O Maio que eu vivi

Brasileiros que estavam na França em 68, entre eles FHC, contam o saldo dos acontecimentos, 50 anos depois

Guilherme Azevedo Do UOL, em São Paulo
Arte/UOL

O Maio, 50 anos depois

No cinquentenário do movimento de contestação que entrou para a história como Maio de 68, o UOL revisita essa história, do ponto de vista de três brasileiros que testemunharam os acontecimentos, na França.

Nas ruas e nas universidades de Paris e de outras cidades do interior da França, estudantes decretaram, em maio e junho de 1968, que era "proibido proibir", em luta contra todo tipo de autoridade.

Ao movimento contestatório estudantil se juntariam e marchariam até certo ponto juntos os operários franceses.

Eclodiria, então, a maior greve geral da história da França, com a paralisação de cerca de 10 milhões de trabalhadores, aproximadamente um quinto da população total francesa da época.

Os trabalhadores obteriam um aumento geral dos salários e a conquista da quarta semana de férias, por exemplo. Um marco substancial da luta trabalhadora.

Brasileiros em Paris

A ditadura militar instaurada no Brasil com o golpe de Estado de 1964 fez de Paris refúgio de numerosos brasileiros. Por exemplo, havia ali, na segunda metade dos anos 1960, praticamente um departamento inteiro da Faculdade de Filosofia da USP (Universidade de São Paulo), de professores perseguidos e afastados pelo novo regime.

Foi o caso do sociólogo e professor Fernando Henrique Cardoso, cuja prisão fora decretada pelos militares logo depois do golpe.

O futuro presidente da República do Brasil encontraria abrigo na França em outubro de 1967, após viver com a família no Chile por quase quatro anos. A convite do amigo sociólogo Alain Touraine, lecionou no novo campus da Universidade de Paris, em Nanterre, na região metropolitana.

Pois foi ali mesmo no campus de Nanterre que se iniciou a revolta estudantil contra o autoritarismo nas instituições francesas. FHC estava ali e rememora agora, aos 86 anos, o que viu, numa perspectiva de futuro e de legado.

Paulo Sérgio Pinheiro, 76, também estava lá. Cientista político que hoje preside a comissão de inquérito da ONU (Organização das Nações Unidas) sobre a guerra na Síria, era estudante bolsista em Paris.

Desde 1967, cursava o doutorado e elaborava tese sobre política e trabalho na Primeira República brasileira (1889-1930).

O terceiro observador dessa história é Luiz Felipe de Alencastro, 72, cientista político, historiador e professor de história econômica da FGV-SP (Fundação Getulio Vargas de São Paulo).

Alvo de processos repressivos na graduação em ciência política na UnB (Universidade de Brasília), Alencastro também obteve bolsa do governo francês e foi à França em 1966 para completar a formação interrompida. Estudava em Aix-en-Provence, no sul do país.

Essa história é sobre o passado, que, visto do presente, se atualiza. Falar do Maio de ontem é falar de hoje e de amanhã.

Os protagonistas

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Daniel Cohn-Bendit

Estudante do campus de Nanterre da Universidade de Paris. Foi aluno do então professor Fernando Henrique Cardoso. De origem alemã, destacou-se como um dos líderes principais da revolta estudantil. Estava à frente da ocupação pelos estudantes do campus de Nanterre, a 22 de março de 1968, em reação à prisão de dois estudantes, marco inaugural do Maio. Por seu cabelo vermelho e suas ideias incisivas, ficou conhecido como "Daniel, o Vermelho".

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Charles de Gaulle

Herói nacional pela liderança, como general, das tropas francesas na Segunda Guerra Mundial (1939-45) e libertação do país da ocupação nazista. Fundou a Quinta República na França e era o presidente na época dos acontecimentos. Só deixaria a Presidência em 1969, após dez anos. Político astuto, conseguiu atravessar o Maio com concessões e algumas manobras. Encarnava, aos olhos dos estudantes, a autoridade maior que precisava ser combatida e derrubada.

