Jovens e reincidentes

Número de adolescentes que voltam a cometer crimes e retornam à Fundação Casa, em SP, dobra em 10 anos

Leonardo Martins Do UOL, em São Paulo
Márcio Komesu/UOL

Apesar de cair apenas pela segunda vez em 10 anos, o número de adolescentes com reincidência no sistema de internação da Fundação Casa continua alarmante. Em fevereiro de 2018, 1.954 jovens estavam cumprindo novas internações no sistema, um aumento de 107% em comparação com o mesmo mês de 2008.

Segundo dados da própria Fundação Casa obtidos com exclusividade pelo UOL por meio da LAI (Lei de Acesso à Informação), em fevereiro de 2008, a instituição abrigava 947 adolescentes reincidentes por terem cometido algum tipo de ato infracional. Esse número mais que dobrou nos últimos dez anos, com ênfase para o tráfico de drogas e para o roubo qualificado.

Outro levantamento, do MP-SP (Ministério Público de São Paulo), mostra que 61% dos jovens que estavam na Fundação entre agosto de 2014 e agosto de 2017 eram reincidentes.

Especialistas e pesquisadores entrevistados pelo UOL enxergam três causas principais para esse aumento: a crise econômica, a interpretação do tráfico de drogas como ato infracional violento e o uso excessivo de internações.

Já para o secretário de Justiça do Estado de São Paulo e presidente da Fundação Casa, Márcio Elias Rosa, a reincidência está relacionada a uma "mudança na conformação social" da população e na falta de acompanhamento dos jovens após o período de internação.

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Crise e falta de oportunidades

Os especialistas ouvidos pelo UOL são unânimes em apontar a crise econômica do Brasil como uma das explicações para a reincidência desses adolescentes na vida criminosa e na dificuldade de sair desse universo após a primeira internação.

Eles enfatizam que a maioria dos jovens apreendidos são moradores de áreas pobres e periféricas e que, de forma direta, a falta de oportunidade de trabalho gerada pela crise abre a brecha para uma maneira rápida e "cômoda" de conseguir dinheiro: o crime.

Marcos Fuchs, diretor do Conectas, ONG que trabalha na defesa dos direitos humanos, explica que "a recessão econômica do período Dilma [Rousseff, ex-presidente] traz uma crise dentro do núcleo familiar. Você começa a ter problemas de falta de dinheiro e isso começa a contribuir para que o adolescente vá para o crime".

Paulo Malvasi, antropólogo, professor da Santa Casa e pesquisador no Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) da relação de adolescentes com o crime, traça um perfil e simula a situação em que a maioria desses jovens se encontram.

"Primeiro temos de ver quem são esses jovens. Imagine um adolescente que vê praticamente todo mundo no seu bairro desempregado ou com subemprego, e, depois, ele vê a oportunidade de vender substâncias sem cometer, necessariamente, violência contra alguém, próximo a sua casa e gerar uma renda de R$ 800 ou R$ 1500 por semana, em alguns casos até mais. É esse o contexto", analisa Malvasi que, atualmente, conclui o estudo O tráfico de drogas como uma das piores formas de trabalho infantil.

Para a professora da Unifesp e especialista em Justiça Juvenil Liana de Paula, o adolescente sai da Fundação Casa na primeira vez e retorna ao mesmo contexto social em que estava inserido antes, isto é, retoma sua vida sem emprego, sem qualificação e com o crime como via mais próxima e rápida de se sustentar. "As portas, que já não estavam muito abertas, estão muito mais fechadas", endossa.

É o caso de André*, de 18 anos, que viu no tráfico a oportunidade não encontrada fora do crime. "A gente sai daqui e às vezes muitas pessoas não acreditam em nós, na nossa capacidade, no nosso potencial, no nosso ponto forte. E a única opção é o tráfico. Começa a traficar, vem dinheiro fácil e é aí que dá o desacerto e acaba voltando [à Fundação]", diz o jovem, que está internado pela terceira vez na instituição.

