Onde estão os 43?

4 anos depois do massacre, México ainda não esclareceu o que aconteceu com os estudantes de Ayotzinapa

Alex Tajra Do UOL, em São Paulo
JORGE DAN LOPEZ/REUTERS

Numa madrugada fria de setembro de 2014, cerca de cem estudantes mexicanos partiram para Iguala, pequena cidade do estado de Guerrero, para "sequestrar" alguns ônibus - prática comum entre os estudantes de escola pública do México. O objetivo: usar os veículos para chegar a capital Cidade do México e arrecadar fundos para um protesto contra o massacre de Tlateloco, onde centenas de pessoas foram assassinadas pela polícia em 1968.

A viagem se transformou em uma metalinguagem. Cinco ônibus foram capturados pelos estudantes mas, antes mesmo de sair do estado de Guerrero, foram alvejados por policiais. Seis pessoas morreram com os tiros – três pessoas que transitavam no local e três estudantes. Um ônibus com outros 43 estudantes foi sequestrado por policiais, que os entregaram a membros do cartel "Guerreros Unidos". Os estudantes foram colocados em um caminhão, transportados para um lixão em Cocula, cidade no mesmo estado, e executados um a um.

O massacre, que completou quatro anos na última semana, permanece sem explicações concretas, e os corpos dos estudantes nunca foram encontrados. 

Em outubro de 1968, soldados do Exército e da polícia mexicana cercaram uma praça em Tlatelolco, município da Cidade do México, tomada por uma manifestação de mais de 5.000 pessoas, e abriram fogo contra a multidão. Não houve consenso sobre o número de mortos --enquanto o governo apontava para 40, o jornal britânico The Guardian concluiu que pelo menos 350 pessoas morreram. Era contra esse ataque que os estudantes da Escola Normal Rural de Ayotzinapa preparavam uma manifestação no dia 2 de outubro daquele ano.

“O México sempre foi um país muito difícil para quem se envolve com as lutas sociais, em especial para os ativistas políticos. E o governo tem um histórico de acobertar muitas coisas”, disse, em entrevista ao UOL, o professor-colaborador de Relações Internacionais da Universidade Federal Fluminense, Danillo Avellar Bragança.

Não só na violência dos massacres e no ativismo das vítimas reside a semelhança entre os casos de Tlatelolco e Ayotzinapa. O papel do Estado foi preponderante nos dois casos, e nos assassinatos dos estudantes da Escola Normal de Ayotzinapa ainda houve um conluio entre as forças policiais, traficantes do estado de Guerrero e membros do alto escalão do poder executivo, incluindo o prefeito de Iguala.

A versão oficial, ou a ‘verdade histórica’, como chama o governo, foi derrubada muito rápido. Houve uma montagem de provas, testemunhas foram torturadas. O mais lamentável de tudo isso é que o Estado, depois de quatro anos, não conseguiu localizar as vítimas, apresentou uma versão falsa e protegeu as instituições, como o Exército e a polícia
David Bergeen, educador e ativista mexicano de 29 anos que participou de manifestações contra o massacre de Ayotzinapa

Reprodução/ Escuela Normal Rural Reprodução/ Escuela Normal Rural "Raúl Isidro Burgos"

O legado das Escolas Normais

No início dos anos 1920, a Revolução Mexicana, depois de uma série de embates e guerras --tanto em suas próprias fileiras quanto em conflitos com grupos contrários ao movimento -- ainda tentava consolidar as raízes de uma nova sociedade. As normales rurales eram uma das facetas dessa nova organização social: escolas rurais que faziam parte de um projeto para expandir rapidamente a educação básica no país, visando, principalmente, as famílias pobres do campo e os indígenas.

As Escolas Normais sempre tiveram um projeto educacional que transcende os padrões tradicionais, e foram pensadas para formar líderes comunitários. Nestas instituições não se aprende só matemática e geografia, mas produção agrícola e línguas indígenas. 

Com o tempo, as normales se transformaram em centros de pensamento crítico no México. No fim dos anos 1960 (mesmo período do massacre de Tatleloco), quando o país era governado pelo juiz Gustavo Díaz Ordaz Bolaños, houve uma empreitada contra a instituição, e muitas instituições foram fechadas.

Segundo o jornal mexicano Excelsior, atualmente existem apenas 17 escolas rurais no país, entre elas a Escola Normal Rural Raúl Isidro Burgos (foto), em Ayotzinapa, de onde saíram os 43 estudantes desaparecidos.

