Aquilombados em Muquém

O cotidiano de 185 famílias no único quilombo remanescente de Palmares

Lígia Hipólito Do BOL, em Alagoas
Dona Marinalva Silva é artesã. Foto: Beto Macário/BOL

Escrituras negras em páginas brancas

"Nós fomos a primeira comunidade negra a ter terra. Isso por volta de 150 anos atrás. Para os senhores de engenho, era um grande desafio. Então, não parou a guerrilha. Eles queriam tomar o Muquém de volta, mas não conseguiram. Na realidade, a gente tem sangue de guerreiro. Brigamos até cair a última gota de sangue pelos nossos direitos."

Nos relatos do ativista quilombola José Edson Bezerra da Silva, o Edinho, a história do Sítio Muquém ganha força e território. O local, que fica no município de União dos Palmares (AL), a 80 km de Maceió, foi oficialmente reconhecido em 2005 pela Fundação Palmares como a única comunidade de remanescentes de Palmares, o maior e mais resistente quilombo das Américas.  Estima-se que o início da formação date de mais de 200 anos, ainda no Brasil escravocrata. 

Os 189 hectares de terra foram comprados por um desconhecido que doou juridicamente para os moradores, estimulado pela popularidade do povoado muquenhense na produção de artesanato utilitário: panelas e peças decorativas de cerâmica.

 

Aos pés da Serra da Barriga

Com a destruição do Quilombo dos Palmares em 1695, os ideais de liberdade do povo negro firmados por Zumbi e seus contemporâneos resistiram à derrubada. Tanto que a comunidade passou um século e meio sendo vigiada pela coroa portuguesa para não formar outro quilombo em União dos Palmares (AL). 

Segundo histórias transmitidas pela oralidade, Muquém teria surgido quando cinco irmãs desceram a Serra da Barriga (onde viveu a Grande Federação Negra Palmarina, em Alagoas), se esconderam na região próxima ao rio Mundaú e deram início ao povoado. 

O sítio hoje abriga cerca de 750 pessoas. Uma parte vive do artesanato; outra parte vive da agricultura familiar - só para consumo (subsistência); e uma parcela significativa vive do corte de cana-de-açúcar, trabalhando em usinas. Essa atividade é a principal fonte de renda dos moradores e é realizada exclusivamente por homens.

Além da Usina Serra Grande, que fica em Alagoas, usinas de outros Estados também contratam a mão de obra dos muquenhenses, o que faz com que alguns deles fiquem longos períodos distantes de suas famílias.

Com isso, são as mulheres que organizam e lideram a comunidade. É o caso de Albertina Nunes da Silva, presidente da Associação dos Remanescentes de Quilombo de Muquém. Responsável pelas articulações de políticas voltadas à comunidade, ela observa que cerca de 80% da população feminina está desempregada. "É um quadro preocupante, mas ainda não temos programas para reverter esses números. O sonho da gente é construir uma sede para a associação ter um local para nos organizarmos e receber as pessoas que trazem projetos pra cá. Porque ainda não conseguimos fazer grandes projetos. Temos que procurar alguém para fazer e queremos elaborar esses projetos", afirma. 

Artesanato de Muquém: uma história contada a muitas mãos

Ligia Hipólito/BOL Ligia Hipólito/BOL

Patrimônio vivo de Alagoas

Tradição secular, o artesanato advindo das peças de barro atravessa gerações em Muquém. O ofício garantiu inclusive, há cerca de 150 anos, a doação das terras do quilombo por conta da popularidade das peças na região de Alagoas e até em outros Estados.

Panelas, cabeças e artigos decorativos são moldados por mãos como as de Dona Irinéia Rosa Nunes da Silva, uma das principais artesãs da comunidade. Entre os trabalhos mais significativos dela, destacam-se a jaqueira e a lenha (foto), inspiradas na superação de um desastre natural.

Durante a cheia que atingiu o município de União dos Palmares (AL) em 18 de junho de 2010, 52 pessoas se salvaram ao subir em dois pés de jaca; outras cinco, entre elas Dona Irinéia, ficaram horas sobre um pedaço de lenha. "Graças a Deus, sobrevivemos para contar a história", comemora a artesã, que é reconhecida como patrimônio vivo pelo Estado de Alagoas. 

