Conta não fecha

Envelhecimento da população, tecnologia, corrupção e desperdício: por que os planos de saúde são tão caros

Wanderley Preite Sobrinho Do UOL, em São Paulo
Pedro Luis Bottino de Vasconcellos/UOL
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“Pobre não pode ter convênio”, disse a professora de português Ana Ires Santos Silva, 61, que cancelou o plano de saúde depois do susto que tomou em abril. No boleto, viu a mensalidade aumentar 321%, de R$ 460,91 para 1.482,66. “Ganho R$ 2.700. É impagável. Cancelei e não quero outro.”

Casos como o de Ana, que precisou deixar o plano à beira de uma cirurgia nos rins, são cada vez mais comuns. As reclamações contra aumentos abusivos não param de subir, ao mesmo tempo em que mais gente abandona os convênios. A culpa é do “custo médico hospitalar”, defendem-se as operadoras de saúde.

Esse custo ganhou até um índice próprio no meio: a "inflação médica", que em 2017 foi 3,4 vezes maior do que a inflação do dia a dia. Este ano, a previsão é de que o custo médico-hospitalar fique 15,4% mais caro, 4,3 vezes acima dos 3,6% previstos para o IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor). É a 13º maior diferença entre 51 países, informa a Consultoria Mercer Marsh Benefícios.

Entre 2013 e 2017, esse custo saltou 89% de acordo com a Unidas (União Nacional das Instituições de Autogestão). Em 2013, por exemplo, uma consulta médica custava R$ 59,64 em média; em 2017, estava 37% mais cara, R$ 82,27.

Um exame saía por R$ 29,40 em 2013, 49% menos que no ano passado, quando custou R$ 43,35. Reajustes ainda maiores foram registrados para internação em hospital – de R$ 10,7 mil para R$ 18,6 mil (73%) – e cobertura médico-hospitalar: 88% mais cara em 2017, de R$ 3.100 para R$ 5.800. 

Inflação: 4,39%; reajuste: 10%

Embora a inflação no Brasil estivesse em 4,39% em junho deste ano, a ANS autorizou 10% de reajuste para os 8,1 milhões de planos individuais naquele mês. 

Já para os 47,3 milhões que fazem parte dos planos coletivos, o percentual de aumento não é padronizado, uma vez que a agência não decide sobre o índice porque “é determinado em negociação entre a contratante e a operadora”.

Em maio, o Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) pediu na Justiça a suspensão do reajuste com base em um relatório do TCU (Tribunal de Contas da União) que aponta falta de transparência e falha nos mecanismos de reajuste. “O tribunal disse que a ANS não possui meios para prevenção, identificação e correção de reajustes abusivos em planos coletivos”, explica Rafael Robba, advogado especializado em direito da saúde.

Uma das falhas afeta o sistema da ANS que coleta as informações repassadas pelas operadoras. “Ele permite a inclusão de informações erradas, e o sistema não identifica”, diz. A agência afirma que “os dados encaminhados são monitorados pelo corpo técnico”, que exclui do cálculo as informações “destoantes”. A Justiça concedeu uma liminar ao Idec, mas ela terminou cassada, e o reajuste, concedido. 

Fonte: IESS com dados de 2017 da Aon Hewitt, Mercer Marsh Benefícios e Willis Towers Watson
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Como as operadoras definem o valor do seu plano?

Quando uma operadora decide lançar um plano médico, ela simula toda a despesa necessária para atender as características do público-alvo. Se é para a cidade de Santos, por exemplo, onde vivem mais idosos, o plano levará em conta essas necessidades - e custos decorrentes.

A operadora calcula o valor de consultas, exames, cirurgias e complexidade, e decide uma cifra. “É o custo do risco”, explica o diretor-executivo da Fenasaúde (Federação Nacional de Saúde Suplementar), José Cechin. Em seguida, é a vez do “custo administrativo”, quando se estima o gasto com funcionários e rede de hospitais.

Acrescenta-se, então, os impostos e o valor para vender o produto. “É isso tudo que compõe o preço de um plano quando é lançado”, diz o diretor. A cada ano é feito um balanço que considera a inflação médica para decidir quanto aumentar.

Mas, afinal, por que esse “custo médico” sobe tanto ao ponto de criarem uma “inflação médica”, tão mais alta do que a de preços?

