinição de quanto municípios, Estados e governo federal devem obrigatoriamente investir, afirma Mendes.

Com a crise financeira dos governos, o investimento em saúde volta a entrar em discussão. Colocar um teto no aumento de gastos em saúde é uma das propostas do governo Temer.

Passe no tribunal antes do hospital

Processar o Estado para garantir o direto à Saúde gratuita, quando este não é cumprido, é uma ação comum. Em 2015, segundo dados do governo federal, os gastos do SUS por decisões judiciais foram de R$ 1,013 bilhão. Em 2010, os gastos foram de R$ 139,6 milhões.

Cerca de 99% dos gastos com ações na Justiça em 2015 foram de processos que diziam respeito à compra de medicamentos. Na maioria dos casos, os juízes determinam que o Estado arque com as despesas referentes aos tratamentos e medicamentos que não são oferecidos pelo SUS.

Às vezes o paciente entra na justiça por um tratamento novo e caro com o objetivo de prolongar a vida por alguns meses, mas uma questão que envolve muita gente vai se desenvolver entre indivíduo e Estado Daniel Wang, professor de direitos humanos da Queen Mary University of London

Em 2010, decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) definiu que o cidadão deve ter amplo acesso à saúde, mesmo quando o medicamento ou o tratamento do qual precisa não é oferecido pelo SUS.

A Justiça também determina quem deve custear o tratamento: governo federal, Estado ou município. Por exemplo, o Estado de São Paulo gasta cerca de R$ 1 bilhão por ano para atender a demandas por medicamentos relacionadas a ações judiciais.

Desde 2010 a secretaria paulista foi alvo de 79.557 ações para entrega de medicamentos, materiais de nutrição, entre outros itens. Atualmente a pasta cumpre aproximadamente 47 mil condenações.

Segundo dados do governo estadual, do total de receitas atendidas via ação judicial, 69% foram emitidas por médicos da rede privada de saúde e algumas não estão ligadas a tratamentos médicos. Na lista do órgão constam pedidos de itens como achocolatados diet, antissépticos bucais e pilhas alcalinas. Mas muitos pedidos incluem internações, medicamentos em falta e tratamentos previstos pelo SUS.

Para a advogada Rosana Chiavassa, especialista em Direito de Saúde, alegar falta de recursos financeiros não é justificativa para negar direitos constitucionais.

Saúde é direito do povo e dever do Estado. Se a pessoa não tem dinheiro para comprar as pilhas para ligar um aparelho que a mantém viva, essa compra continua sendo dever do Estado Rosana Chiavassa, advogada

Segundo o professor de infectologia da USP (Universidade de São Paulo) e coordenador de Controle de Doenças da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, Marcos Boulos, quando os recursos de outros programas são desviados para ações judiciais mal avaliadas, a sociedade sofre o prejuízo.

"Com a falta de recursos, muitos programas deixaram de cumprir suas metas e certamente com consequências até para a vida de várias pessoas", afirma Boulos.

SUS só para pobres?

Como o dinheiro não é suficiente, entra em discussão se deveríamos repensar o sistema. O ministro da Saúde, Ricardo Barros, chegou a falar em uma de suas primeiras entrevistas no cargo sobre a possibilidade de que planos de saúde complementassem o sistema. Há ainda no Congresso, um projeto de Emenda Complementar que obrigaria todas as empresas a contratarem planos de saúde para seus funcionários. 

Se a gente quiser atender todo mundo no nível ideal certamente não teremos dinheiro. O dilema é se fazemos o máximo para poucos, um SUS para poucos com o dinheiro que temos, ou fazemos o mínimo para todos. Alberto Kanamura, diretor de responsabilidade social do hospital Albert Einstein

Na hipótese de restrição, uma possibilidade seria determinar quais os serviços cobertos pelo sistema de saúde pública: prevenção, atendimento ambulatorial, emergências etc., ou ainda determinar quais doenças o SUS trataria. 

Outra maneira seria circunscrever o uso da rede pública à população sem recursos para contratar um plano de saúde. Ou ainda adotar um sistema em que todos pagam parte dos gastos em seu tratamento. A pesquisadora da Fiocruz Maria Angélica Borges dos Santos é contrária a redução de direitos.

