Comunistas no poder

O que a revolução há 100 anos mudou de imediato para os russos

Talita Marchao Do UOL, em São Paulo

Em 7 de novembro de 1917 (25 de outubro no calendário juliano seguido pelos ortodoxos), os bolcheviques ocuparam instituições-chave do Governo Provisório, que assumiu o comando do ex-Império Russo após a renúncia do czar Nicolau 2º. Impulsionados por Lênin, tomaram o Palácio de Inverno em Petrogrado, hoje São Petersburgo --entre 1924 e 1991, a cidade se chamou Leningrado, em homenagem ao líder do golpe, dado há cem anos, que instaurou em 1922 a URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas).

Nos oito meses entre a Revolução de Fevereiro, que derrubou o último monarca da dinastia Romanov, e a Revolução de Outubro, como ficou conhecida a tomada de poder dos bolcheviques, o governo provisório era um vácuo de poder, que sobreviveu a uma tentativa de golpe anterior ao dos bolcheviques.

Neste período, após a queda do czar, quase todos os socialistas bolcheviques que estavam exilados regressaram. Lênin estava na Suíça, e chegou ao país com o apoio do governo alemão durante a Primeira Guerra --naquele momento, Rússia e Alemanha eram inimigas, e era do interesse alemão que revolucionários russos que se opunham ao conflito voltassem ao país. Josef Stálin vivia na Sibéria; Leon Trótski, criador do Exército Vermelho, vivia nos EUA

A população russa também era contra a participação no front --o Exército russo era formado em sua grande maioria por camponeses, que viviam em condições precárias. Cerca de 90% da população do país era agrária, apesar de alguns centros urbanos do país já experimentarem as agitações da modernidade.

Russian State Archive of Social and Political History via AP

Não dá para entender a revolução...

...sem compreender a situação precária que a antecedeu

A Rússia, naquele momento, era em sua maior parte rural, com meia dúzia de grandes centros industriais. As cidades do interior eram atrasadas, quase semifeudais -- eram centros administrativos com uma pequena população mercantil, algumas poucas escolas, um mercado agrícola e talvez uma estação ferroviária, segundo descreve Sheila Fitzpatrick, historiadora especializada em socialismo em seu livro "A Revolução Russa", lançado em setembro pela Editora Todavia.

A geração que vivenciou a Revolução Russa foi a primeira livre, já que a abolição da servidão ocorreu em 1861. Libertos, os camponeses passaram a se organizar em aldeias e a dividir os campos em faixas que eram cultivadas por famílias diferentes. A agricultura beirava o nível da subsistência, e os métodos de trabalho eram completamente distantes de técnicas de lavoura adotadas na época em outros países.

Apesar da liberdade, os camponeses estavam presos à aldeia, já que todos eram responsáveis por ajudar a abater a dívida do grupo com o Estado por ter arcado com a grande indenização paga aos aristocratas pelo fim do regime de trabalho. Eles ainda trabalhavam para os ex-senhores de terra esporadicamente, além de cuidar das suas próprias terras.

"A abolição da servidão melhorou a situação social e política, mas não a econômica. Os servos ficaram livres, mas sem dinheiro. Foi semelhante ao que ocorreu no Brasil com os escravos, que ficaram livres, mas pobres", diz Osvaldo Coggiola, historiador da USP (Universidade de São Paulo). "Antes de 1917, existiam cerca de 3 milhões de operários na Rússia, e os camponeses superavam os 100 milhões. A população continuou vivendo no campo", acrescenta.

Na segunda metade do século 19, a Rússia era o país que mais crescia em população junto com os EUA -- nos EUA, o crescimento se dá por imigração; na Rússia, ele é motivado pelas altas taxas de natalidade. Segundo Coggiola, neste período na Rússia, a população chegou a crescer 2 milhões de pessoas por ano.

Angelo Segrillo, historiador da USP e autor de "Os Russos" (Editora Contexto), lembra ainda que a sociedade russa neste período era conservadora e patriarcal. A mulher era considerada como um grande auxiliar do homem na família, e mantinha a dupla jornada --no campo ou nas fábricas-- com salários precários

Estas numerosas famílias do campo ainda tinham costumes que beiravam o medieval. Nas comunas, por exemplo, onde as famílias viviam juntas, o sogro tinha o direito de manter relações sexuais com a nora na ausência do próprio filho, diz o professor Paulo Afonso Francisco de Carvalho, historiador da UnB (Universidade de Brasília). "Era um país semifeudal em suas tradições, nas relações humanas. Foi para estas pessoas que a revolução foi feita."