Duas das razões mais citadas pelos planos são as novas tecnologias e o envelhecimento da população. Presidente da consultoria Strategy, especializada em saúde, Raquel Marimon lembra que, diferentemente de outros segmentos, cada tecnologia que se inventa é agregada ao setor médico. “Não é uma substituição da anterior. Inventou-se a tomografia, mas ninguém parou de tirar radiografia. Antes a gente fazia três tipos de exames de sangue, hoje você não sai do consultório com menos de oito pedidos.”

Mas pouca coisa infla mais o custo médico do que o envelhecimento da população. “Nos dois últimos anos de vida, gasta-se com saúde o equivalente a 80% de tudo o que se pagou durante a vida. Esse custo acaba repassado ao preço final”, diz a consultora.

Com expectativa de vida de 74 anos, o brasileiro envelhece rapidamente. “Até 2027, esse ritmo representará um aumento de 1,4 ponto percentual por ano nas despesas com saúde por conta do envelhecimento”, calcula Cechin.

Fonte: Unidas (União Nacional das Instituições de Autogestão)

Corrupção no boleto

Mas o cálculo do boleto não é feito só de envelhecimento e alta tecnologia. No ano passado, a soma das internações, exames e consultas feitas por usuários dos planos chegou a R$ 145,4 bilhões. Deste valor, 19% corresponderam a desperdícios e fraudes, ou R$ 27,8 bilhões, informa estudo da Iess (Instituto de Estudos de Saúde Suplementar). Em 2016, as fraudes chegaram a R$ 14 bilhões. Os desperdícios com consultas e exames médicos desnecessários somaram R$ 13 bilhões, diz pesquisa da consultoria espanhola Advance Medical Group.

A cada dez exames, quatro são repetidos ou desnecessários. As especialidades com mais pedidos dispensáveis são ortopedia (30%), oncologia (18%), endocrinologia (11%), neurologia (11%) e reumatologia (30%). “O médico ganha comissão pelos exames que ele manda fazer”, diz Marimon, da Strategy. “É ele quem indica o laboratório.”

A consultora afirma ainda que os hospitais particulares precisam bater meta de internações, um dos serviços mais caros em unidades de saúde.

Como tem de ocupar os leitos disponíveis, mandam internar sem necessidade. Além dos custos que sobem, o paciente é exposto a infecções.

Raquel Marimon, presidente da consultoria Strategy

Fonte: Advance Medical Group

Ainda em 2016, foram realizadas 218,3 mil consultas médicas via plano de saúde em todo o país. Metade não era necessária, segundo o levantamento. Outro golpe comum é pedir uma dosagem de medicamento acima do utilizado ou recomendar uma órtese ou prótese sem necessidade.

Um caso emblemático ganhou as manchetes em 2015, quando a Polícia Federal investigou o que ficou conhecido como máfia das próteses. Em um esquema milionário, médicos chegaram a embolsar R$ 100 mil por mês recomendando cirurgias desnecessárias para implante. A conta era repassada aos planos médicos, que dividiam o prejuízo com seus clientes. “A gestão de fraude não é foco das operadoras”, afirma Robba:

Como 80% dos planos são coletivos, é melhor pagar a conta e passar como reajuste do que apurar a fraude ou desperdício.

Rafael Robba, advogado especializado em direito da saúde

Cechin, da Fenasaúde, diz que o escândalo mobilizou as operadoras, que começaram a se prevenir. Mas ele reclama da dificuldade em provar, por exemplo, que uma cirurgia de coluna poderia ser evitada. “Além disso, muitos médicos não testemunham contra seus colegas.”

Stephane de Sakutin/AFP Stephane de Sakutin/AFP

Uma esperança vem da África

Enquanto países em todo o mundo veem a corrupção e o desperdício impactarem na diferença entre a inflação médica e a de preços, um país com um sistema privado de saúde parecido com o brasileiro viu a inflação médica despencar, agora uma vez e meia acima da inflação de preços, a menor diferença no mundo.

A solução encontrada pela África do Sul foi simples: os índices de corrupção e desperdício minguaram quando seus planos de saúde passaram a pagar clínicas e hospitais conveniados por resultado no atendimento e não por volume de trabalho, como acontece no Brasil.

Desde então, as clínicas precisam provar que o paciente melhorou de saúde após o tratamento. Por aqui, “o hospital ainda é remunerado por demanda: dias de internação, uso de material, consumo de recursos e horas profissionais”, detalha Marimon. 