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Georges Pompidou

Foi primeiro-ministro de De Gaulle, entre 1962 e 1968. Sucederia De Gaulle na Presidência, de 1969 a 1974, quando morreu. Pompidou foi reconhecido como negociador. Primeiro, para o fim da Guerra da Argélia, em 1962. Depois, no Maio, com as centrais sindicais francesas, fechando os chamados acordos de Grenelle, no fim de maio, que concederam ganhos substanciais aos trabalhadores, após a greve que paralisou até 10 milhões de pessoas.

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Georges Séguy

Era o secretário-geral da CGT (Confederação Geral do Trabalho), a maior central sindical da França, durante o Maio. Liderou a preparação e a condução da maior greve geral da história francesa. Foi, na juventude, militante comunista e chegou a ser preso pelos nazistas e enviado para um campo de concentração localizado na Áustria. Ficou marcada uma frase célebre dele: "Os acontecimentos de maio e junho de 1968 não surgiram 'como um trovão em um céu sereno'".

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A França bloqueada

Fernando Henrique Cardoso relembra o contexto fechado do país, dentro e fora da universidade

"De Gaulle assinou minha nomeação"

"A França daquela época era muito burocrática. O meu colega Michel Crozier, sociólogo, escreveu um livro chamado "La Société Bloquée" [A sociedade bloqueada, publicado em 1970, reunindo artigos escritos entre 1966 e 1968 sobre a transformação social na França]. 'Bloqueada' por causa da hierarquia, do corporativismo e tal. Para ver como a França era centralizada, foi o [o presidente] De Gaulle que assinou minha nomeação [como professor da Universidade de Paris], saiu no 'Diário Oficial'. Tudo central, embora a universidade fosse, em tese, autônoma."

Professores contra reformas

"Havia ao mesmo tempo um movimento de reforma da universidade. E os professores não eram favoráveis à reforma que o [Alain] Peyrefitte, o ministro da Educação, queria implantar. Quando veio o chamado movimento de 22 de março, que foi o dia em que Cohn-Bendit e os outros [estudantes] ocuparam a faculdade [de Nanterre], a decisão de fechar a faculdade foi dos professores, porque eles estavam horrorizados com a movimentação que estava havendo lá. E não queriam a reforma. Juntaram as duas coisas. O sistema era bastante repressivo.

Tinha um professor de geografia que era comunista e dizia: 'Não posso receber meus colegas da Polônia nessa bagunça que está aqui'. No olhar de um latino-americano, não havia bagunça alguma. Eles distribuíam panfletos, e a reivindicação era sexual, de os homens poderem dormir nos dormitórios das mulheres, porque as mulheres já podiam dormir nos dormitórios dos homens. Isso era a grande reivindicação momentânea ali [em Nanterre]. Mesmo com a confusão, dei aula para esse pessoal sem problema. E houve um momento em que tinha os exames, acho que em junho, e tinha que examinar o Cohn-Bendit e ele não apareceu. Eu o aprovei. Ele era bom aluno.

Quando você entrava na [sala de] aula, o bedel batia um taco, 'Monsieur le professeur Cardoso'. E uma vez esse cara me denunciou à direção da escola, porque eu permitia fumar [em sala]. Eu não sei se permitia ou não, pessoalmente tenho horror a cigarro, mas eu não sou repressivo e provavelmente eles fumavam. [A universidade] Era uma coisa muito formal e catedrática."

"Aqui não acontece nada"

"Acho que em fevereiro [de 1968], mais ou menos, eu e o Celso Furtado [economista e estudioso do subdesenvolvimento na América Latina, então lecionando em Paris] recebemos a visita de um amigo nosso que tinha sido ministro da Educação [e Cultura, em 1963] e prefeito do Distrito Federal, o Paulo de Tarso Santos. Tínhamos o costume de almoçar uma vez por semana, Celso, eu, Luciano Martins [sociólogo] e Valdir Pires [que se tornaria mais tarde governador da Bahia e ministro de Estado pelo PT]. Veio o Paulo de Tarso e perguntou: 'E o que acontece aqui?'.

