Envenenados dentro de casa

Estudo aponta que pulverização de agrotóxicos gera doentes em escolas, casas e aldeias de todo o Brasil

Marizilda Cruppé/Human Rights Watch

Era maio de 2013 quando um avião pulverizou agrotóxicos sobre a escola rural São José do Pontal, localizada em meio a vastas plantações de milho e soja na cidade de Rio Verde, em Goiás. Cerca de 90 pessoas --a maioria delas crianças-- foram imediatamente hospitalizadas. Apesar da comoção momentânea, não houve mudanças na aplicação de pesticidas nas lavouras.

Para retratar essa realidade, entre julho de 2017 e abril deste ano, a Human Rights Watch, ONG internacional que atua em defesa dos direitos humanos, entrevistou 73 pessoas afetadas por agrotóxicos em comunidades rurais, indígenas e quilombolas e em escolas rurais nas cinco regiões do Brasil.

O estudo aponta que moradores vêm sendo expostos a elementos químicos preocupantes nas proximidades de suas casas, escolas e locais de trabalho por todo o Brasil. O veneno jogado em plantações acaba se dispersando durante a aplicação ou evapora e atinge áreas adjacentes nos dias subsequentes.

Marizilda Cruppé/Human Rights Watch Marizilda Cruppé/Human Rights Watch

25 tiros, 1 morto e ninguém condenado

Afetados pelos produtos lançados descreveram intoxicação aguda e sintomas que incluem sudorese, frequência cardíaca elevada, vômitos, dor de cabeça e tontura. A exposição crônica também foi associada à infertilidade, a impactos no desenvolvimento fetal e ao câncer.

Segundo o levantamento, pessoas expostas a agrotóxicos frequentemente estão em comunidades pobres, enquanto os responsáveis são os vizinhos proprietários de grandes fazendas. “As pessoas que se queixam sobre a exposição a agrotóxicos podem sofrer ameaças e temem retaliações”, diz o relatório.

Em abril de 2010, por exemplo, o agricultor rural e ativista José Maria Filho foi baleado 25 vezes quando voltava para casa em Limoeiro do Norte, no Ceará. 

O Ministério Público disse acreditar que ele tenha sido assassinado em razão das denúncias contra a pulverização aérea e a contaminação da água na região. Embora quatro suspeitos tenham sido denunciados em 2010, ninguém foi julgado até hoje.

Marizilda Cruppé/Human Rights Watch Marizilda Cruppé/Human Rights Watch
Marizilda Cruppé/Human Rights Watch Marizilda Cruppé/Human Rights Watch

"Você não passa de dezembro"

No ano passado, moradores pediram a proibição da pulverização aérea na cidade de Boa Esperança, no Espírito Santo. Um padre que ajudou a organizar um abaixo-assinado contra a atividade acabou ameaçado. “Inicialmente, recebi mensagens avisando para eu me cuidar. Então, agrônomos começaram a me enviar vídeos pornográficos. Depois, recebi ligações com ameaças do tipo: ‘Você não passa de dezembro’”.

Uma comunidade com algumas centenas de indígenas guaranis-kaiowás também sofre com as pulverizações que atingem suas cabanas em uma pequena floresta ao redor de um córrego, a poucas horas de carro de Campo Grande, capital de Mato Grosso do Sul. Jakaira, 40, é um dos que vivem na região. Está lá há dez anos com a mulher e os três filhos.

Foi de manhã cedo, por volta das 8h. O trator estava pulverizando e senti o cheiro [do agrotóxico]. Dava para ver o líquido branco [no ar]. Você sente uma amargura na garganta. Você se sente fraco, não consegue se levantar, fica com febre e dor de cabeça. Você coloca a mão na cabeça e sente ela latejando. Quando recebi alta do hospital, o médico me disse para eu me proteger, mas não tem jeito

Jakaira, índio guarani-kaiowá em depoimento ao estudo

Marizilda Cruppé/Human Rights Watch Marizilda Cruppé/Human Rights Watch

Números duvidosos

Segundo o Ministério da Saúde, 4.003 pessoas foram intoxicadas por agrotóxicos no Brasil em 2017 --ou quase 11 por dia--, das quais 148 morreram.

