Risco nas alturas

Brasileiros desafiam a lei e se arriscam no topo de prédios em busca da imagem perfeita

Luis Kawaguti Do UOL, em São Paulo

A prática de subir em telhados ou coberturas de prédios altos e lá tirar fotos ou gravar vídeos em posições quase sempre arriscadas se espalhou pelo mundo por meio das redes sociais. Atualmente, ela vem ganhando adeptos também no Brasil.

A atividade é conhecida no exterior como rooftopping (parte de cima do telhado, em tradução livre) ou roof culture (cultura do telhado). Na maioria dos casos, os praticantes sobem no alto dos edifícios sem autorização e sem usar equipamentos de segurança. As imagens produzidas no local são depois publicadas na internet.

Mas a prática é arriscada e em alguns casos pode levar à morte. No fim de 2017, a notícia da queda fatal do “rooftopper” chinês Wu Yongning de um prédio de 62 andares na cidade de Changsha chocou o público em diversos países. O acidente foi registrado em vídeo.

Críticos dizem que a atividade é perigosa demais e sem sentido cultural, esportivo ou artístico. Dependendo das circunstâncias, ela pode também configurar crime de invasão de domicílio, previsto no código penal. Segundo analistas ouvidos pelo UOL, em tese, o praticante pode ser punido com até dois anos prisão após um processo judicial. Mas na prática, se ele não tiver antecedentes criminais e não danificar a propriedade, penas alternativas podem ser adotadas (como o pagamento de cestas básicas).

Por outro lado, os adeptos da atividade afirmam que há formas seguras de praticar a chamada “cultura do telhado”. Segundo eles, a “roof culture” é uma forma diferente de explorar e se apropriar do espaço urbano. Ela acontece sem danificar propriedades públicas ou privadas e pode ter várias motivações – desde a emoção de tirar uma foto na cobertura de um prédio a praticar parkour nas alturas (esporte de origem francesa que consiste em vencer obstáculos do terreno usando habilidades do próprio corpo).

O vídeo abaixo contém imagens de grupos e de indivíduos envolvidos na atividade. As cenas foram gravadas por eles mesmos antes da realização desta reportagem. Algumas cenas podem ser consideradas perturbadoras. 

Mas o que motiva os praticantes?

Os motivos e as “tribos” urbanas envolvidas com a “cultura do telhado” são bastante variados.

Rodrigo Oliveira, 23, ou “Rod”, como ele prefere ser chamado, gosta da altura e de produzir fotografias e vídeos. “Eu comecei nas trilhas, muitas delas tinham montanhismo e a minha paixão por altura foi aumentando aí”, diz.

Ele afirma que começou a subir em prédios depois de assistir a vídeos na internet sobre o tema feitos em outros países – especialmente a Rússia (há praticantes em diversas nações, como China, Reino Unido, Austrália e Estados Unidos). “Fiquei maravilhado”, lembra.

Segundo ele, o processo começa na escolha do prédio. Analista de sistemas de profissão, Oliveira busca vulnerabilidades na segurança dos prédios para tentar chegar aos telhados mais altos de São Paulo.

Ele entra vestido com roupas normais (não com vestes esportivas ou caracterizado como um escalador) para passar desapercebido. Já chegou até a se passar por prestador de serviços para chegar a uma cobertura.

Quando chega lá em cima, tira fotografias e grava vídeos. O material é depois editado e publicado nas redes sociais. Ele tem cerca de 25 mil seguidores

Muitos “rooftoppers” estrangeiros chegam a se pendurar da parede externa dos prédios, sustentando-se apenas pelos braços. Oliveira diz que não faz isso. Ele se sente seguro para eventualmente andar ou se sentar em parapeitos, mas sem colocar o corpo todo para o lado de fora.

“As pessoas que não acham isso legal... é muito subjetivo, é muito subjetivo o que as pessoas pensam, os valores da pessoa. Eu posso gostar e amar uma coisa, incondicionalmente, que outra pessoa não ama. Vai da cabeça de cada um”.

“É, adrenalina é muito bom, a adrenalina de estar andando no parapeito de um prédio é uma coisa similar com [o efeito de] uma droga”.

Parkour explorador

Outro perfil de praticantes de “rooftopping” é o dos adeptos do parkour, uma atividade urbana que surgiu na década de 1980 inspirada nas pistas de transposição de obstáculos do treinamento militar. Em países como o Reino Unido, ele já é considerado um esporte oficial.

