Mãe, prostituta e pró-aborto

Com filho de 11 anos, argentina defende legalização da prática e diz: 'Sofro mais como mãe do que na rua'

Bruno Aragaki Do UOL, em Buenos Aires
Maryana Campello/UOL

Nas ruas, nas redes sociais e no Congresso, muitos são os argumentos que polarizam a opinião pública argentina às vésperas da votação no Senado, na próxima quarta-feira (8), da lei que pode tornar o aborto não só permitido, mas gratuito nos hospitais públicos do país vizinho.

O tema também está na pauta do dia do Brasil - o STF inicia audiências sobre proposta de despenalização nesta sexta-feira (3).

Na Argentina, segundo pesquisa da Universidad San Andrés do mês passado, a maioria da população já tem uma posição - apenas 6% declararam não ter opinião sobre a legalização do aborto.

Do dever de proteger a vida do feto, evocado por quem se opõe à lei (49% da população, segundo o mesmo instituto), à constatação de que os abortos clandestinos são uma realidade e uma questão de saúde pública (ponto central dos 45% que apoiam a legalização), as justificativas dos dois lados não chegam a ser inéditas.

“O problema é que sempre ouvimos as mesmas pessoas”, disse ao UOL Georgina Orellano, 32. Presidente da Associação de Mulheres Meretrizes da Argentina (Ammar), ela diz ecoar aquilo que se fala pelas esquinas de Buenos Aires, mas pouca gente quer ouvir.

"As prostitutas também abortam, com lei ou sem lei", afirmou em entrevista na sede da associação, em Buenos Aires. Confira alguns trechos dessa conversa:

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Ganhando a vida com o corpo

Aos 19 anos, Georgina decidiu utilizar o corpo para ganhar a vida. Ao terminar o ensino médio, tentou uma vaga de faxineira em uma fábrica - mesmo trabalho da maioria dos seus vizinhos, na periferia de Buenos Aires. Mas se irritou ao saber que uma parcela do salário, já baixo, seria retida pela empresa que terceirizava o serviço.

"Então fui trabalhar de babá na casa de uma mãe solteira. Via que ela tinha horários flexíveis, ia às reuniões de escola dos filhos, coisa que minha mãe nunca conseguiu fazer, e uma vida confortável. Ela dizia que trabalhava em um hotel, por isso sempre trazia esses sabonetes e xampus para casa", relembra.

Um dia, enquanto compartilhavam o chimarrão, sua patroa perguntou a Georgina quais eram seus planos para o futuro. "Respondi: 'Quero fazer o mesmo que você'." Em alguns meses, Georgina tinha agendado seu primeiro programa.

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Fonte de renda, prazer e sofrimento

À frente de uma campanha pela legalização da prostituição na Argentina (lá, como aqui, a ocupação não é proibida, mas também não é regulamentada), Georgina reivindica o direito de utilizar o corpo como fonte de renda e de prazer.

Para isso, orienta as cerca de 5.000 filiadas à associação que preside a lidar com os efeitos colaterais dessa escolha, como o preconceito, as doenças sexualmente transmissíveis e a gravidez indesejada.

Como somos marginalizadas, pouca gente vem nos explicar nossos direitos, que ninguém pode te prender por ser prostituta, que, além do preservativo masculino, tem o feminino, ou quantos comprimidos é preciso tomar para abortar. Vi colegas tomarem um ou dois, achando que seria suficiente. O feto morre, o corpo não expele, a mulher tem uma infecção e morre

A Ammar desenvolve oficinas que explicam a interessadas como se prostituir com segurança e reforçam métodos para evitar gravidez e DSTs. A associação também orienta as prostitutas sobre maneiras seguras de abortar. De acordo com a legislação atual argentina, o aborto é crime punível com até quatro anos de prisão.

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Escolhas da prostituta

Escolhi esse trabalho. Ele é incomparável em remuneração e autonomia. Me permitiu conciliar maternidade e trabalho, coisa que outros empregos não contemplam, principalmente porque a gente precisa ser mãe, ter 100% das responsabilidades do lar e da criação do filho

sobre prostituição e maternidade

A escola pediu que as crianças desenhassem a mãe. Ele me desenhou de pé, ao lado de um carro, e escreveu 'trabalhadora sexual'. A professora corrigiu, disse que era 'trabalhadora social' e me chamou para conversar. Eu expliquei e me surpreendi: a escola não me julgou

sobre a relação mãe e filho

O pai me denunciou ao conselho tutelar e passei por uma investigação. O juiz viu que tinha uma casa organizada, que pagava uma escola cara a meu filho e era uma mãe presente. Quem levou bronca foi o pai, que não contribui para a renda ou educação do filho

sobre o aval da Justiça

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'Abortei três vezes'

Mãe de Santino, 11, Georgina engravidou de um ex-namorado que conheceu durante o trabalho --ele era seu cliente. Ao saber da gravidez, ela parou de trabalhar e foi morar com o pai da criança. Mas a relação não deu certo e, ao saber que esperava um segundo filho, o casal decidiu abortar.