Além de dona Irinéia, outros sete artesãos mantêm a cultura, amparados pela Associação dos Remanescentes de Quilombo de Muquém: Albertina Nunes da Silva, Antônio Nunes (marido de Dona Irinéia), José Edson Bezerra da Silva (o Edinho), Julieta da Conceição, Maria das Dores da Conceição, Marinalva Silva e Monica Nunes da Silva.

Beto Macário/BOL Beto Macário/BOL

A arte como protesto

O artesanato de José Edson Bezerra da Silva, o Edinho, segue uma linha um pouco diferente da dos demais. A obra da imagem, por exemplo, fica no quintal dele e é um protesto contra a falta de saneamento básico no Brasil, visto que 34 milhões de brasileiros não têm acesso à água potável, de acordo com Dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, em 2017. Em Muquém, embora não haja números oficiais, a política pública atende, de acordo com a comunidade, apenas aos moradores das 120 casas do conjunto habitacional, sendo que outras 65 famílias vivem nos arredores.

Por fazer aproveitamento consciente dos materiais que o cercam, Edinho se considera um ambientalista: "Às vezes, a gente está jogando dinheiro no lixo. Nós temos o caminhão coletor, que vem três dias por semana, e as pessoas ainda jogam lixo no mato ou levam para jogar dentro d’água. É uma batalha que eu tenho diariamente aqui. Até formamos um grupo, o Ecologia Quilombola, com jovens de 11 a 14 anos trabalhando com reciclagem para conscientizar as pessoas que lugar de lixo é no lixo. E nem tudo o que vai para o lixo é lixo".

Na casa do artesão, móveis de concreto ressaltam que ele é um amigo da natureza e que a "defende com unhas e dentes", já que, dessa forma, ele não contribui com a derrubada de árvores para a construção de mobília de madeira.

Saúde, educação, infraestrutura

A Associação dos Remanescentes de Quilombo do Sítio Muquém, fundada em 1993, é o principal meio pelo qual os quilombolas buscam políticas públicas dos governos federal e municipal. A atual presidente, Albertina Nunes da Silva, sinaliza conquistas importantes, como, por exemplo, o conjunto habitacional e o posto médico.

"De 2010 pra cá, após a cheia que deixou 86 famílias desabrigadas, ganhamos o conjunto do 'Minha Casa, Minha Vida', que tem 120 residências. Temos o espaço de artesanato, o espaço de eventos e o centro ecumênico. Na área da saúde, uma equipe formada por médico, dentista, ginecologista, técnicos de enfermagem está à disposição da comunidade. Eu sou diretora do posto e posso dizer que a saúde não é 100%, mas é bem atendida", avalia.

Há também uma escola que contempla Ensino Fundamental 1 e 2 (até o 9º ano) e o EJA (Educação para Jovens Adultos). "Antigamente, a educação aqui era muito diferenciada. Hoje não é mais assim, temos mais a cultura dentro da escola. Um pouco da história da nossa comunidade é levada aos nossos alunos, o que não tínhamos antes. Lembramos da cultura da comunidade para apontar na escola, como por exemplo o artesanato. Tem uma professora da comunidade dando aula de história, falando sobre Zumbi e a história do povo negro. Anteriormente, nossa comunidade era isolada, esquecida. Mas, através do trabalho de Irinéia (artesã), o reconhecimento como patrimônio vivo, a comunidade cresceu e evoluiu bastante", conta Albertina.

A partir do Ensino Médio, os alunos precisam transferir os estudos para alguma unidade escolar em União dos Palmares (AL), sendo que a comunidade tem transporte para levar e trazer nos três períodos: manhã, tarde e noite.

Apesar de avanços, a comunidade ainda é desassistida em questões importantes apontadas por Albertina: “Temos um problema muito grande com água. Uma rede vem da cidade até a comunidade, só que as pessoas que vieram morar perto dessa rede desviaram o fluxo da água. A estrada no inverno também é uma dificuldade. Não conseguimos receber ninguém nessa época e ficamos até sem acesso para ir até a cidade, porque o acesso fica praticamente isolado, por conta das chuvas e das condições ruins da estrada de terra. O saneamento básico também deixa muito a desejar. Falta muita coisa para ser resolvida. Principalmente as pessoas (65 famílias) que moram fora do conjunto e não são assistidas por parte das políticas públicas”.