Yakov Steinberg, Russian State Archive of Social and Political History via AP Yakov Steinberg, Russian State Archive of Social and Political History via AP

Da forma como foi feita, a emancipação dos servos tinha um objetivo claro: impedir um fluxo em massa de camponeses para as cidades. Mas era fácil para os camponeses deixarem as terras temporariamente e trabalhar por empreitada na construção, na mineração ou até mesmo nas cidades, afirma Sheila Fitzpatrick em sua obra. Com mais empregos nas cidades, o movimento pendular entre o campo e a cidade tornou-se cada vez mais comum. 

Uma em cada duas famílias camponesas tinha ao menos um integrante que deixava a vila para trabalhar nos centros urbanos. Assim, a classe operária russa e a camponesa se confundiam. O número de camponeses que deixava as aldeias para trabalhar fora das terras era maior do que a população urbana industrial --3 milhões. 

"A Rússia investiu fortemente na expansão industrial no fim do século 19. No começo do século 20, os centros urbanos se expandiram rapidamente --a vida e a cultura urbana, além da crescente sociedade civil, emergiram. Os camponeses começaram a se mudar para as cidades, alugar alojamentos e formaram grupos para vender sua mão de obra coletivamente", diz Andy Willimott, autor de "Living the Revolution: Urban Communes & Soviet Socialism" (Vivendo a Revolução: Comunas Urbanas e Socialismo Soviético, em tradução livre).

A população das cidades era pobre e suas condições de trabalho eram precárias. "Os operários tinham que pagar multas por material destruído, por exemplo. Era uma situação de miséria generalizada, tanto no campo como nas cidades", diz Coggiola, da USP.

"Trabalhadores mais organizados se voltaram para os sindicatos, o que resultou em uma forma de encontrar uma voz e uma sensação de pertencimento dentro desta paisagem urbana ainda em desenvolvimento", afirma Willimott. "Em pequenos grupos, uma cidadania urbana e a identidade dos trabalhadores eram formadas."

E é neste cenário que a Primeira Guerra eclodiu.

A Rússia entra na guerra com o maior Exército da Europa --formado em sua maioria por camponeses, e sofre perdas esmagadoras. Foram mais de 5 milhões de mortes entre 1914 e 1917 e um fluxo caótico de refugiados à medida que os alemães invadiam o território russo. Como toda a produção era voltada para a manutenção das tropas, começa a fome nas cidades --e, com ela, os protestos. O czar Nicolau 2º cai em fevereiro de 1917, e o Governo Provisório assume --até ser derrubado pelos bolcheviques, no final de 1917.

Para a empobrecida população,

a revolução parecia abrir a porta para tempos melhores (ou não)

A revolução bolchevique traz impactos na população. "Com o golpe dos bolcheviques, há uma mudança de elite na Rússia. A elite aristocrata, empresarial, banqueira e os intelectuais deixam o país --ou são assassinados. Uma nova elite toma posse, formada a partir do proletariado. A ditadura do proletariado na verdade nunca existiu. Era a ditadura de um partido só, como se fosse em nome do proletariado", diz Paulo Afonso Carvalho, da UnB.

"É criado um Estado extremamente paternalista, com base no culto à personalidade, com nível de segurança excelente, garantias básicas de educação, saúde, emprego. Mas não passava disso", afirma o historiador.

Depois da revolução, o país enfrenta ainda três anos de Guerra Civil (1918-1921) entre o Exército Vermelho bolchevique e o Branco --formado por leais ao czar e apoiado por potências estrangeiras. Durante esse período, a situação do país chegou a ser foi ainda pior do que antes. A guerra destruiu grande parte da indústria, das estradas de ferro. Com a saída da Primeira Guerra, uma gigantesca massa de trabalhadores volta desempregada. A criminalidade atinge níveis altíssimos.

Entretanto, a revolução ainda abria uma possibilidade de melhora nas condições de vida da população. A revolução institui algumas leis que alguns países capitalistas adotariam bem depois. Foram criadas leis trabalhistas, além de infraestruturas até antes inexistentes, como creches e cantinas coletivas. Sindicatos passam a ser oficialmente reconhecidos. A homossexualidade deixou de ser crime --Stálin voltará a criminalizá-la posteriormente.