De todos nós, o mais sabido era o Celso Furtado, estava lá havia muito tempo e era mesmo muito bom. E o Celso: 'Aqui não acontece nada. Aqui o grau de racionalidade é muito elevado. Por exemplo, nesse momento está havendo uma discussão no Matignon, que é o palácio do primeiro-ministro, entre os sindicatos e o governo. Mas tudo isso é na base de pesquisas, números e não sei o quê'. E aquilo começou a pegar fogo em março e em maio deu no que deu. De repente mudou tudo."

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Estudantes enfrentam a polícia em Paris

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O Maio, o que é?

Luiz Felipe de Alencastro diferencia aspectos do movimento

"Precisa distinguir o Maio, porque são quatro coisas bem diferentes:

1) Primeiro é o movimento estudantil, que cronologicamente foi o primeiro movimento que começou, a partir de março/abril, e no mês de maio se expandiu. Invadiram a Sorbonne [campus de Paris] e tal. Então é um movimento estudantil contra o governo.

2) Havia também certa insatisfação social e isso desembocou, que é a segunda coisa, na maior greve sindical-operária num país industrializado. Houve momento em que tinha 10 milhões de pessoas em greve na França e na época a França tinha cerca de 50 milhões de habitantes. Era enorme. Isso resultou inclusive em vantagens muito importantes para o movimento sindical. Porque se conseguiu, nas negociações finais, em junho já, um aumento importante do salário mínimo, 10% de aumento de todos os salários e mais uma quarta semana de férias pagas, [até então] tinha só três semanas de férias e passou a ter quatro. O que foi importante como conquista social.

3) A terceira coisa foi um movimento cultural importante, de onde saiu o movimento mais ativo feminista, a ecologia, o movimento pacifista, esse Médecins sans Frontières [Médicos sem Fronteiras, ONG da área médica], que veio da França também e começou com gente que foi militante de maio. Uma agitação cultural muito importante.

4) E a quarta coisa foi a lenda criada em torno de Maio, que é o que a gente vive agora, mas já está vivendo há uns 30 ou 40 anos, que cada um interpreta como quer. O primeiro equívoco é achar que houve Maio de 68 em toda parte. Houve, sim, mas as coisas não tinham nada ou muito pouco a ver umas com as outras.

Nos Estados Unidos já havia movimento desde 1965, que era contra a Guerra do Vietnã, porque os estudantes estavam sendo mobilizados. O movimento que teve em maio e junho de 1968 em Praga foi contra a ocupação da União Soviética na Tchecoslováquia [movimento denominado Primavera de Praga].

O movimento que teve no Brasil foi contra a ditadura, o que não era o caso da França. E o movimento que teve em outubro no México também, que terminou com um grande massacre, foi também contra um governo autoritário. Então, são coisas muito diferentes. Na Alemanha também teve e aí é mais parecido com a França. Houve o atentado contra o Cohn-Bendit de lá, que era o Rudi Dutschke, e isso radicalizou muito."

No Brasil não se podia sair à rua e dizer: 'Aumenta o salário mínimo', porque, senão, ia para a cadeia. O Brasil estava vivendo uma ditadura, não tinha nada a ver com a situação política da França. Tanto que depois aquilo acabou desembocando em luta armada e tal no Brasil 

Luiz Felipe de Alencastro, cientista político e historiador

Jacques Marie/AFP Jacques Marie/AFP

O fator operário: maior greve da história francesa

Marcelo Justo/UOL Marcelo Justo/UOL

"Não me dei conta imediatamente"

Paulo Sérgio Pinheiro não soube dimensionar na hora o tamanho da mudança

Experiência em câmera lenta

"É uma coisa curiosa, porque você não se dá conta imediatamente da magnitude do evento. Você não acorda e de repente [se dá conta]: 'Começou uma revolução'. É uma coisa que vai um pouco em câmera lenta. O que ajudou muito na França, e ao contrário daqui, é que as rádios eram muito diversas. Você tem as rádios da rede oficial, mas tem também a rádio Monte Carlo, Luxemburgo e todas competindo e todas dentro do acontecimento. A TV dava alguma coisa, mas, basicamente, o dia inteiro, eram as rádios.