Como se define quem vai morrer ou quem não? Maria Angélica Borges dos Santos, professora da Escola Nacional de Saúde Pública

Além disso, Maria Angélica aponta que mudanças no modelo podem ter reflexos imprevisíveis para o número de mortes. O copagamento de tratamentos médicos, por exemplo, inibe as pessoas de procurarem os serviços de saúde "por medo do que podem ter que vir a gastar", afirma.

Já o diretor do Instituto de Responsabilidade Social do Hospital Sírio-Libanês, Antônio Carlos Onofre de Lira, lembra que, à medida que as pessoas vivem mais, outras doenças passam a ser prioridade. "Melhorias das condições de vida também acabam levando para outros gastos, como com doenças crônicas e degenerativas."

Lucas da Rocha Lima

A experiência de quem usou

Lucas da Rocha Lima Lucas da Rocha Lima

Seis cirurgias e UBS

Andrea de Fátima Silva, 63, sofre de epilepsia desde criança. Em 2004 teve uma crise, caiu no chão e quebrou o colo do fêmur. Fez um raio-X no pronto-socorro particular e levou à emergência do Instituto de Ortopedia e Traumologia do Hospital das Clínicas, em São Paulo. Fez seis cirurgias desde então, todas custeadas pelo SUS.

O SUS realizou 96,3 milhões de cirurgias em 2015. Até abril de 2016 foram 24,7 milhões. Só em 2016 o SUS gastou R$ 2,4 milhões em cirurgias.

Hoje, Andrea tem dificuldade de se consultar com um neurologista por não ser epilética convulsiva. Andrea consegue tratamento apenas nas UBS de sua região, onde a especialidade é rara.

Seu marido, o português Antonio Neves, também faz consultas e exames nas UBS. Neves é favor do serviço público de saúde no país, mas reconhece que o sistema apresenta problemas e limitações.

Lucas da Rocha Lima Lucas da Rocha Lima

Consultas e exames

Sônia Andrade, 50, passou mais de um ano para conseguir realizar consultas e exames ginecológicos de rotina. Em janeiro de 2015, um clínico geral pediu exames e encaminhou para o ginecologista. O ginecologista que a atendeu se negou a passar os pedidos de exame alegando não estar com o carimbo. Passou em mais quatro médicos para conseguir as guias. Marcou os exames, mas sempre havia um problema com o médico que os realizaria.

Cansada de tentar pela rede pública, Sônia foi a um laboratório particular. Os exames estavam normais, mas ela ainda sofria com climatério da menopausa. Voltou ao posto de saúde e encontrou uma agente comunitária que marcou um novo clínico. Fez novos exames e foi encaminhada a uma nova ginecologista que a mandou procurar um médico homeopata. Sônia recebeu receita de fórmulas homeopáticas que deram resultado.

Lucas da Rocha Lima Lucas da Rocha Lima

UTI, biópsia e parto

Aos 15 anos, Daniela Portal Ignacio apresentou fortes cólicas e foi levada ao PS, onde descobriu que estava com uma mancha no fígado. Quando foi fazer uma tomografia computadorizada com contraste teve uma reação alérgica e sofreu um choque anafilático. Foi para a UTI e contraiu pneumonia. Com os agravantes, os exames não podiam ser concluídos, mas os médicos conseguiram captar uma massa densa no lobo esquerdo do fígado. A equipe optou por fazer a remoção para biópsia e removeu o tumor de 4 cm de diâmetro. Médicos e hospitais foram muito atenciosos e ela se tratou com eles até os 21 anos.

Daniela também fez o pré-natal de sua primeira filha pelo SUS. Por causa do histórico da cirurgia de fígado, ela e o médico optaram por uma cesárea. Houve uma pequena complicação quando a anestesia perdeu o efeito e ainda estavam fazendo limpeza. Tiveram que sedá-la novamente. Fora isso, tudo ocorreu normalmente.

Lucas da Rocha Lima

Modelos de outros países

Os sistemas de saúde como conhecemos hoje começaram a se estabelecer durante ou após a Segunda Guerra Mundial. Em alguns casos, o governo financia diretamente os hospitais e profissionais, enquanto em outros, quem paga são organizações com ou sem fins lucrativos, financiadas indiretamente pelo Estado.