* Nome fictício

Os 5 crimes que mais levam à reincidência na Fundação Casa (fevereiro de 2018)

  • Tráfico de drogas

    947 casos

  • Roubo (qualificado + simples)

    796 casos

  • Furto (qualificado + simples)

    58 casos

  • Descumprimento de medida judicial

    18 casos

  • Roubo qualificado tentado

    17 casos

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Reincidentes por tráfico de drogas aumentam 350%

A alta dos jovens infratores reincidentes, em grande parte, está associada ao tráfico de drogas. Em fevereiro de 2008, essa era a razão para a volta de 211 jovens à Fundação Casa. Dez anos depois, eram 947 os adolescentes de volta à instituição devido ao tráfico, um salto de 350%.

O crescimento foi tanto que, a partir de 2013, o tráfico de drogas ultrapassou o índice de roubo qualificado (assalto praticado com mais gravidade). Os dois crimes lideram de forma isolada a tabela dos atos infracionais de reincidência, correspondendo respectivamente a 48% e 37% do total.

Traficar é "mais fácil" do que roubar

Fuchs, que é ex-vice-presidente do Conselho Nacional de Política Carcerária, pontua que “é muito mais ‘fácil’ você traficar do que roubar. "Roubar você precisa ter organização, está sujeito a violência, pode ter a reação da vítima ou ser preso em flagrante. O tráfico não, você tem escapatórias e o adolescente sabe disso’".

André*, de 18 anos, que está em sua terceira passagem pela Fundação Casa, desta vez por tráfico, corrobora a tese de Fuchs. "O roubo tem mais risco, porque você está saindo com a arma na mão e não sabe quem você vai roubar. E o tráfico tem mais segurança, porque você pode estar ali com os seus amigos e você só vai vender suas drogas, você não vai colocar arma na cara da vítima", diz o jovem, preso por roubo nas duas primeiras vezes.

Além do aumento de renda, o status entre os colegas também vem com o tráfico, lembra Malvasi. "É um mercado forte, que realmente gera oportunidade de postos de trabalho. Além de gerar renda, você tem associado a alguns status entre os jovens. Se ele pode ter mais dinheiro, ter uma bicicleta melhor, um óculos, um tênis bacana ou frequentar uma festa", afirmou o pesquisador.

Liana de Paula também analisa que "deve-se olhar mais o que está acontecendo no movimento da Justiça Juvenil". "Eles [segurança pública] prendem, prendem, prendem menores por tráfico e isso nunca produz o resultado esperado. Prende um de manhã e à tarde tem outro, são facilmente substituíveis. Você está prendendo muito e prendendo mal. É enxugar gelo".

Para o secretário de Justiça e presidente da Fundação Casa, Márcio Elias Rosa, os problemas na Lei de Drogas do país, que não tem clareza ao diferenciar quantidades para uso e para tráfico, contribuem para a reincidência dos adolescentes.

"O Brasil não tem uma boa legislação no campo das drogas, da política de drogas. E também não conseguiu definir ainda uma boa política de saúde pública e assistência social para acolher os usuários de substâncias psicoativas", diz o secretário. "[Internos por tráfico] sempre tráfico de pequena quantidade, nenhuma associação significativa com o crime organizado, é uma conduta individual. E não há, depois do período em que ele cumpre medida socioeducativa, uma política de acolhimento deste usuário, que também é traficante".

* Nome fictício

"O dono da quitanda vai querer dar um emprego informal para um adolescente que estava na Fundação Casa? Então, quem vai receber esse adolescente de braços abertos? O tráfico"

Liana de Paula, professora da Unifesp e especialista em Justiça Juvenil

Da reincidência por tráfico ao sonho do futebol

Márcio Komesu/UOL Márcio Komesu/UOL
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Internação: regra ou exceção?