Depois o que foi crescendo foram as greves. Começou a parar tudo, afetando todos os serviços. Aí você vai se dando conta disso. E havia um calendário das diversas invasões. Invadiram o teatro Odéon, depois ocuparam o prédio principal da Sorbonne, que era no próprio Quartier Latin [bairro universitário], e também as ruas, em que havia barricadas. Então, no dia seguinte de manhã, eu ia ver as ruas com barricadas, bem perto do Panthéon [monumento]."

Embate com os fascistas

"Lembro também que havia grupos fascistas atuando. Lembro que a gente ficou atrás de uma barricada num dos prédios da Sciences Po [faculdade de ciência política, onde Pinheiro estudava] porque um grupo fascista invadiu o prédio e nós só não fomos atacados porque fechamos a porta de uma sala de aula com barricadas. Então as coisas eram muito movimentadas. E aí, é claro, que, a partir da segunda semana, a visão estava mais clara do que se tratava. Mas para mim foi uma experiência de câmera lenta, aos poucos."

"Maio não foi só Paris"

"Maio de 68 não foi só em Paris, foi [também] em Lyon, em Montpellier, em uma porção de cidades e com configurações diferentes. Quer dizer, não foi só um repeteco do que estava acontecendo em Paris. Porque a coisa depois se alargou dos estudantes para os operários, que fizeram greves gerais impressionantes. O movimento de 68 se tornou mais grave quando os operários aderiram aos protestos."

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A barricada

Por que a barricada? Por causa da Comuna de Paris. Reviver um pouco desse espírito

Fernando Henrique Cardoso

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O curto-circuito

Para FHC, acontecimentos mostraram que algo banal desencadeava grande incêndio

"Sociedade pega fogo às vezes por curto-circuito"

"[Para falar sobre as formas de mudança social] Tem a estrutura, a infraestrutura, a superestrutura, a luta de classe, mas a sociedade às vezes pega fogo por um curto-circuito, que pode estar em qualquer lugar. Foi o que eu vi na França. O fato que iniciou a transformação foi uma briga dentro da universidade. Dos professores contra os alunos, do Cohn-Bendit contra o ministro [episódio em que os estudantes interpelam o ministro da Juventude e dos Esportes, François Missoffe, quando da inauguração de uma piscina no campus de Nanterre, sobre a liberação do ingresso de alunos nos dormitórios das alunas. O ministro sugere que os estudantes mergulhem na piscina para 'esfriar' seus apetites sexuais]. E os trabalhadores estavam em greve, mas não foi isso. Aí deu o curto-circuito e juntou o movimento sindical, partidos de esquerda, com esse movimento libertário. Mas o que vi em Nanterre foram os operários desconfiados, porque não entendiam nada daquele palavreado [dos estudantes]. Eles estavam um pouco bestificados."

Foi um momento de grande vivacidade da sociedade francesa, que estava congelada. De repente, descongelou 

Fernando Henrique Cardoso

O componente existencialista: "Eu quero viver melhor"

"Os líderes estudantis, especialmente o Cohn-Bendit, não eram de 'esquerda' com aspas. Viraram, mais ou menos. O Cohn-Bendit, mais um líder ecológico, porque refez muito o pensamento dele. Mas não dava para traduzir aquilo na linguagem habitual nossa, que era esquerda e direita, 'Guevara!', 'Abaixo o imperialismo!'. No Chile [onde FHC morou antes de Paris], tinha isso o tempo todo, mas na França não. Era: 'Eu quero viver melhor'. Eu. É existencialismo, na verdade, eu faço escolhas." 