Mas ninguém sabe ao certo qual a extensão do problema, já que, de acordo com a própria pasta, cerca de 67% dos municípios em todo o país não enviam nenhuma informação sobre o assunto ao governo federal. Segundo o ministério, "é possível que a exposição crônica [a agrotóxicos] esteja subnotificada, reflexo da baixa capacidade dos serviços de saúde de reconhecer e captar casos desse tipo [de exposição]".

Um mercado de US$ 10 bilhões

O Brasil é um dos maiores consumidores de agrotóxicos do mundo. As vendas anuais giram em torno de US$ 10 bilhões, ou R$ 38 bilhões em valores atuais. Em 2014, cerca de 1.500 toneladas foram vendidas para compradores brasileiros ou 7,5 kg de agrotóxicos por pessoa a cada ano.

A introdução de técnicas agrícolas mecanizadas e o uso intensivo de fertilizantes e agrotóxicos levaram a altos ganhos de produtividade. Nos últimos 40 anos, as terras usadas para o cultivo de grãos aumentaram em mais de 60% e a produtividade triplicou. Foram 238 milhões de toneladas de grãos na safra 2016-2017.

Os altos níveis de pesticidas se devem especialmente à monocultura em grande escala. De todos os agrotóxicos vendidos no Brasil, cerca de 80% são usados em plantações de soja, milho, algodão e cana-de-açúcar.

Marizilda Cruppé/Human Rights Watch Marizilda Cruppé/Human Rights Watch

Proibidos na Europa

Dos dez agrotóxicos mais utilizados no Brasil em 2016, nove são considerados altamente perigosos pela ONG Pesticide Action Network International. Quatro desses químicos não estão autorizados na Europa.

Cerca de metade dos agrotóxicos utilizados no Brasil tem origem estrangeira. Em 2012, o Brasil importou US$ 5,4 bilhões em produtos desse tipo, 55,6% do mercado naquele ano. Empresas com sede nos Estados Unidos e na China foram as maiores fornecedoras.

O Programa da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA) monitora 232 tipos de agrotóxicos em 25 tipos de alimentos, como frutas, vegetais e cereais. Das 12 mil amostras coletadas ente 2013 e 2015, 20% continham resíduos, excederam os níveis permitidos ou continham agrotóxicos não autorizados. O PARA reconhece, no entanto, que seu monitoramento não inclui os dois agrotóxicos mais usados no Brasil porque eles exigem métodos de análise diferentes daqueles empregados em seus laboratórios.

Marizilda Cruppé/Human Rights Watch Marizilda Cruppé/Human Rights Watch

'Sensação de que ia vomitar'

Teresa é uma menina de dez anos que frequenta uma escola no município de Cascavel, Paraná. Ela não tirou da memória uma pulverização perto de sua escola, onde estudam 200 crianças. “O trator amarelo começou a pulverizar de repente: ouvimos o barulho da máquina, dava para ver pelas janelas da sala de aula. Eu tive uma forte dor de cabeça, dor de barriga e a sensação de que ia vomitar.” 

Sintoma parecido relatou Bernardo, 30, morador de uma comunidade quilombola com cerca de 60 pessoas a poucas horas de Belo Horizonte. Ao lado de algumas mangueiras e bananeiras, os moradores cultivam feijão, abóbora, milho e quiabo em pequenas hortas. A 20 metros dali, uma grande plantação de cana-de-açúcar recebe pulverização de agrotóxicos.

Se aparece um avião, entro em casa. A gente sente [os agrotóxicos] caindo na pele. Nós temos problemas com aviões há uns dez anos. Fizemos várias ocorrências no quartel, na delegacia. Mas não resolve, não existe justiça

Bernardo, morador de uma comunidade quilombola em Minas Gerais

Mudanças à vista em projeto no Congresso

Um projeto de lei aprovado por uma comissão da Câmara dos Deputados em junho deste ano pretende modificar a fiscalização já existente.

O texto, que ainda precisa passar por votações no plenário antes de ir à sanção presidencial, pede a redução do papel da Anvisa e do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) no processo de autorização de novos agrotóxicos, limitando o envolvimento de agências especializadas nos impactos dos agrotóxicos à saúde e ao meio ambiente.

A proposta deve voltar a ser discutida após o recesso parlamentar e tem recebido críticas de várias instituições.

Marizilda Cruppé/Human Rights Watch Marizilda Cruppé/Human Rights Watch

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