O "livre mercado"

Saúde é algo muito caro. Mas em nenhum lugar do mundo é tão caro como nos EUA.  Esse cenário tem muito a ver com a maneira como o sistema de saúde "evoluiu" no país. "Não é um sistema que foi planejado, e sim um conjunto de bandaids que foram colados ao longo dos anos", ilustra o professor de direito e de gestão em saúde Robert Field, da Universidade de Drexel, na Filadélfia.

O primeiro curativo do sistema, ele conta, foi colado durante a Segunda Guerra, quando o governo permitiu que empresas oferecessem cobertura médica familiar para atrair trabalhadores numa época em que os salários estavam congelados.

Em 1960, com o avanço e encarecimento da medicina, a situação de quem estava fora do mercado de trabalho tornou-se crítica e o governo lançou o Medicare, destinado a pessoas com 65 anos ou mais e empregados mais jovens afastados por problemas de saúde ou deficiência, bem como o Medicaid, para os comprovadamente pobres. Boa parte dos serviços é prestada por empresas privadas pagas pelo governo, mas não tudo.

Quer dizer que existe saúde pública nos EUA? Sim, mas não sem "pegadinhas". O Medicaid é administrado, em parte, pelos Estados, e nem todos eles têm condições de expandi-lo, deixando muita gente sem assistência. Também vale lembrar que o Medicare não é inteiramente gratuito.

Apesar desses programas, quase 50 milhões de americanos não contavam com seguro saúde até o Obamacare ou Lei de Acesso à Saúde (Affordable Care Act), em 2010.

Foco no médico de família

O Sistema Nacional de Saúde do REINO UNIDO (NHS, na sigla em inglês) segue o princípio de que a saúde deve ser acessível a todos, ricos e pobres. Com exceção dos serviços ópticos e odontológicos e dos medicamentos, que envolvem algum custo, tudo é de graça.

O segredo do sucesso dos britânicos é o investimento na atenção primária. Diferente de outros países, que priorizam os hospitais em suas políticas públicas, o Reino Unido seguiu o preceito comprovado por algumas pesquisas de que os médicos generalistas, ou de família, devem ser o eixo da atenção à saúde.

Quando o primeiro atendimento é eficiente, as doenças mais comuns e de manejo simples são logo solucionadas, diminuindo o gargalo nas clínicas de especialidades e nos setores de pronto-atendimento dos hospitais. Além disso, um bom médico de família, que tem acesso aos antecedentes do paciente, ainda consegue intervir em prevenção, evitando doenças futuras.

Existem planos de saúde privados no Reino Unido, em grande parte oferecidos como benefício por empregadores, mas eles abrangem uma parcela pequena da população. Como em outros países, os pacientes particulares podem escolher os especialistas que quiserem e, assim, evitar a espera típica do sistema público em situações de menor urgência. Os usuários do NHS aguardam, em média, oito semanas para receber tratamentos que exigem admissão em hospital, e quatro semanas para tratamentos ambulatoriais. Esperas mais longas, porém, não são raras.

Sistema público, mas pago

Nos anos de 1950, o CHILE criou um modelo baseado no Sistema Nacional de Saúde do Reino Unido (NHS) e era considerado uma referência para os colegas da América Latina. Nos anos de 1980, porém, o governo militar de Augusto Pinochet passou a permitir que empregadores oferecessem planos de saúde como benefício aos funcionários, o que turbinou o setor privado. Em paralelo, todos os trabalhadores passaram a pagar, obrigatoriamente, 7% de seus salários para financiar o recém-criado Fonasa (Fundo Nacional de Saúde).

Com o retorno à democracia em 1989, a saúde pública voltou a ganhar incrementos, especialmente os hospitais, e aumentou a pressão sobre as empresas privadas para oferecerem serviços de mais qualidade. Mesmo com os 7% de imposto, porém, a conta não fechou e os chilenos passaram a pagar para usar o sistema público.

Apenas indigentes ou a parcela da população que recebe aproximadamente um salário mínimo são atendidos de graça pelo Fonasa. Todos têm acesso gratuito às clínicas de atenção primária.

Quem não quer usar o Fonasa e tem condições opta pelo sistema privado, chamado de Isapre (Instituições de Saúde Provisional).

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