Seca no São Francisco

Com menor vazão desde 1940, peixes somem e surgem ilhas no 'Velho Chico'

Aliny Gama e Carlos Madeiro Colaboração para o UOL, em Traipu (AL) e Maceió
Beto Macário/UOL

O verde do pasto pela chuva recente no sertão alagoano pode até deixar transparecer que o principal rio do Nordeste, o São Francisco, está repleto de vitalidade. Mas as aparências enganam, e o maior rio inteiramente nacional sofre com a maior seca em pelo menos 70 anos e convive com um cenário de assustar os sertanejos: a formação de ilhas ao longo do rio e a falta de peixes para pescar.

Em Traipu (187 km de Maceió), no baixo São Francisco, é fácil encontrar ilhas no meio do rio. O problema ocorre porque a vazão do rio é controlada e definida de acordo com o reservatório de Sobradinho, na Bahia.

UOL visitou o local na semana passada e ouviu vários relatos de moradores que dizem que o rio mudou, os bancos de areia e até mesmo ilhas dificultam a navegação e os peixes estão sumindo.

Beto Macário/UOL Beto Macário/UOL

A vazão de Sobradinho para o restante do rio deveria ser de no mínimo 1.300 m³/s. Mas com a falta de chuvas, desde 2013 a ANA (Agência Nacional das Águas) vem aplicando cortes nessa vazão, e o fluxo hoje está no mínimo (550 m³/s --o menor já operado). Outro reservatório, de Xingó (entre Alagoas e Sergipe) também está operando com a mesma vazão.

Como medida extrema, desde junho foi adotado a proibição de retirada de água para irrigação às quartas-feiras.

Em agosto, a vazão afluente (que chega) ao reservatório de Sobradinho está em 381m³/s em média, enquanto a vazão liberada média está em 615m³/s. Isso quer dizer que, por segundo, a barragem perdeu 235 m³ e foi baixando o nível.

“Se não fosse feito nada, não reduzíssemos a vazão, Sobradinho teria secado em novembro de 2014. Chegamos no limite disso”, afirma o superintendente adjunto de fiscalização da ANA, Alan Vaz Lopes. Nessa quarta (23), o reservatório de Sobradinho estava com 8,55% de sua capacidade.

Chuvas abaixo da média desde 2011

As reduções são necessárias porque o volume de chuva na região está abaixo do esperado desde 2011. A próxima esperança chega com o período de chuvas em Sobradinho a partir de dezembro.

“A impressão que temos é que o reservatório chegue até lá no volume morto. Isso nunca ocorreu, e quando chegar não terá mais condição [de gerar eletricidade]”, explica.

“Desde 2013 estamos fazendo reuniões semanais, como se fosse comitê de crise sobre operação do sistema”, completa.

Mesmo assim, o superintendente diz que a chegada ao volume morto não quer dizer que o reservatório secou. “Ainda não se cogita secar completamente. Quando chegar no volume morto ainda tem volume estocado. A gente imagina que uma parte poderia ser usada, são 5 a 7 bilhões de m³. Chegado a um determinado valor pararia de usar para que não seque”, diz.

Beto Macário/UOL Beto Macário/UOL

Ilhas no Baixo São Francisco

As medidas da ANA tentam garantir a prioridade do abastecimento humano e de animais no rio. O rio São Francisco é responsável pelo abastecimento de 97 cidades no Nordeste, com um total de 2,9 milhões de habitantes. 

A série histórica do São Francisco, considerando somente as estações fluviométricas da ANA na calha do rio, a maioria foi instalada até a década de 1940, de acordo com nossa área técnica responsável.

No baixo São Francisco, a população sente de perto os problemas. 

Não tem mais peixe grande no rio. O assoreamento prejudica os animais e o turismo. Aqui no restaurante mesmo só estamos tirando a despesa. Sem contar que, nessas ilhas que se formaram, o pessoal leva gado para comer o pasto que se criou. Até semana passada tinha umas 20 cabeças de gado nessa ilha."

Maria do Carmo de Freitas Brito, 68, dona de restaurante

O barqueiro Cláudio Denis Menezes, 36, faz a travessia constante do São Francisco e relata que já perdeu as contas de quantas vezes o barco encalhou nos bancos de areia. Ele relata que tem prejuízo toda vez que o barco "cola" na areia porque o motor quebra e ele tem de fazer o reparo.

"A viagem para o lado de Sergipe custa o preço de R$ 3, mas poderia ser mais barata se o barco não quebrasse tanto. Além disso, um percusso de 10 minutos eu gasto o triplo desviando das ilhas e barrancos. A gente deixa de pegar cliente porque a viagem é mais demorada", conta.

Beto Macário/UOL Beto Macário/UOL

Nem mesmo morar na beira do rio garante água. A professora Rosimere Limeira, 51, lembra os dias de abundância e conta que, na casa dela, falta água todos os dias. Ela conta que nos períodos de estiagem em cidades do interior de Alagoas é comum chegar embarcações com gado para que os animais fiquem no pasto das ilhas.

“Me sinto impotente, angustiada, vendo o São Francisco morrer porque só o poder público pode fazer alguma coisa. O rio está virando uma lagoa de areia. Meu medo é de chegar um dia e vê aqui tudo secar. De que vamos viver?”, lamenta.

 

Beto Macário/UOL Beto Macário/UOL

Barco fora d'água

José Rodrigues de Oliveira Júnior, 35, tem um barco de competição a vela e lamenta o surgimento de ilhas e bancos de areia no leito do rio São Francisco. O barco dele tem 60 anos, mede 11 metros e foi herdado do pai. "Nessas condições do rio não coloco ele na água porque é muito arriscado quebrar. Já perdi competições porque surgiu um banco de areia no meio da rota e ficamos colados nele", conta o autônomo.

Beto Macário/UOL Beto Macário/UOL

Sem serviço

Batista dos Santos, 27, trabalha construindo e reformando barcos em Traipu desde os nove. Ele conta que o movimento caiu depois que o nível do rio baixou, e os barqueiros não estão mais usando barcos. "Agora é muito difícil chegar uma encomenda de barco e os que se quebram os donos não têm dinheiro para fazer o reparo. Vivi daqui do rio e agora não consigo imaginar o que vai ser desse rio. Cada dia fica com menos água e mais terra", diz.

Beto Macário/UOL Beto Macário/UOL

Ação do homem piora situação

O ambientalista e integrante do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco Antônio Jackson Lima conta que além da seca afetar, a ação do homem também está matando o rio aos poucos.

Para ele, as construções das barragens ao longo do rio iniciaram o processo de assoreamento do rio por reter água que deveria correr naturalmente no leito do São Francisco.

“Não é desperdício a água do rio São Francisco desaguar no mar porque faz parte de um processo natural. Se essa água deixa de ir para o mar, as chuvas diminuem e por consequência a água do rio se torna escassa”, explica.

O Rio São Francisco possui 168 afluentes, e metade deles mantém o fluxo do rio durante o ano. “Para se ter ideia de como o rio é degradado, 506 municípios jogam esgoto no rio e apenas o de Lagoa de Prata (MG) trata esse esgoto. Os demais despejam detritos e ninguém faz uma ação para que esse esgoto seja tratado. Aqui recebemos esgoto de Minas Gerais, de onde começa o rio”, explica Lima.

Curtiu? Compartilhe.

Topo