Simon Plestenjak/UOL Simon Plestenjak/UOL

Cechin explica que a conta médica no Brasil é paga como a do “almoço”: 

Pediu entrada, bebida, sobremesa? No final vem a discriminação dos itens. Na saúde é o número de agulhas, gaze, seringa. O prestador é remunerado por itens e ganha uma margem sobre eles. Esse tipo de pagamento o induz a utilizar mais itens e os mais caros.

José Cechin, diretor-executivo da Fenasaúde (Federação Nacional de Saúde Suplementar)

Os sul-africanos conviviam com altas taxas de inflação na saúde. Até 2002, os reajustes anuais variavam de 11% a 15%. Naquele ano, um novo modelo de remuneração começou a ser debatido. Em 2010, iniciou-se um projeto-piloto com 10 instalações. Dois anos depois, e o pagamento dos prestadores já era por resultados. “Em 2014, o reajuste médio caiu para 8%”, explica o superintendente executivo do Iess (Instituto de Estudos de Saúde Suplementar), Luiz Augusto Carneiro.

Outra medida adotada pela África do Sul foi priorizar a atenção primária: incentivo a hábitos saudáveis e diagnóstico precoce de doenças crônicas. A medida derrubou o atendimento hospitalar, um dos serviços mais caros do sistema de saúde. 

Simon Plestenjak/UOL Simon Plestenjak/UOL

R$ 1.652 mais caro em 2 anos

Até que o modelo sul-africano emplaque no Brasil, o consumidor terá de lidar com reajustes indesejados. No Idec, 23,4% de todas as reclamações em 2017 foram contra os planos de saúde, os campeões entre todos os setores da economia. Quase metade delas (44,5%) envolvia reajuste na mensalidade, índice superior aos 32,6% do ano anterior. À ANS, as queixas cresceram 13%: de 1.788 para 2.029 nos três primeiros meses deste ano em comparação com o primeiro trimestre de 2017.

Uma delas partiu da analista de sistemas e blogueira Carolina Bottino, 33 (ao lado), que contratou a Bradesco Seguros para ela, o irmão mais novo e os pais, já idosos. Em 2016, o convênio custava R$ 3.269, no ano seguinte saltou para R$ 4.083 antes chegar aos R$ 4.921 em abril deste ano. "Antes consumia 10% da renda familiar, hoje, quase 30%", lamenta Carolina. “E a consulta parece cronometrada. Te atendem em 10 minutos. Mas se for particular, não há nenhuma pressa.”

A história é parecida com a de Ana, a professora do começo da reportagem. Ela descobriu que sofria com o estreitamento nos rins há quatro anos. Os primeiros urologistas da Amil disseram que ela poderia precisar de uma cirurgia a qualquer momento.

"Ficamos monitorando até que a cirurgia pareceu iminente", conta a filha, Débora Souza, 39. Foi aí que o aumento veio. "Notificaram sobre o reajuste, mas só ficamos sabendo o valor quando o boleto chegou junto com a notificação de que o plano seria automaticamente cancelado se houvesse falta de pagamento." Sem dinheiro, Ana desistiu do convênio.

Ao UOL, a Bradesco Saúde encaminhou nota oficial afirmando que "segue a regulamentação da Agência Nacional de Saúde Suplementar para os reajustes dos planos de coletivos para empresas com até 29 beneficiários, inclusive publicando os seus valores no site”. Já a Amil também afirma que "os reajustes foram aplicados de acordo com as normas da ANS e com o contrato firmado, que preveem alteração conforme mudança de faixa etária e atualização anual do valor da mensalidade na data de renovação do contrato".

Simon Plestenjak/UOL Simon Plestenjak/UOL

Franquia e coparticipação

Para a ANS (prédio ao fundo), o modelo atual “induz à sobreutilização dos recursos e, portanto, a desperdícios” e discute mudanças no Grupo de Trabalho de Remuneração. No primeiro semestre, a agência regulamentou a permissão para que as operadoras cobrassem franquia e coparticipação de seus pacientes.

A ideia era cobrar uma parte dos custos (até 40% do valor dos procedimentos) toda a vez que o cliente precisasse usar o plano, como acontece com o seguro de carros. Esse valor não poderia superar a cifra desembolsada nas 12 últimas mensalidades. Mas uma liminar da ministra Carmen Lúcia, do STF (Supremo Tribunal Federal), suspendeu a Resolução Normativa, e a ANS realizou, em 4 de setembro, audiências públicas para discutir o assunto.

Pedro Luis Bottino de Vasconcellos/UOL Pedro Luis Bottino de Vasconcellos/UOL

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