Algumas políticas impactam diretamente as mulheres: são criadas leis de proteção à mulher, o abuso sexual é criminalizado, e o aborto passa a ser permitido --Stálin também retira esse direito posteriormente. O pedido de divórcio por parte da mulher também passa a ser permitido. O Partido Bolchevique cria setores femininos, e as jovens comunistas tinham suas próprias organizações.

"Para alguns dos cidadãos urbanos mais radicais, a Revolução de Outubro é vista como um amanhecer vermelho. Para os que estavam dispostos a lidar com os bolcheviques, ela era o começo de novas oportunidades e uma sensação de emancipação. Muitos jovens se uniram à Liga da Juventude Comunista, enquanto ativistas participaram de "batizados vermelhos", onde zombavam da Igreja ao batizar uns aos outros em nome do socialismo, como Lênin (Lenina na forma feminina), Marx (Marxina) e Engels (Engelsina)", conta Willimott. A Igreja Ortodoxa, que tinha forte papel durante o czarismo, perde sua ligação com o Estado.

Russian State Documentary Film and Photo Archive via AP Russian State Documentary Film and Photo Archive via AP

É criado ainda o direito à educação gratuita, laica e obrigatória, que reduz rapidamente as taxas de analfabetismo. Willimott conta ainda que, em 1919, os bolcheviques criaram as "Faculdades dos Trabalhadores", em uma tentativa de dar ensino superior a setores da sociedade que não tinham educação formal ou os que tiveram a educação interrompida pela Guerra Civil. "Este foi o genuíno exemplo do que hoje podemos chamar de mobilidade social. Muitos jovens que antes não tinham acesso aos estudos agora tinham oportunidades."

"A Rússia precisava ter uma mão de obra alfabetizada para as indústrias, ou não seria possível ter uma indústria minimamente satisfatória", diz Coggiola.

A estatização é realizada de forma gradual e, ao mesmo tempo, confusa. Todos os trabalhadores agora são estatais. E grande parte dos desempregados é absorvida pela burocracia estatal, ainda maior do que a czarista.

Com a Guerra Civil, os direitos adquiridos nem sempre foram colocados em prática.

Os bolcheviques herdaram do Governo Provisório o racionamento nas cidades (instituído em 1916, durante a Primeira Guerra). Mesmo depois da revolução, as cidades sofriam com a falta de comida. Os camponeses não vendiam a produção enquanto não tivessem bens manufaturados para comprar. O novo governo ainda tenta trocar grãos por produtos, e não dinheiro. Em 1920, os salários praticamente chegavam a ser pagos em mercadorias, e não em moeda.

Enquanto isso, era preciso ainda manter o Exército Vermelho, em batalha com o Exército Branco --ambos confiscavam alimentos para as tropas, por exemplo, e tinham simpatizantes tanto no campo quanto nas cidades.

A tomada de poder dos bolcheviques é, na verdade, o início da revolução. E a URSS só é criada depois de sete anos de guerra, somados os anos da Primeira Guerra e os da Guerra Civil, que impacta diretamente a vida da população.

A Guerra Civil devasta a economia, praticamente paralisando a indústria e esvaziando as cidades e o campo. O Exército Vermelho era gigantesco, chegando a ter 5 milhões de alistados, a maioria camponeses. Ele se tornou a mais eficiente burocracia soviética nos primeiros anos do regime. Tinha até mesmo antigos oficiais czaristas.

Com o fim da Guerra Civil, milhares de operários, soldados e marinheiros que lutaram no Exército Vermelho ganham cargos administrativos dentro da máquina estatal, seja no próprio Exército Vermelho, na Tcheka (Comissão de Combate à Contrarrevolução), na administração dos alimentos e na burocracia partidária e na direção das fábricas. A "ditadura do proletariado" prometida pelos bolcheviques seria exercida por meio de cargos de chefia.

Mas a fome nas cidades dispersou a classe operária industrial. As mortes por inanição e doenças passam o total de mortos da Primeira Guerra somados com as vítimas da Guerra Civil.

Crianças órfãs passam a viver nas ruas. Com o fechamento das indústrias e a fome, o número de operários cai de 3 milhões para a metade, muitos deles de volta ao campo tentam se integrar às vilas.

