Sem médicos

Rede pública de saúde improvisa, faz cessões e oferece até extras para atrair médicos pelo país

Carlos Madeiro e Fernando Cymbaluk Colaboração para o UOL, em Maceió, do UOL, em São Paulo
DiVasca/Arte UOL

As novas vagas em faculdades, a vinda de estrangeiros e a contratação de profissionais brasileiros pelo programa Mais Médicos ainda estão longe de resolver um problema que assombra o sistema de saúde do país há décadas: a falta de médicos no serviço público.

Muitas vezes nem mesmo os concursos preenchem vagas ofertadas. Para completarem seus quadros, prefeituras e Estados recorrem a "jeitinhos", fazem cessões de horários e até contratam para mais de um cargo. O problema é mais grave nas regiões Norte e Nordeste e nas periferias das metrópoles.

Segundo o CFM (Conselho Federal de Medicina), existem hoje no Brasil 443 mil com registros ativos de médicos. Cruzando com dados demográficos do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), percebe-se que o país tem hoje um médico para 468 habitantes. Mas os números têm desigualdades regionais gritantes.

No Distrito Federal, há um médico para cada 254 habitantes, média muito maior que a nacional. Já na outra ponta, no Maranhão, o número é de um profissional para cada 1.374 moradores.

 

Desigualdade na distribuição de médicos pelo país

Giovanni Bello/Folhapress

Redução da jornada para atrair

Aila Freitas, secretária-geral do Conselho dos Secretários de Saúde do Maranhão, conta que a dificuldade de contratar profissionais é o maior desafio dos gestores do Estado com menos médicos no país.

Em todo canto continua sendo uma dificuldade, principalmente nos municípios de fronteira."

No município em que é gestora, Alto Parnaíba (a 1.030 km de São Luís), das cinco equipes do PSF (Programa de Saúde da Família) autorizadas para atuar, apenas quatro estão habilitadas. "Não temos essa quinta justamente por falta de médico", diz, citando que seu município não está entre as piores condições em relação à região.

Outro item usado em algumas cidades do Nordeste é o acordo informal para que o médico do PSF trabalhe menos que as 40 horas acertadas, já que os profissionais se recusam a aceitar os valores pagos para a jornada.

"Eu pago R$ 3 mil a um enfermeiro, e ele vem feliz, cumpre a jornada. Pago R$ 9 mil ao médico, e ele diz que é pouco, que não fica as 40 horas. Sempre foi difícil negociar, sempre a gente tem que ceder para não perder o profissional e ter crítica da população", disse um gestor, sob anonimato.

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Grandes centros também sofrem

Além do problema nas pequenas, há problemas também nas grandes cidades. No Rio de Janeiro, por exemplo, a carência existe nas unidades municipais.

"Já foram realizados três concursos públicos com vagas para médicos. Além da dificuldade nas inscrições, os médicos se ausentam mais, passam menos e, mesmo aprovados, não aparecem para fechar o contrato", informou a RioSaúde, empresa que gere parte da rede pública municipal.

A dificuldade pode ser vista em números. No concurso de edital lançado em abril de 2015, dos 1.116 médicos inscritos, só 465 fizeram as provas e desses, apenas 13 dos 51 convocados celebraram contrato. Em março de 2016, um novo edital ofertou 287 vagas, mas apenas 13 foram contratados.

A solução, então, é contratar autônomos e fazer acordos temporários. Em planilha enviada ao Tribunal de Contas, a RioSaúde informou que, em outubro de 2016, tinha apenas 38 concursados, 175 com contratos de tempo determinado e 188 autônomos. Ao todo eram 399 profissionais.

O salário de um concursado é de R$ 4.071 (já contando adicional de insalubridade) por uma jornada de 12 horas semanais. O valor é o mesmo dos contratos por tempo determinado. Já os plantonistas recebem R$ 1.100 por plantão, exceto fim de semana e feriados quando os valores sobem para R$ 1.400.

Apesar da pouca diferença nos valores, a vantagem para o médico é a liberdade de poder escolher as datas em que trabalha, sem implicações.

Em cidades pequenas, a oferta de plantões é uma das opções para atrair profissionais, conta Izabelle Pereira, secretária de Saúde de Teotonio Vilela (AL) e presidente do Conselho de Secretários Municipais de Saúde de Alagoas.

"É um atrativo", admite Pereira. O plantão de 24 horas na cidade pode levar a uma remuneração de mais de R$ 1.800.

Porém, ela diz que pretende reduzir a prática na sua rede para dar mais qualidade ao atendimento. "Imagina trabalhar oito horas e ainda fazer plantão e estar na unidade no outro dia de 8h da manhã", completa.

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Médicos querem carreira federal

Para o presidente do CFM, Carlos Vital, o país não tem falta de médicos. “O que precisamos é uma melhor distribuição. Temos uma concentração de profissionais nas metrópoles nas regiões Sul e Sudeste, com uma diferença significativa no Norte e Nordeste", diz, citando a criação de uma carreira federal como forma de desconcentrar os profissionais.

Somente a distribuição de médicos resolveria o problema? Não é esse o entendimento de gestores ouvidos pelo UOL e do MPF (Ministério Público Federal), que querem mais médicos formados.

