O fim da solidão

Em tempos de vigilância exacerbada, precisamos pensar políticas que valorizem a vida privada

Hari Kunzru
Jessica Fortner/NYT

Este artigo faz parte do especial "Ano em transformação", do "The New York Times News Service & Syndicate", que o UOL publica exclusivamente no Brasil. Ao final desta página você encontrará outros artigos relacionados a esse especial.

Quando nossos pensamentos não são mais nossos

Em 1855, a famosa poetisa reclusa Emily Dickinson enviou um poema para sua cunhada.

Há uma solidão do espaço
Uma solidão do mar
Uma solidão da morte, mas
Tudo parecerá movimentado
Se comparado a esse local profundo
Essa privacidade polar
De uma alma diante de si mesma –
Finita infinidade.
 

Um século e meio depois, vivemos em um mundo onde os dois primeiros tipos de solidão – de espaço ou de mar – estão próximos da extinção. Mesmo quando viajamos para o deserto ou para o meio do oceano, devemos nos conformar com a ideia de que alguém poderia estar nos vendo, através de satélites ou drones. Em geral, enquanto tocamos nossa vida nos espaços fortemente vigiados das cidades modernas, carregando os rastreadores sedutores que chamamos de "celular", estamos sendo observados.

O que é a privacidade? Não é apenas uma preferência ocasional pela solidão. É a capacidade de esconder coisas: partes de nosso corpo, aspectos de nossa vida. Privacidade é mais do que solidão; não é simplesmente visual. Vagamos pelo mundo deixando rastros de metadados, e, com ferramentas novas e baratas para armazená-los e processá-los, fotos de nossa intimidade estão sendo capturadas, e estas não são apenas descritivas, mas na verdade preditivas do nosso comportamento, dependendo dos dados fornecidos.

Annie Tritt/NYT Annie Tritt/NYT

Dentro de alguns anos, a intensidade da vigilância aumentará quase que desmedidamente. Pesquisadores da Universidade de Stuttgart recentemente descreveram uma tecnologia de coleta de informações, apelidada de "poeira inteligente", que usa lentes do tamanho de um grão de sal, que capturam imagens e podem ser fabricadas usando impressoras 3D comercialmente disponíveis, de modo fácil e não muito caro.

Imagine câmaras minúsculas injetadas no cérebro para detectar tumores! Maravilhoso! Agora, imagine o efeito da vigilância onipresente, quase invisível e em rede de toda a vida social e política, usando ferramentas tão baratas que podem ser fabricadas em quantidades inimaginavelmente grandes, para que espiões e a polícia secreta do mundo espalhem seus olhos como agricultores plantando sementes. Nesse ponto, nossa expectativa de privacidade vai cair para zero e, com isso, ainda mais nossa capacidade de resistir ao poder estabelecido, seja qual for seu viés político.

Esta é a era de reconhecimento de padrões, e nossos hábitos, nossas preferências, os desejos que moldam nosso comportamento estão cada vez mais suscetíveis à quantificação, previsão e controle. Aprendemos a nos maravilhar com a cadeia de lojas que sabe que a mulher está grávida antes mesmo que seu parceiro. Estamos menos conscientes do e-reader que reúne informações sobre as páginas que pulamos, e em quais palavras nos demoramos mais.

Estamos apenas começando a entender o poder político da arquitetura de rede, de silos de informação (sejam liberais ou conservadores) que dão a seus habitantes uma sensação de mundo inteiro, de propaganda política calibrada para as dimensões precisas de nossos medos particulares e individuais.

Digamos que possuo uma arma. Moro em uma área de alta criminalidade. Recentemente, comprei iluminação exterior para minha casa. Com certeza, tenho medo de uma invasão de domicílio. O anúncio que recebo começa com uma figura sombria e um facho de luz de uma lanterna passa pelo rosto das crianças que estão dormindo. O anúncio do meu vizinho é completamente diferente.

Andrew Testa/NYT Andrew Testa/NYT

Quando você está sempre sendo vigiado, ou pelo menos potencialmente, qualquer forma de auto-expressão é também um tipo de traição, o jogador de cartas cuja feição entrega o jogo. Com a onipresente vigilância visual, certamente nos fecharemos dentro de nós mesmos, no reino do que não foi expresso, o "local profundo" da privacidade de Emily Dickinson, a "alma diante de si mesma".

A língua pode ser espiritual, mas descreve um estado que as pessoas seculares também reconhecem. Temos uma expectativa de que, antes de irmos para o mundo social, podemos ocupar um espaço interior privado para experimentos e contemplação, um espaço livre do julgamento dos outros. Esse espaço interior é, por natureza, utópico e transgressor. Nele depositamos nossas ideias sobre liberdade, escolha e responsabilidade moral.

Durante uma geração ou mais, fantasiamos com a possibilidade de nos tornarmos pós-humanos. Como seria nossa evolução? Em que estamos nos transformando? Quando pensamos em nossos sucessores, imaginamos indivíduos soberanos que de alguma forma são mais poderosos que nós mesmos, cujo senso de si mesmos é mais intenso e mais luxuoso. O super-homem, o gênio da extropia, a próxima onda. Mas estamos fazendo um mundo onde tal possibilidade parece cada vez mais remota, pelo menos para a maioria. Talvez, poderes ampliados e uma interioridade expansiva serão alcançados por uma pequena elite, que será capaz de pagar para ter privacidade. A maioria das pessoas terá uma vida circunscrita, calada.

Se nosso senso do "eu" parece poder ser transformado pela erosão da privacidade, está também sob pressão da erosão do mundo social do trabalho e das identidades humanas que vêm com ele.

A automação está prestes a destruir os meios de subsistência de muitos segmentos de trabalhadores, do motorista de táxi ao banqueiro de investimento. Ela está invadindo muitos domínios do "humano", o da experiência, do artesanato e até mesmo da arte e do sabor. Baixos custos salariais significam lucros mais elevados, e as empresas privadas não têm nenhuma obrigação de garantir a plena participação do mercado de trabalho.

Ben Stansall/ AFP Ben Stansall/ AFP

O advento dessa ideia tão proclamada, a Sociedade do Lazer, se parece mais com o armazenamento humano em larga escala do que com uma semana de festa ininterrupta. Nós nos definimos através de nossos papéis sociais. Nós nos socializamos para sermos úteis, para participar, para manter o estado de alta produtividade. Nossos políticos, ansiosos para reduzir o custo da seguridade social, nos impõem a noção de que o ócio é um grande pecado.

Mas para muitos, o ócio será reforçado e, junto com ele, a vergonha de serem vistos e tratados como pecadores. Porque, para cidadãos excluídos da vida econômica, o ocioso é sempre o mais disruptivo e está historicamente sujeito à vigilância mais intensa.

A pós-humanidade é um termo muito grandioso para o que nos aguarda no horizonte. Ela é a ideia do poder e da reorganização econômica que está levando a riqueza para os mais ricos, não uma espécie que evolui para algum tipo de forma de rede de ciborgues. Um anseio nostálgico pelos dias felizes da humanidade pode nos permitir um estado melancólico, mas fará pouco para brecar os vastos processos que geram essas mudanças.

Em vez disso, temos que imaginar um tipo de política que ainda atribua um valor à vida privada, e novas formas de pertencimento que não girem em torno do trabalho.

  • Hari Kunzru

    É autor dos livros "The impressionist", "Gods Without Men" ,e mais recentemente, "White Tears"

    Imagem: Clayton Cubitt/NYT

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