O excesso no uso das internações foi o ponto mais frisado pelos especialistas entre as causas de reincidência. A professora Liana de Paula explica que a internação é uma medida excepcional de acordo com o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e não deveria ser a principal medida a ser tomada pela Justiça. Para ela, os juízes, atualmente, estão mais "punitivistas".

"A forma como a internação está sendo aplicada contraria o ECA. No caso do tráfico de drogas, não deveria ser aplicada a internação, a internação é um remédio amargo cheio de efeitos colaterais, ele deve ser aplicado em situações necessárias, como situações de grave violência", afirma a docente, autora da obra Punição e cidadania: adolescentes e liberdade assistida na cidade de São Paulo.

"É fruto de uma política de drogas completamente equivocada, que trata o tráfico de drogas como uma questão penal e criminal, não como questão de saúde pública. As condições que levam adolescentes ao tráfico jamais mudam, ele volta para comunidade dele, volta a viver com as companhias que vivia. A ideia da liberdade assistida é ensiná-lo a viver no lugar onde ele está. Como querem ensinar o jovem a viver em sociedade internado? É ensinar o adolescente a nadar sem deixar entrar na piscina", analisa.

De acordo com o ECA, artigo 122, a internação deve ser utilizada em três casos:

  • I - tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência a pessoa;
  • II - por reiteração no cometimento de outras infrações graves;
  • III - por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta

Maíra  Zapater, professora de direito penal da FGV, concorda com Liana e complementa: "A gente está falando de uma institucionalização desses adolescentes. Tanto o ECA quanto o Sinase [Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo] são expressos em dizer que internação é exceção, porque você está retirando o adolescente do convívio social. É muito frequente que este adolescente fique no crime depois de adulto, é questão de não dar à internação a gravidade que ela tem".

A professora diz ainda que "o ECA prevê que não seja só o sistema de internação atuando, que a família desse adolescente deva ser colocada em um programa social, que esse adolescente deveria ter um acesso à educação e oportunidade de trabalho. Tem todo um outro arcabouço legal que poderia ser acionado, mas a gente fica olhando só para o sistema infracional tentando entender por que a internação isolada não funciona”.

De acordo com o levantamento mais atual do Sinase, de 2016, que engloba dados de todo o Brasil, 70% dos jovens apreendidos estão cumprindo medidas socioeducativas de internação. Além disso, o material mostra que São Paulo é o estado que tem mais jovens internados – corresponde a 36% de todos os estados brasileiros.

"Um primeiro ponto que se nota é um espelhamento do sistema adulto. Embora a gente tenha uma legislação completamente diferente em relação ao sistema adulto, essas internações estão reproduzindo o que o sistema prisional já produz com um fracasso estrondoso"

Maíra Zapater, professora de direito penal da FGV

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Para promotor, reincidentes foram liberados antes do tempo

Para o promotor de Justiça do Departamento de Execuções da Infância e da Juventude na cidade de São Paulo, Tiago de Toledo Rodrigues, o problema central está na pouca eficácia das medidas socioeducativas.

"Não é desenvolvido todo o potencial das medidas socioeducativas, o resultado não vai ser bom. Porque podia se fazer mais, muito mais. Há uma difusão da cultura da impunidade, essa postura da impunidade já foi assimilada pelos adolescentes porque eles sabem que, se forem internados, vão ficar pouco tempo. E isso sem dúvida alguma traz o aumento dos índices de infração".

O magistrado baseia seus argumentos no material desenvolvido pelo MP-SP sobre os jovens infratores na cidade de São Paulo. Segundo o levantamento, realizado entre agosto de 2014 e agosto de 2017, a maioria dos jovens ficam internados, no máximo, um ano, e apenas um adolescente ficou três anos (pena máxima permitida) internado na Fundação Casa.

"Tem adolescente aqui que é indicado para internação e em menos de 30 dias está de volta por outro ato infracional. É evidente que esse adolescente não deveria ter sido liberado. [Ele é liberado] porque vem uma série de laudos recomendando essa liberação. Basicamente, esses laudos são da própria Fundação Casa, ou seja, é uma autoavaliação. Quando a Fundação Casa avalia a internação, muitas vezes avalia positivamente".