ERIC CHAVELAS / AFP ERIC CHAVELAS / AFP

Lacunas na investigação

Oficialmente, o México encerrou as investigações em 2015, quando a Procuradoria-Geral da República divulgou a versão final das investigações. As autoridades mexicanas concluíram que os 43 estudantes foram presos pela polícia e depois entregues aos algozes. As mortes foram tratadas como uma "briga de facções" pela PGR, com o envolvimento do então prefeito de Iguala, José Luis Abarca, e de autoridades do Estado de Guerrero.

Foi a mando de Abarca que os estudantes foram detidos pela polícia, inicialmente com o intuito de impedir a manifestação estudantil num evento onde sua mulher, María de los Ángeles Pineda, divulgaria resultados do Sistema Municipal para Desenvolvimento Integral da Família. Abarca e Pineda foram presos em novembro de 2014, acusados de orquestrar o assassinato dos 43 estudantes.

Em 2016, os dois foram condenados por um tribunal federal mexicano por delinquência organizada, lavagem de dinheiro e enriquecimento ilícito. Segundo reportagem do jornal La Jornada, a Justiça Federal entendeu que a Procuradoria-Geral mexicana havia reunido indícios suficientes apenas para processá-lo por estes três crimes, sem incluir sua responsabilidade no massacre de Ayotzinapa.

As informações, no entanto, além de contraditórias não explicitaram os reais motivos do crime. Investigações feitas pela repórter mexicana Anabel Hernández mostraram que, além da polícia local, também havia carros da Polícia Federal e do Exército na operação que sequestrou os 43 jovens.

"Os protagonistas desse massacre são Humberto Castillejos [conselheiro jurídico do presidente Peña Nieto até 2017], o homem mais forte do governo federal, que se encargou de encobrir a investigação, (...) e Luis Enrique Miranda Nava, subsecretário de governo. Esse grupo é a chave do que passou naquela noite", disse Hernández a um programa de televisão mexicano em 2016, afirmando ainda que teve de se exilar do país em função da investigação que estava fazendo.

O Estado mexicano tem muita responsabilidade neste crime. Houve participação direta dos agentes do Estado, inclusive muitos grupos tentaram criminalizar o presidente Enrique Peña Nieto, afirmando que ele teria tido participação direta. A Justiça mexicana, entretanto, não levou para frente essas acusações
Danillo Avellar Bragança, professor-colaborador de Relações Internacionais da Universidade Federal Fluminense

  • Violência

    Nas eleições disputadas neste ano 152 políticos foram assassinados, de acordo com a consultoria Etellekt. Destes, 48 eram candidatos ou pré-candidatos aos postos que estavam em jogo neste ano. Só no dia 1º de julho, data da eleição, 7 políticos foram assassinados

  • Recorde

    29.168 pessoas foram mortas no México em 2017, o maior número da história do país. Dados oficiais mostram que o país teve uma taxa média de 20,5 assassinatos para cada 100 mil habitantes - no estado de Guerrero esse número sobe para mais de 100 pessoas para cada 100 mil.

DANIEL BECERRIL/REUTERS DANIEL BECERRIL/REUTERS

Começo do fim

Para o professor da Universidade Federal Fluminense, os assassinatos dos estudantes representaram o começo de uma derrocada do governo de Peña Nieto, que culminou no resultado pífio de seu Partido Revolucionário Institucional (PRI) no pleito presidencial deste ano. Andrés Manuel López Obrador, do partido de esquerda Morena, foi eleito com 53% dos votos, acabando com uma hegemonia de décadas dos tradicionais PRI e Partido da Ação Nacional (PAN).

“O massacre de Iguala foi um prenúncio de que aquela polarização entre PAN e PRI, que dominou o México desde 1930, estava ruindo. Além do aumento de mortes, que atingiu um número recorde no ano passado, e da interferência dos militares na segurança pública, o governo não solucionou o crime e muitas explicações não foram dadas. A população identificou isso e elegeu outro projeto com outras ideias”, explica Bragança. 

Já Bergeen toca em um ponto delicado da política mexicana: a relação promíscua entre parte dos políticos com os cartéis. Segundo o ativista, as campanhas eleitorais no país muitas vezes são financiadas pelo narcotráfico, o que transforma o pleito numa guerra.

“Há décadas o governo mexicano reprimiu as Escolas Normais por conta de suas formações políticas. Mas, no caso de Ayotzinapa, a ideologia da escola não foi responsável pelo ataque, e sim o narcotráfico, onde o Estado mexicano tem muito interesse. Por isso que os movimentos sociais não aceitam a ‘verdade histórica’ e continuam dizendo: ‘foi o Estado’.”

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