Seus praticantes aprendem a pular, se equilibrar no alto de muros e dar cambalhotas sem nenhum tipo de equipamento.

Mas a face mais conhecida do parkour é a da prática dessas manobras em solo, usando obstáculos como escadas, muros e mobiliário urbano.

“Não é todo mundo que faz parkour que faz o rooftopping. A gente como um grupo, como um coletivo, a gente se identificou com essa prática que remete à gênese do parkour, ao comecinho, da coisa de fazer o parkour na altura”, conta Felipe Guimarães, instrutor e membro do grupo de parkour Alma Forte.

“A gente se identificou com essa prática e desenvolve ela em São Paulo. Então é como se a cidade fosse um playground”, afirma.

Segundo ele, os exercícios de parkour treinados exaustivamente no solo dão a base necessária, o preparo psicológico e o equilíbrio para que o grupo pratique manobras no alto dos prédios com segurança.

“O nosso foco é lidar com o medo, é aprender com o medo, treinar o medo, se preparar para ele”, diz outro membro, Diego Gomes da Silva, 29.

Lucas da Silva Seberino, 22, do mesmo grupo, afirma que a adrenalina não é sua motivação. “O pessoal acredita muito que tem isso de a gente fazer pela adrenalina, mas pelas experiências que a gente tem do parkour a gente está calmo, a gente está tranquilo quando está fazendo aquilo, não tem isso de estar fazendo pela adrenalina, por ser radical”.

O grupo diz usar essa mesma tranquilidade quando é flagrado por seguranças ou policiais explorando um prédio, shopping ou edifício em construção.

“Sempre que a gente entra em um lugar, a gente entra de uma forma muito tranquila, porque a gente tem certeza a respeito do que vai fazer. Nunca a gente quer destruir ou pichar ou roubar alguma coisa”, diz Erico Paueli Pirollo, 25, do Alma Forte.

“Mesmo quando a gente é pego, que a gente encontra seguranças ou polícia, a gente transmite muito essa tranquilidade. Então a gente nunca teve um problema de discutir de uma forma agressiva com alguém”.

Há crime no rooftopping?

O que diz a lei?

A atividade é pouco conhecida e discutida no Brasil. O UOL ouviu advogados e levantou alguns aspectos legais sobre o "rooftopping".

A primeira questão é: o praticante comete crime quando entra sem autorização no telhado de um prédio, shopping ou construção?

Depende. Segundo o advogado criminalista Leonardo Pantaleão, se o prédio for público não há crime, mas se o praticante entrar em uma propriedade privada, dependendo das circunstâncias, pode cometer o crime de invasão de domicílio – cuja pena, em tese, pode chegar a dois anos de prisão.

Nesse caso, domicílio não é somente a casa de alguém. O conceito pode ser estendido para o local de trabalho, como um um prédio de escritórios, por exemplo. Já um shopping center ou uma construção não se encaixariam na definição, um por estar aberto ao público e o outro por não ser habitado.

Segundo Pantaleão, o crime está previsto no Código Penal. Mas, na prática, a prisão só é certa se a pessoa tiver antecedentes criminais ou danificar ou roubar algo na propriedade – coisas que os praticantes negam fazer.

“A simples violação de domicílio é considerada pelos efeitos da lei uma infração penal de pequeno potencial ofensivo, portanto ela admite medidas que são despenalizadoras”, diz.

Ou seja, se nunca tiver feito isso antes, o praticante pode receber uma pena alternativa à prisão, como pagar uma cesta básica, por exemplo.

Mas isso não significa que a pessoa não possa ser processada na esfera civil. Segundo o advogado Marcelo Manhães, da Comissão de Direito Urbanístico da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo, ao invadir propriedade privada ou pública a pessoa infringe o artigo 1210 do código civil.

Além da possibilidade de ser penalizado em um processo judicial, esse artigo permite que o dono do imóvel use até a força para retirar o invasor – mas se isso ocorrer de forma abusiva ou desproporcional, é o dono do prédio quem responde criminalmente.

Mas em uma situação de alta criminalidade no país, segundo ele, essa situação é potencialmente perigosa para todos os envolvidos.

Outra questão jurídica é: o que acontece com o dono da propriedade se um praticante de "rooftopping" se ferir ou eventualmente morrer em sua propriedade?

Nada, segundo Pantaleão. Em teoria, o dono do prédio não pode ser responsabilizado porque nem sabia o que estava acontecendo.