“Precisamos também do apoio social, temos muitas crianças e só temos o apoio da pastoral da criança, que não é abrangente. Carecemos igualmente de infraestrutura aqui dentro. Por exemplo, temos dificuldades com a manutenção dos espaços. Um espaço como centro de eventos tem várias lâmpadas, algumas estão queimadas e não temos condições de arrumar. Caçamos parceiros para essas coisas e, às vezes, não encontramos", lamenta.

Beto Macário/BOL Beto Macário/BOL

Uma guerreira quilombola

Fora do conjunto habitacional, existem mais 65 famílias, algumas ainda vivendo em casas de taipa e outras que, por conta própria, fizeram construções de alvenaria; é o caso de Maria das Dores da Conceição.

A aposentada de 67 anos vendeu um bezerro para concretizar seu sonho. "Fiquei um ano e meio na barraca que o governo mandou após a cheia de 2010. Aí, pensei: 'Meu Deus, quero ter uma casa'. Comprei R$ 750 de blocos, paguei a mão de obra e fui construindo aos poucos. Não sei se é palácio, não sei se é casa, só sei que eu tô dentro dela todo dia", diz, aliviada. 

Das Dores, atualmente, vive da aposentadoria que conseguiu como agricultora e também da venda de seus artesanatos, mas lembra de algumas passagens da infância bem difícil: "Em 1970, nós quase que morremos de fome. Foi uma fome, uma fome... Aí, colhemos umas poucas mandiocas para saciar. Quando eu era meninota, eu só tinha uma calça. Hoje tem tanta roupa que a gente até sacode".

Ela vem de uma família de dez irmãos e foi a única que não se casou: "Não casei, fiquei pra sofrer. Mas foi melhor, né? Vejo por aí que tem mulher matando marido, marido matando a mulher. Tenho duas meninas que eu criei (são filhas da sobrinha dela)".

Beto Macário/BOL Beto Macário/BOL

Edinho, um quilombola ativista

Porta-voz da história de Muquém, José Edson Bezerra da Silva, o Edinho, conta que o povoado muquenhense cresceu com o consentimento de uniões consanguíneas: "Meu tataravô ordenou que se casassem primo com prima para que não tivesse problema na partilha de terra, caso houvesse separação. Com a morte dele, a família quebrou o tabu e começou a casar com pessoas de fora. Mas, bem antes disso, um senhor que comprou Muquém doou para o meu tataravô de papel passado". 

Após o falecimento do tataravô de Edinho, o território de Muquém foi inventariado: saíram 16 escrituras. "Deu certo, mas, por outro lado, foi ruim porque as pessoas começaram a vender pedacinhos do Muquém. Isso pra mim é uma tristeza. Terra não se vende, eu sou o quinto administrador. Me sinto orgulhoso. O Brasil é tão grande, tão cheio de ratos e gabirus, e eu tenho um pedacinho de terra dentro do Brasil. Ninguém arranca esse orgulho, só Deus no dia em que ele me chamar", afirma o artesão. 

Polêmica da titulação

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Chegada do Incra

O dia 18 de junho de 2010 se tornaria um divisor de águas para a comunidade. Foi quando uma forte cheia atingiu o município de União dos Palmares (AL) e deixou 86 famílias do quilombo desabrigadas. Dada a situação de emergência, o Estado foi acionado e, consequentemente, o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) chegou ao local, propondo a titulação das terras.

"Eles falaram que pegariam de volta os terrenos que foram vendidos e outros que foram tomados. Aceitamos o Incra aqui dentro. Mas aí, aos poucos, algumas pessoas foram abrindo a mente e fomos percebendo que não era bom para nós. Porque Muquém já era antes uma escritura só. E depois ter que anular esses 16 papéis (inventário) para se tonar um papel só novamente, aí eu não ia mais ser dono da minha casa, ia morar aqui na terra do governo. Porque foi isso que eles passaram para nós, ficaríamos aqui coletivos. Aí seria como se eu tivesse morando aqui a favor. Isso enquanto o governo quisesse", explica Edinho.

O ativista conta que, diante desse cenário, decidiu agir: "Então, eu fui o primeiro cara a botar minha arma na mão. Mas que arma? Uma caneta e um papel para fazer um abaixo-assinado. Já que procuramos um advogado em Maceió, e ele falou: 'Se a comunidade deu o aval para o Incra entrar, só a comunidade pode tirar'. Primeiro, eu consegui 109 assinaturas. Saí conversando com as pessoas e consegui 152 assinaturas. Se o governo não está dando suporte pra gente como quilombola, ia dar como moradores dele? Foi uma luta e expulsamos o Incra do Muquém. Pronto! O Incra aqui não pisa mais".