“Existe uma distorção muito evidente no Brasil, de uma formação insuficiente de médicos. A origem de tudo é essa: claramente formamos menos médicos do que deveríamos", afirma o procurador da República Edilson Vitorelli, coordenador da Relatoria Saúde do MPF.

Em meio ao debate de concentração ou falta, o serviço público é quem sofre com a carência de profissionais. O problema é mais grave em regiões do país menos habitadas.

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Mais Médicos tem dificuldade para trocar médicos estrangeiros

Criado em 2013 para resolver emergencialmente o problema da falta de médicos, o programa Mais Médicos sofreu desde o início grande rejeição da classe médica, que fez protestos em todo o país. Logo após chegar ao Ministério da Saúde, Ricardo Barros (PP) assumiu o compromisso de reduzir o número de estrangeiros no programa. 

Para isso, foram feitas mudanças com o objetivo de deixar o Mais Médicos mais atrativo. O reajuste da bolsa paga aos médicos tornou-se anual. O aumento neste ano foi de 9%, alcançando R$ 11.520. Também foram reajustados os auxílios moradia e alimentação de profissionais alocados em distritos indígenas (passando de R$ 2.500 mensais para R$ 2.750). 

O resultado foi um crescimento de 44,2% da presença de brasileiros no programa em menos de um ano. A meta é colocar, nos próximos três anos, 4.000 médicos brasileiros em vagas ocupadas por estrangeiros. Mas a tarefa não tem sido tão fácil. 

No último edital aberto, lançado em abril deste ano, foram oferecidas 2.394 vagas exclusivamente para médicos brasileiros com registro no país. Dessas, sobraram 1.410 vagas, mais da metade (58,9%), que foram então oferecidas para 1.985 médicos brasileiros com diplomas obtidos fora do país que tiveram a inscrição validada.

No fim do processo, foram recepcionados 1.375 profissionais brasileiros formados no exterior e 610 vagas ficaram sem serem preenchidas

Dependência de estrangeiros no Mais Médicos

Fonte: Ministério da Saúde

Sem brasileiros, ministério fica com cubanos

Estrangeiros são maioria no Mais Médicos nos Estados do Norte

Os estrangeiros ainda são necessários, sobretudo, na região Norte. Enquanto no país, o número de brasileiros quase se equipara ao número de estrangeiros, o Amapá possui 13 vezes mais estrangeiros e cubanos do que brasileiros. São 80 estrangeiros, e apenas seis brasileiros.

Roraima vem em segundo lugar com a maior proporção de estrangeiros (4,2 vezes mais), Tocantins em terceiro (4,1 vezes mais) e Amazonas em quarto (4 vezes mais). Através do convênio firmado com a Opas, o programa chega ao número de 18.240 médicos atuando em mais de 4.000 municípios e 34 distritos indígenas, que garantem o atendimento de cerca de 63 milhões de pessoas

Mais da metade dos médicos (51,26%) é composta por estrangeiros, sendo a grande maioria (47,1%) da cooperação com a Opas, que trouxe médicos principalmente de Cuba. O acordo foi renovado em setembro de 2016 por mais três anos. Segundo o Ministério da Saúde, os médicos cooperados já representaram 80% do total de médicos do programa.

A pasta quer substituir esses médicos gradualmente, apostando para isso num “amadurecimento” do programa. Mas diz que, enquanto houver vagas, será mantida a participação dos médicos cubanos e outros estrangeiros, que são bem avaliados. 

Um estudo realizado pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) mostra que 95% dos atendidos por médicos do Mais Médicos afirmaram estar satisfeitos. Segundo o Ministério da Saúde, entre 227 gestores, 91% avaliam que o programa melhorou o serviço de saúde.

Alberto Wu/Folhapress Alberto Wu/Folhapress

Gestão problemática

Para a classe médica, a questão da produtividade é tratada como mais ampla que a do cumprimento de carga horária ou má distribuição de médicos.

Apresentados aos dados, o presidente da Federação Médica Brasileira, Waldir Cardoso, disse que isso ocorre por problema de gestão.

"Se os médicos estão contratados e têm uma jornada, nada justifica que a gestão não viabilize pacientes a serem atendidos. Afinal, temos uma imensa demanda reprimida", diz. "A jornada pactuada em contrato é uma obrigação de qualquer profissional, e o médico não é diferente disso", lembra.

Para ele, o grande problema está na desvalorização profissional e na falta de uma carreira médica. "O que acontece é que não há falta de promotores, juízes, militares nas fronteiras, mas não tem médico por quê? Ora, porque não há estabilidade no emprego. Você não tem uma carreira que garanta perspectiva de futuro. Além disso, o profissional acerta com a prefeitura e não sabe se vai receber. O calote nas prefeituras de Norte e Nordeste é regra, não é exceção", diz.

A carreira defendida pelas entidades médicas prevê que o profissional seja contratado pela União, que seria o responsável por enviar profissionais aos locais. Hoje, os médicos reclamam que muitas prefeituras convocam médicos sem assinar contrato ou oferecer qualquer garantia trabalhista.

Para Carlos Vital, usar o discurso de descompromisso do médico com o serviço público seria uma desculpa típica de gestores para encobrir os problemas da rede de saúde, como o baixo financiamento e a falta de estrutura das unidades.

O médico vai assumir as responsabilidades do Estado? É tendencioso fazer esse debate de maneira isolada, você tira a atenção das causas do problema."

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