E o próprio praticante pode ser penalizado por se colocar em uma situação de risco?

“Só interessa para o direito penal aquele meu comportamento que ou atinge ou coloca em risco um direito alheio. Aqui não, eles se colocam de uma forma voluntária e espontânea a um risco à própria vida”, diz o advogado. Assim, nesse aspecto, o Estado não pode processá-los.

Homem-Aranha

No início de 2008, o alpinista francês Alain Robert – conhecido como “Homem-Aranha” por ter literalmente escalado alguns dos prédios mais altos do mundo – ficou famoso no Brasil por subir o Edifício Itália, em São Paulo, pelo lado de fora.

A escalada urbana, praticada por Robert, é diferente do "rooftopping". Isso porque o francês literalmente chega nos telhados dos edifícios fazendo “alpinismo” pelas paredes. Quando não sobe nos prédios, vai até o andar mais alto de escada ou elevador e depois desce por fora.

Assim como os "rooftoppers", na maioria dos casos ele não tem autorização para fazer isso. Em São Paulo, ele concluiu com sucesso a escalada, mas chegou a ser detido e quase respondeu criminalmente acusado de pôr em risco a vida de outras pessoas.

Sua defesa afirmou que ele não cometeu crime. “Eu não tinha a intenção de cair em cima de alguém”, disse na época o francês. 

Rooftoppers estrangeiros

É fácil encontrar na internet vídeos de "rooftoppers' estrangeiros que dão frio no estômago só de olhar.

Um deles atraiu centenas de milhares de visualizações ficando pendurado só com a força dos braços do lado de fora de edifícios. Já uma modelo russa se tornou uma espécie de celebridade fazendo selfies de vestido no alto de torres, guindastes ou em pé sobre claraboias de arranha-céus.

O chinês Wu Yongning, 26, era uma dessas celebridades. Ele morreu em novembro de 2017 supostamente participando de um desafio que lhe renderia um prêmio em dinheiro. Yongning tentou se sustentar apenas com os braços na parede externa de um prédio e morreu ao cair de uma altura de 62 andares.

Outra morte semelhante foi a do campeão russo de xadrez e praticante de parkour Yuri Yeliseyev, 20. Segundo testemunhas, ele morreu no final de 2016 tentando pular de uma janela do 12º andar para uma varanda do apartamento em que morava, em Moscou.

Reprodução/Arte UOL Reprodução/Arte UOL

Espaços da cidade

Mas a cultura dos telhados não se resume a esse aspecto sombrio dos acidentes, segundo seus adeptos.

“Eu acho que essas mortes que acontecem assim no exterior são coisas assim, quando você coloca uma coisa no mundo não dá para você cercar todas as pessoas, o que elas vão fazer”, opina Pirollo, do grupo Alma Forte.

“Tem gente que faz as coisas de forma mais preparada e tem gente que faz as coisas de forma mais impulsiva. O que eu vi e que fica muito nítido no vídeo desse cara caindo (Wu Yongning) é que ele não tinha preparo nenhum para fazer o que ele estava fazendo”, afirma.

“Então, assim, você está sujeito a esse tipo de coisa, em qualquer coisa. Quando a Fórmula 1 começou a ser o que é hoje muita gente morreu, até ter o carro que tem hoje. Não dá para controlar o mundo”, diz.

Segundo ele, a “cultura do telhado” é, na essência, uma prática de sair e usar os espaços da cidade que não são utilizados.

“Nas periferias, os prédios abandonados, as casas abandonadas, dar um uso para esse espaço que não é visto socialmente. A gente frequenta esses espaços tanto para conhecê-los quanto para usá-los para a nossa prática de parkour”, diz.

Segundo ele, essa postura é também uma forma de protesto – um jeito de mostrar que a cidade tem espaços para todos.

Pirollo diz ainda que a atividade pode ser comparada a uma filosofia de vida. “O parkour estimula você a prestar mais atenção em você mesmo, então você muda sua alimentação, você passa a prestar atenção em coisas que seu corpo diz. Isso, de alguma forma, aguça um instinto que aumenta essa percepção: eu olho para cá e eu falo ‘cara eu consigo saltar isso aqui, eu consigo fazer esse movimento, o meu corpo sabe fazer isso aqui'. E aí a altura deixa de ser relevante”.

“É uma sensação de liberdade difícil de colocar em palavras, mas a gente busca muito essa sensação”, diz.

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