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Titulação rejeitada

O processo de titulação foi, de fato, arquivado a pedido da comunidade, após a realização de uma reunião com as famílias de Muquém, em março de 2013, com participação do Incra, da Fundação Cultural Palmares e da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir).

É uma situação atípica no que diz respeito ao julgamento de titulação de terras quilombolas que corre no STF (Supremo Tribunal de Justiça) e tem como objetivo reconhecer a propriedade definitiva dos territórios ocupados por remanescentes de quilombos, dando a eles segurança jurídica. Por já ter escritura, Muquém se difere dos demais quilombos, que estão com situação de ocupação irregular.

Allyne Andrade, advogada, mestre e doutoranda em Direitos Humanos com foco em questões raciais, explica que o Brasil é signatário da Convenção 169 da OIT (Dec. 5051/2004) que reconhece o Direito à autodeterminação de Povos e Comunidades Tradicionais. Sendo assim, a decisão dos muquenhenses é amparada pela lei. "Cabe aos quilombolas assumir o controle de suas próprias instituições, formas de vida e seu desenvolvimento econômico. É importante respeitar o que foi decido por eles e não impor um processo de reconhecimento", ressalta.

A determinação, no entanto, não impede o povoado de ser atendido pelas políticas públicas do Brasil Quilombola, programa do governo voltado aos remanescentes de quilombos, desde que a comunidade seja registrada como tal junto à Fundação Palmares, o que já aconteceu com Muquém.

Resgate da cultura quilombola

Com o passar dos anos, alguns traços importantes da cultura afro-brasileira, propagada pelos quilombolas, foram caindo no esquecimento em Muquém. Hoje, com o trabalho de resgate liderado por Albertina Nunes da Silva, presidente da Associação dos Remanescentes de Quilombo de Muquém, e Aldo Delmiro Nunes, membro da diretoria da associação, as conexões com a ancestralidade se fortaleceram.

"Queríamos montar grupos de atividades, mas não tínhamos ideia de como começar. Aí trouxemos uma professora de dança afro para cá para dar uma ideia. Ela ficou uns três meses, e as meninas foram pegando o jeito. Por isso, hoje temos a dança afro. Agora a professora é daqui e as alunas também; só queríamos ver como funcionava. Aí fomos em busca das danças daqui, de dentro do quilombo. O samba de coco já existia há muitos anos, passado de geração a geração por nossos antepassados, que usavam essa dança para tapagem das casas de barro. Quando terminava a tapagem, eles selavam o chão da casa com essas danças. Eles batucavam nos baldes, nas bacias e finalizavam. Só que isso ficou um pouco esquecido. Foi quando resgatamos. Procuramos as pessoas idosas, que sabiam os passos e poderiam ensinar para os mais jovens. Já nos apresentamos em vários lugares. É um momento muito bom para a comunidade porque apresentamos com os idosos", relata Albertina.

Como resultado dos esforços, Muquém agora tem grupos de capoeira e dança afro adulta. As matrizes africanas também foram contempladas no processo. "Eu vi que precisávamos de um espaço de acolhimento e criamos o centro ecumênico para todas as religiões, porque não podemos ser contrários a nenhuma religião, principalmente a de matriz africana, que faz parte da nossa história e da nossa cultura. É um espaço que temos para receber todas as religiões, como a Mãe Neide, que faz um evento todo ano, e a comunidade participa junto com ela. Não temos terreiro na comunidade; nós tínhamos antes, mas acabou com os sacerdotes que foram morrendo e até mesmo a enchente de 2010 que destruiu boa parte. E nós entendemos que temos que abraçar [todas as religiões], acolher mesmo, estar junto", finaliza Albertina.

Quilombola não é só quem nasce na comunidade de Muquém. Pra mim, quilombola é toda a região de União de Palmares (AL). Nasceu na região de União dos Palmares é quilombola. Nasceu fora também é quilombola. Porque quilombola é aquela pessoa que aceita ser quilombola."

José Edson Bezerra da Silva, o Edinho

José Edson Bezerra da Silva, o Edinho

Ligia Hipólito/BOL Ligia Hipólito/BOL

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