Indagado se o judiciário exagera no uso de internações, Toledo Rodrigues rebate. "É muito pelo contrário. Qualquer um que se deparar com a análise prática vai perceber que o número de atos infracionais cometidos com violência e gravidade, ou seja, aqueles que autorizam a internação, é um número muito maior do que se tem de internações, poderia se internar muito mais".

Se há alguma relação fundamentada, de maneira estatística, entre potenciais internações e internações efetivas, essa relação é de subutilização de internação, e não de superutilização. Se reincidem, é porque foram liberados antecipadamente

O magistrado é favorável à disponibilização de mais vagas para internação e de um uso diferenciado das medidas socioeducativas, com, por exemplo, períodos de semiliberdade.

"Devemos utilizar os três anos de internação. O que adianta aumentar [os anos de internação] se não chega nem aonde já pode? A gente não sabe o que vai acontecer quando começarmos a utilizar o prazo máximo mais vezes. Pode ser que bata, pode ser que não, e aí poderemos entrar na discussão de aumentar o prazo máximo, mas o fato é que é absolutamente excepcional que se utilize o prazo máximo na cidade de São Paulo", afirma.

Severino Silva/Agência O Dia/Estadão Conteúdo Severino Silva/Agência O Dia/Estadão Conteúdo

Secretário associa aumento à atuação da PM

Para Márcio Elias Rosa, secretário de Justiça do Estado de São Paulo e presidente da Fundação Casa, além de uma "mudança na conformação social", esse aumento no número de reincidentes pode estar ligado ao êxito maior das ações da Polícia Militar nas apreensões dos adolescentes.

"A crise econômica pode ajudar a entender esse quadro, mas não justifica, não explica e também não acho que seja a energia para isso. O fato é que quando se tem um melhor policiamento, por exemplo, há uma constatação maior das práticas das infrações penais, seja dos jovens, seja por adultos", disse o secretário ao receber o UOL em seu gabinete.

"Os índices de atuação da Polícia Militar no estado de São Paulo mostram que está ocorrendo paulatino aumento da atuação policial. Há uma redução de quase todos os delitos, as menores taxas de homicídios no território nacional, isso pode ser resultante de uma maior abordagem por parte da Polícia Militar".

Segundo dados da SSP (Secretária de Segurança Pública), o número de homicídios em São Paulo, que não inclui execuções policiais, de fato, tem caído. No entanto, a letalidade policial é a maior em 22 anos.

Educação e empregabilidade

Elias Rosa discorda que o fato de o adolescente sair da internação antes do previsto pela Justiça, como apontam os dados do MP-SP, estimule a reincidência no crime. Ele afirma também que "quem aplica a medida e diz em que momento o adolescente se desliga é o poder judiciário. O ECA afirma que a medida pode durar até 3 anos para os atos infracionais de violência e grave ameaça à pessoa, mas ela é regida pela brevidade e excepcionalidade, menor tempo e com excepcionalidade para aplicar".

Para o secretário, outras medidas socioeducativas, como a liberdade assistida, deveriam ser mais utilizadas pelos juízes. "Advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviço à comunidade... A própria liberdade assistida deveria ganhar primazia na execução das medidas, reservando a internação, como diz a legislação, para as hipóteses excepcionalíssimas”.

Ele pede uma Política Nacional de Medidas Socioeducativas para minimizar os efeitos da reincidência e vê na educação e na empregabilidade as principais soluções para se pensar em uma redução no número de adolescentes apreendidos. "O adolescente só entra na Fundação Casa em razão de fatores desestruturantes da família, do meio social e pessoal. É preciso, de algum modo, restabelecer esses fatores estruturantes para que ele volte a ter convivência familiar e ele venha a ter convivências sociais sadias".

Secretário: Nenhum aumento de reincidência é positivo

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