O clima que pintou

"Diria que pintou um clima. Foi muito interessante ver a discussão deles na rua, todo mundo discutia a vida. Uma espécie de grande sessão psicanalítica da sociedade francesa. Com efeitos. Abalou bastante a cultura francesa, mais do que as estruturas da França. O número de divórcios, separações de casais foi imenso. Foi um momento de efervescência da sociedade francesa que queria quebrar um pouco o sufoco em que eles se sentiam. Também do ponto de vista pessoal. Quase todos numa espécie de revolução existencial."

Arquivo Público Arquivo Público

A palavra era a Bastilha

O embate da criatividade e da espontaneidade contra a sisudez e a formalidade

Maio de 68 entrou para a história também pela renovação das formas de protesto. Como se dizia, ali eram todos poetas. Uma profusão de cartazes e pichações, com frases (ou versos) expressivos, tomou as ruas e os muros pelas mãos e bocas dos jovens.

"É proibido proibir" (pichação da foto ao lado), "Seja realista, peça o impossível", "O sonho é realidade", "A imaginação no poder", "A poesia está na rua", "Professores, vocês nos fazem envelhecer", "A mercadoria é o ópio do povo", "Decretado o estado de felicidade permanente", "Camaradas, o amor também se faz na Faculdade de Ciências" foram muitos dos brados ouvidos e lidos pelas ruas e universidades.

A manifestação inventiva e livre da palavra chegou a ser comparada à própria proclamação da República na França, com a queda da Bastilha, a 14 de julho de 1789, marco inaugural da Revolução Francesa e do fim do Antigo Regime.

"Em Maio de 68, a palavra foi tomada como a Bastilha foi tomada em 1789", afirmou o filósofo jesuíta Michel de Certeau.

Para o cientista político Luiz Felipe de Alencastro, é uma "frase exagerada", uma vez que a queda da Bastilha "encerrou a monarquia absoluta na França e fez uma revolução que teve impacto no mundo inteiro".

Alencastro acredita que Certeau, pensador que apoiou a luta contra a ditadura militar no Brasil, queria dizer que "houve uma série de expressões culturais, sociais e políticas que escaparam ao controle dos partidos políticos e das universidades, numa espontaneidade muito grande".

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O que o Maio gerou?

Transformação cultural e até a emergência de nova direita radical

Embora os protestos não tenham quebrado as estruturas da França, com a renúncia dos governantes e o fim da divisão entre patrões e empregados com que os manifestantes sonharam, produziram mudanças significativas sobretudo no plano da cultura e dos costumes, na conscientização e obtenção de novos direitos e liberdades.

Uma mesma pergunta foi feita aos três entrevistados: E a geração do Maio de 68, com cerca de 20 anos à época e hoje na casa dos 70 anos? Aprofundou mudanças? 

Paulo Sérgio Pinheiro: "Consequências políticas foram devastadoras"

"Na França, não há a menor dúvida do legado. As relações entre professores e alunos mudaram enormemente. A universidade se transformou. E, claro, os benefícios para os operários. A queda do De Gaulle não veio imediatamente, mas se deu em decorrência de Maio de 68 [De Gaulle deixaria o poder no ano seguinte]. Houve uma modificação profunda, o efeito foi nos partidos políticos, no sindicalismo. Não deixou marcas exatamente nas utopias que os alunos quiseram, mas as consequências políticas foram devastadoras para a França.

Foi um privilégio poder participar desse protesto. Talvez tenha me ajudado a ter outras perspectivas em relação à própria universidade, ao autoritarismo dos professores. Também algumas temáticas levantadas no bojo. Certamente, se não tivesse passado por isso, talvez eu hoje fosse um pouco diferente.

Hoje há uma bibliografia imensa que está saindo na França e na Inglaterra sobre o ano de 68."

