Guerra santa

Com alta popularidade (ou por causa dela?), papa Francisco enfrenta acusações que partem de dentro da igreja

Filipe Domingues Colaboração para o UOL, de Roma
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Alguns falam em “guerra civil” na Igreja Católica, outros veem só mais um capítulo conturbado na história de uma instituição milenar: um dos líderes mais populares da atualidade, o papa Francisco enfrenta uma avalanche de escândalos que, em boa parte, deriva de fogo amigo.

Mas a quem interessa manchar a imagem do papa?

À tona no último mês

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Eleito para reformar

Em 2013, o argentino Jorge Mario Bergoglio foi eleito para reformar a Cúria Romana. A igreja, então, enfrentava meio a uma série de denúncias que envolviam corrupção financeira, vazamentos de documentos e conduta sexual inadequada de alguns membros do clero.

Primeiro papa do hemisfério Sul, Bergoglio escolheu o nome “Francisco”, em referência ao santo de Assis e às mudanças que estava disposto a implementar na igreja:

Escolhi o nome Francisco porque quero uma Igreja pobre, para os pobres

Pouco tempo depois de assumir a Santa Sé, o papa latino-americano trouxe pobres e imigrantes para o centro das discussões católicas e assumiu uma postura mais flexível em relação a temas delicados para a instituição, como divórcio e homossexualidade.

Foi o suficiente para irritar algumas das alas mais conservadoras.

“O que está acontecendo é um conflito político interno. Este papa, seguindo princípios do Evangelho e de acordo com a doutrina social da Igreja, está denunciando atitudes políticas e de mercado que colocam em perigo a vida no planeta”, disse ao UOL Emilce Cuda, teóloga política na Universidade Católica Argentina.

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Imbróglio

Em uma carta-bomba de 11 páginas, o arcebispo Carlo Maria Viganò (foto acima) expôs ao mundo o racha na Igreja Católica ao pedir a renúncia de papa Francisco. No documento, ele acusa o papa de ter silenciado diante de denúncias graves.

Vinganò diz que Francisco retirou sanções contra o então cardeal Theodore Edgar McCarrick, de Washington.

Mas não há provas nem de que o papa anterior, Bento 16, tenha imposto penas oficialmente, nem que Francisco as tenha retirado.

Autoridades do Vaticano sabiam de ao menos parte dos problemas do ex-cardeal: desde 2000, havia denúncias de que ele dormia com seminaristas adultos. E, de acordo com os vaticanistas Salvatore Cernuzio e Andrea Tornielli, o papa Bento 16 --Joseph Ratzinger-- pediu a McCarrick, em 2007, que se afastasse dos seminaristas e mantivesse um “baixo perfil”.

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Pressão sobre o papa

Mas McCarrick continuou cumprindo agendas públicas na igreja. Em julho de 2018, surgiram acusações de abusos de menores e, sob o papa Francisco, foi obrigado a renunciar.

“Esse dossiê colocou muita pressão sobre Francisco. Ao mesmo tempo, vem de uma rede pequena, mas poderosa, dentro da Igreja”, analisa o vaticanista Christopher Lamb, da revista britânica The Tablet.

“Essa rede que se opõe a Francisco inclui bispos, cardeais e jornalistas no Vaticano, na Itália e nos Estados Unidos -- o centro da oposição. No Vaticano, as reformas deste papa estão acontecendo em ritmo frustrantemente lento. Mas estão acontecendo.”

O jornal L’Osservatore Romano, do Vaticano, se referiu ao caso Viganò como “uma nova instância de oposição interna”. O cardeal Secretário de Estado, Pietro Parolin, afirmou ao site Vatican Insider que as acusações criam “amargor e inquietude”, mas o papa está “sereno”.

Alguns apontam para o fato de que Viganò se ressente de ter sido afastado da Cúria Romana em 2011 por Bento 16 e que almejava ter sido feito cardeal.

Outros se uniram às críticas e disseram que as acusações de Viganò são legítimas. Foi o caso do bispo americano Joseph Strickland, de Tyler, no Texas, que pediu uma investigação “até nos níveis mais altos da igreja” – uma possível referência ao papado.

Também o cardeal Raymond Leo Burke, um dos ícones da ala conservadora anti-Francisco, disse ao jornal italiano La Verità que “agora, o papa deve esclarecer a sua posição”. Para o arcebispo, “se o que está escrito [na carta de Viganò] é verdade, o papa deve enfrentar isso pessoalmente.”

Na última semana, o papa convocou uma reunião extraordinária para discutir os abusos sexuais. O encontro será em fevereiro, no Vaticano.

ZUMAPRESS ZUMAPRESS

Dois problemas em um

“Esse é o conflito de fundo. Eles abordam tudo o que possa atingir o papa quando querem desqualificá-lo, como o grave problema do abuso de menores”, diz Cuda.

Se não há provas de que o papa se calou diante de pecados, é consenso de que será preciso apresentar respostas e reagir à disputa política que se trava.

“Como o Papa lidera a Igreja principalmente por meio de sua credibilidade moral, qualquer acusação de má conduta diante dos abusos é uma ameaça grave à sua habilidade de governar”, diz Lamb.

Frente aos ataques e pedidos de renúncia, cresceram também as manifestações de apoio ao papa.

A conferência dos bispos da Argentina (CEA) definiu o ataque de Viganò como “implacável, no qual confluem diferentes interesses mesquinhos e mundanos”.

Também no Brasil, o presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Dom Sergio da Rocha, enviou mensagem de solidariedade ao pontífice e disse que Francisco faz "um bem imenso à igreja".

O tsunami do escândalo dos abusos sexuais do clero dentro da Igreja está agora alcançando o Vaticano e o papado

Christopher Lamb

AFP AFP

Resistência às mudanças

Não é a primeira vez que um Papa enfrenta semelhante oposição. Mirticeli Medeiros, mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, recorda que o papa João Paulo 2º, polonês, tinha grande apoio dos conservadores, sobretudo por ter combatido o comunismo, e também foi alvo de críticas fora do Vaticano.

Já Bento 16 “se viu mergulhado em uma perseguição interna ‘sem bandeiras’, perpetrada por um grupo resistente a qualquer tipo de reforma e ansioso para se estabelecer, de uma vez por todas, na ‘Sé de Pedro’”.

Ela se refere ao escândalo que ficou conhecido como “Vatileaks” – o vazamento de documentos secretos que sugeriam corrupção e chantagem no Vaticano.

Para a historiadora, a dinâmica atual tem semelhanças ao que foi vivido por Bento 16: são membros que se consideram fiéis à Igreja, mas não ao papa.

“Mas desta vez, a bandeira é bastante definida: há uma ala ultraconservadora que, desde 2013, clama pela renúncia de Francisco. E isso devemos levar em consideração”, analisa.

Paul Faith / AFP Paul Faith / AFP

Por outro lado, a forte popularidade de Francisco pode ser seu principal ativo contra a resistência.

“À diferença de Ratzinger, será muito mais fácil sair da crise, já que Bergoglio conseguiu estabelecer uma devoção ao papa equivalente ou superior à praticada durante os pontificados de Pio 9º e João Paulo 2º. O povo ama Francisco independente dos rumos que essa crise vá tomar", diz Medeiros.

“É preciso preservar e fortalecer a imagem do pontificado, a autoridade do pontífice”, defende a teóloga Emilce Cuda.

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