No campo, as relações entre as classes altas e baixas muda completamente, a revolução elimina o latifúndio. Os nobres perdem os direitos políticos. "Antes da revolução, existia um conjunto pequeno de grandes latifundiários, que eram nobres, e todo o resto da população contra eles. Depois da revolução, os nobres são expropriados, e a coisa se polariza entre proprietários médios e os trabalhadores do campo", diz Coggiola.

O novo governo, então, buscou substituir o sistema familiar de aldeiras --conhecido como mir-- por outro mais empresarial. De olho na agricultura de larga escala, instalaram fazendas estatais ou coletivas, implantadas por soldados desmobilizados ou operários que fugiram da fome na cidade.

"As fazendas coletivas não dividiam suas terras em faixas, como a tradicional aldeia camponesa, mas cultivavam a terra e comercializavam a produção coletivamente", afirma Sheila Fitzpatrick em seu livro. E os camponeses desconfiavam deste sistema.

Durante a Guerra Civil, a produção é confiscada. Mas, com o fim do conflito e a vitória bolchevique, os camponeses sabem que o Exército não precisa mais ser alimentado. A partir daí, a questão é de que forma um preço mais alto pode ser obtido pela produção. Essa tensão resulta em uma revolta, reprimida com muita violência em 1921.

Para tentar estabilizar o país, o governo cria a NEP (Nova Política Econômica), reintroduzindo elementos do mercado privado.

Russian State Documentary Film and Photo Archive via AP Russian State Documentary Film and Photo Archive via AP

O "comunismo de guerra", como ficaram conhecidas as medidas adotadas pela NEP, abandona a defesa da estatização completa. No campo, foi permitido que os camponeses dispusessem livremente de seus excedentes de produção. A indústria é reconstruída pelo setor privado, ainda que o Estado mantivesse o comando da economia.

Com a reconstrução da economia, o trabalhador --tanto no campo quanto nas cidades-- passa a melhorar de vida. "Por exemplo, um trabalhador agora consegue comprar uma roupa decente. Muitos nem sabiam o que era um terno. Até esse momento, você vê a fotografia do campo russo e pode achar bucólica, mas aquilo é uma desgraça. Eles não sabiam praticamente o que eram sapatos, improvisavam vestimentas com peles de animais", afirma o professor da USP.

"Começam também a ressurgir o fenômeno de ricos, tanto no campo quanto na cidade. Isto acaba em 1929, com a coletivização forçada promovida por Stálin, quando todo mundo é obrigado a entrar no regime cooperativo e ocorre uma guerra civil no campo", afirma Coggiola.

Em todo esse período, o controle e a natureza coerciva do Estado soviético já se faz perceber. "Desde o início, [os bolcheviques] estavam dispostos a usar o terror para reprimir os levantes no campo para garantir grãos tão necessários para o Exército Vermelho, ou contra os muitos que se opuseram à revolução", conta Willimott.

Desde o fim de 1917, a Tcheka atua como uma espécie de precursora da KGB. "Seu papel era procurar e conter planos 'contrarrevolucionários' antes que eles prejudicassem a causa revolucionária. Diante da hostilidade, em particular do campo, Lênin autorizou a Tcheka a intensificar sua busca por 'inimigos de classe'", completa em seu livro.

Entre 6 mil e 8 mil pessoas foram mortas pela Tcheka até a primeira metade de 1919. Quase 90 mil foram presas. "Esses números não são tão altos, nem as ações da Tcheka são tão arbitrárias quanto o subsequente terror das décadas de Stálin. Mas, desde o início, os bolcheviques não tiveram medo de usar a violência. Eles acreditavam que sua visão de um mundo melhor valia o derramamento de sangue", afirma o escritor.

Foi neste período do socialismo russo que são criados os primeiros campos de trabalho --mas com a finalidade de reeducação de criminosos. Estes campos podem ser considerados embriões do que viriam a ser os gulags, os campos de trabalho forçado criados na era stalinista.

"Não eram campos para opositores políticos. A repressão da criminalidade era realmente forte porque neste período é associada com a ideia de que quem não trabalha, não come", afirma Coggiola, da USP. "Se o sujeito fosse um criminoso, não estaria trabalhando. Já estaria errado pelo fato de não trabalhar, já que seria como um parasita social", diz.

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