Afinal, ninguém pode pôr numa lápide assim, num mausoléu: 'Aqui está morto Maio de 68'
Paulo Sérgio Pinheiro

Luiz Felipe de Alencastro: Os velhos 68

"A geração de Maio de 68, na França, mas também na Inglaterra e nos Estados Unidos, que é a minha geração, é a mais reacionária e conservadora. Foram eles que votaram a favor do Brexit no Reino Unido, eles votam na extrema-direita agora, majoritariamente. O lado de esquerda do Maio era muito minoritário, isso foi incidente mais pelo impacto ser maior em Paris e nas cidades universitárias.

É que o quadro mudou, é diferente. A coisa [aumento] da imigração na França mudou a percepção da política, que é um problema que não há aqui, no Brasil. [São] Os velhos 68."

Geração de Maio 68 é a mais reacionária. Votou no Brexit e vota na extrema-direita 
Luiz Felipe de Alencastro

FHC: "França era o mais do que isso"

"Do ponto de vista sociológico, minha vida mudou, sim. Minha visão era mais mecânica, teórica, mais quadrada, marxista, do ponto de vista social. E ali não era isso, era uma outra coisa. Uma dimensão que não se esgota nas relações de produção. Elas existem, mas têm mais do que isso. A França era o mais do que isso. Essa sociedade que estava brotando, mas só brotando, porque não dava para ver, e agora existe. A sociedade da internet, da conexão. Ali estava todo mundo meio desconectado e foi o momento de ignição.

Deu para perceber que a mudança social estava ocorrendo sem que fosse só a luta de classe. O que senti é que não havia símbolos para expressar o que eles sentiam. Pegavam a bandeira negra [do anarquismo] ou [cantavam] 'A Internacional' [hino e símbolo da luta internacional do comunismo]: 'De pé, ó famintos da Terra'. Ali não tinha faminto, mas se identificaram com os símbolos existentes."

Se quisermos interpretar sociologicamente, era o começo de uma sociedade de outro tipo que estava nascendo
Fernando Henrique Cardoso

Ameaças e apreensões, 50 anos depois

Carine Wallauer/UOL Carine Wallauer/UOL

FHC: Desemprego, crise e insegurança

"Importa falar do Maio porque liberdade e democracia importam sempre. Lá era mais liberdade no sentido de liberdade de pessoas do que democracia. Mas não é o que está em causa hoje aqui. Aqui é que parou de crescer, tem desemprego, pobreza e insegurança. Esses são os temas. Só tem sentido falar de democracia quando ela acaba. Aí você fala dela, as pessoas se tocam. Fora disso não se tocam, não sabem que têm liberdade. Mas sabem que não têm emprego, que a renda não alcança o fim do mês e que há insegurança. O que, por consequência, tem a ver com maior igualdade também, mas igualdade de longo prazo. Agora cada um está pensando em si: 'Eu estou mal'."

Marcelo Justo/UOL Marcelo Justo/UOL

Pinheiro: "Hora é de resistência"

"Aqui não é bandeira utópica, a bandeira atual é de resistência à ameaça de extrema-direita que está colocada nas passeatas, no golpe do impeachment [de Dilma Rousseff, PT] e no golpe da neutralização do Partido dos Trabalhadores e a prisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Eu acho que o único ponto de contato não é nem com Maio de 68, acho que é na resistência ao fascismo no período de Vichy [1940-44, período em que a França se juntou ao governo nazista da Alemanha]. Acho que nós estamos nos aproximando gradual e decisivamente para um embate com essas forças. A hora não é de utopias, a hora é de resistência, de defesa das eleições de 2018, que eu vejo seriamente ameaçadas por esse governo que tem 80% de rejeição."

Jorge Araújo/Folhapress Jorge Araújo/Folhapress

Alencastro: Defesa da Constituição

"Eu sou a favor da democracia e acho que a Constituição hoje está ameaçada no Brasil."

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