"Com clientes, uso camisinha. Mas na vida privada, talvez por imaturidade, ou sei lá, no calor do momento, deixava de usar. E engravidei. Mas já tinha visto que a maternidade não é esse conto de fadas que contam."

Ninguém diz que ser mãe é ser escrava. Sofro mais como mãe do que na rua, trabalhando. Não que me arrependa de ter tido meu filho. Mas não queria mais

"Tem que ser uma escolha. E ser mãe uma vez me obrigou a repensar as minhas: afeta o corpo, impacta a rotina, muda a vida. Sou uma mulher responsável, não poderia ter outro filho. Abortei três vezes e não me arrependo."

Micaele Martins / Arte/UOL
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Verde contra azul

Buenos Aires foi tomada por uma avalanche verde nos dias que precederam a votação da lei do aborto na Câmara de Deputados, em 14 de junho. "Se não fosse essa pressão popular, não teria passado", disse ao UOL Celeste Mc Dougall, ativista da Campanha Nacional pelo Direito de Abortar --organização que redigiu o projeto de lei em pauta agora.

A cor virou símbolo da luta feminista na Argentina, que viu grupos de mulheres, muitas delas ainda estudantes de ensino médio, acampar nas ruas próximas ao Congresso durante a votação que se estendeu por 20 horas.

Após a aprovação apertada (129 a favor, 125 contra e uma abstenção), grupos contrários também passaram a organizar protestos, com o objetivo de pressionar os senadores para barrar a aprovação. Eles adotaram o azul-celeste, da bandeira argentina, para representar a posição que chamaram de "pró-vida".

"É preciso salvar as duas vidas", diz o lema dos manifestantes contrários à lei. 

Diante da polarização, ganharam força nos últimos dias propostas alternativas. Uma delas prevê deixar de tratar o aborto como crime, mas não oferecê-lo na rede pública. Outra propõe diminuir de 14 semanas, como prevê o texto aprovado pelos deputados, para 12 semanas de gestação o prazo máximo do aborto, além de retirar a punição a médicos ou hospitais que se negarem a realizar o procedimento.

A menos de duas semanas da votação, é difícil prever o que será decidido no Senado argentino.

Outras vozes

Não é um debate só da Argentina. Luto pela liberdade das mulheres de toda a América Latina e Caribe, ou seja, inclui o Brasil. Sou muito grata a esse país e sei que o país tem a capacidade intelectual e cultural de mudar o pensamento

Marina Glezer, 37

Marina Glezer, 37, atriz argentina, em entrevista ao UOL. Em 2012, fez uma participação em "Avenida Brasil"

Não falem em nome das pobres e humildes. Muitas como eu pensamos que aborto é matar. Todas nós temos mais de um filho; eu tenho quatro. Tenho uma filha de 13 anos, e o pai pediu que eu abortasse. Fui à clínica e disse não

Lorena Fernandez

Lorena Fernandez, moradora da "Villa 31", favela de Buenos Aires, durante debate na Câmara de Deputados

Martin Acosta/Reuters Martin Acosta/Reuters

E a vida do feto?

Alguém preocupado com a vida deveria se preocupar com as mulheres, principalmente as pobres, que já morrem em clínicas de aborto clandestino ou tomando pílulas abortivas sem orientação

Georgina Orellano, prostituta

Segundo a Anistia Internacional, "complicações derivadas de abortos praticados em condições de risco são a primeira causa de morte materna" na Argentina. Em 2016, o país registrou 245 mortes de grávidas, das quais 43 foram decorrentes de tentativas de aborto.

O dado é controverso: partidários do aborto legalizado dizem que as cifras oficiais são subestimadas. Já os grupos pró-vidas veem exagero e dizem que o número é inflado por abortos espontâneos (não provocados).

Uma comunidade que consente a morte dos mais indefesos não constrói os laços imprescindíveis da solidariedade que permitem o desenvolvimento igualitário

Silvia E. Perez, senadora, via Twitter

Palavra final

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E se o pai quer o filho?

A realidade hoje é outra. Nós temos os filhos sozinhas, os homens vão embora e nós ficamos com a responsabilidade de criar, educar e manter, além do trabalho de gerir, parir, amamentar. Então, sim, o aborto é uma questão feminina

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Sou puta...

A linguagem é política. Há muito tempo usam a palavra puta para humilhar as mulheres e nosso trabalho. Reivindicamos não só o direito de nos prostituir, mas o direito de usar a palavra como algo digno. Sim, somos putas e não tem problema nisso

Maryana Campello/UOL Maryana Campello/UOL

... e não vítima

Chega desse discurso de vitimização. O feminismo esteve muito tempo dominado pelas acadêmicas. Mas o feminismo também precisa ser incomodado. E teve que nos aceitar. Não somos vítimas. Somos trabalhadoras adultas e conscientes

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