O inferno da "cura" gay

"Tratamento" de homossexuais em hospital de São Paulo tinha tortura, coma induzido e eletrochoques

Marcos Sergio Silva Do UOL, em São Paulo
Marcelo Justo/UOL

Sucupira, 20, falava pouco, mas se masturbava muito. De "inteligência apreciável", tinha "extraordinária predileção" por um prato --só comia batatas. Adalberto, 20, fisicamente bem constituído, não se dava com o pai. O sacerdote Macário, alemão, tinha pouco mais de 50 anos. Captou a confiança de seus superiores e passou a ensinar "com afinco" jovens meninos pobres em um conhecido mosteiro do centro de São Paulo. Sidney, 15, era bastante versátil, mas "pouco propenso ao estudo". Napoleão, um homem de 30 anos, havia fundado com a irmã um liceu acadêmico em Belo Horizonte, mas resolveu trocá-la por outro homem na sociedade.

Histórias diversas, mas que tiveram o mesmo fim: o Sanatório Pinel, em Pirituba, na zona norte de São Paulo. Em 11 casos, o motivo da internação foi aquilo que os médicos diagnosticavam como "homossexualismo", "pederastia", "inversão sexual". O inferno da suposta "cura gay" durou 15 anos no centro psiquiátrico paulistano sob injeções de insulina que provocavam comas induzidos, ataques epiléticos forçados, eletrochoques e outros horrores. E só foi encerrado quando a administração passou para o governo do Estado, que transformou a clínica em centro de acolhimento psiquiátrico para mulheres, em 1945. Não houve cura, porque, como a OMS (Organização Mundial da Saúde) reconheceria apenas em 1989, a homossexualidade não era doença.

Marcelo Justo/Folhapress Marcelo Justo/Folhapress

As origens do horror

Leonídio Ribeiro era médico e estudava criminologia. No começo do século 20, era dirigente do Gabinete de Identificação da Polícia Civil do Rio de Janeiro. Criou o Laboratório de Antropologia Criminal e, por meio dele, defendia que homossexuais deveriam ser "tratados".

Ribeiro usou os recursos do Estado para, em 1935, orientar uma equipe que estudou a constituição morfológica de 185 homossexuais no Instituto de Identificação da então capital federal. O objetivo era detectar sinais endocrinológicos de “intersexualidade”, que serviria para identificar gays.

Acreditava-se que esses sinais seriam detectados pelo número de pelos pubianos, bacia, cintura predominantemente feminina, nádegas protuberantes e peito liso. Como nenhuma constatação foi obtida, avançaram nos exames e incluíram relaxamento do esfíncter, inexistência de pregas ou dobras radianas no ânus, presença de fístulas, fissuras e hemorroidas. Nada de respostas ou provas.

A única conclusão desses “exames” do médico-legista Afrânio Peixoto constatou o óbvio: a homossexualidade só poderia ser manifestada por “produções epidérmicas vindas do atrito irritativo” --ou seja, nada que fosse cientificamente comprovado, mas resultado de relações sexuais.

Entre os estudos de Leonídio e as conclusões de Afrânio, o médico Antonio Carlos Pacheco e Silva, conhecido autor de livros sobre medicina legal e fundador da Liga Paulista de Higiene Mental, foi convidado a dirigir o Hospital do Juquery, hoje localizado em Franco da Rocha (Grande São Paulo), na década de 1920. Em 1929, ele fundou o Sanatório Pinel, em Pirituba, então um bairro paulistano só alcançado pelos trens de subúrbio da ferrovia Santos-Jundiaí.

A clínica cumpria duas missões: aliviar a demanda pelo hospital psiquiátrico do Juquery e atender mulheres de alto poder aquisitivo. Com o tempo, a finalidade mudou, e pacientes masculinos da elite paulistana também foram aceitos de maneira sigilosa.

“A partir da década de 1930, a etiologia biológica sobre a homossexualidade se constituiria como um consenso no meio médico brasileiro. Foi a partir desta classificação psiquiátrica que ocorreriam debates sobre este tema nos meios de comunicação. Assim ela reverberou pelos diversos espaços sociais e se transformou em notícias, em fofocas, em chacota", afirma Paulo Reis dos Santos, 60, ex-coordenador do Centro de Referência LGBT de Campinas e doutor pela Faculdade de Educação da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

"Como consequência, pederastas, masturbadores, sádicos, masoquistas e fetichistas foram considerados doentes mentais. Suas famílias passaram a avaliar a possibilidade de que seus membros acometidos por tais enfermidades devessem ser internados em hospitais psiquiátricos para se curarem ou para não exporem publicamente suas anomalias. O dano daí decorrente no plano pessoal foi de caráter irreparável, significando vida ou morte para quem o sofreu.”

Daí a tratar homossexuais como doentes foi um pequeno passo. E o Sanatório Pinel, cujo interior está retratado nesta imagem, se dispôs a executar a experiência.

Reprodução/Arquivo Público do Estado de São Paulo Reprodução/Arquivo Público do Estado de São Paulo

O sacerdote pecador

Na sexta-feira de 12 de setembro de 1930, Macário, um monge beneditino de 58 anos, nascido em uma aldeia na Bavária, na Alemanha, entrava ansioso e aflito no sanatório, conforme descreve sua ficha de internação (destacada na imagem). Dizia que não havia “a paz na consciência tão necessária para o repouso espiritual”.

Seria a primeira de suas quatro internações, que seguiriam até 1938. “Diz que infringiu as regras da boa moral, por pensamentos e atos pecaminosos que praticou. Acha que no sanatório só poderá piorar, porque seu caso é todo particular e não pode ser resolvido com a sua internação. Mostra-se perfeitamente orientado, sendo também perfeito o contato com o mundo exterior”, diz o registro.

Na página seguinte do prontuário, segue uma pequena biografia: padre do mosteiro de São Bento, já havia sido flagrado praticando atos homossexuais na Alemanha. Era constantemente vigiado, mas conquistou a confiança dos brasileiros. Era encarregado de ensinar adolescentes pobres (jornaleiros e aprendizes de marinheiros). “Contraiu um cancro luético [sífilis primária] na região perineal, o que até acerto ponto fala a favor de pederastia passiva”, diz o prontuário.

Dizia que, por sua causa, iria estourar no clero um “escândalo como não há memória”. “Parece que um dos rapazinhos, com quem mantinha relações homossexuais, ameaçou de o denunciar. Acha que está perdido, que vai caminhando para a completa loucura; tem certeza que irá terminar seus dias no Juquery.”

Dois meses depois de entrar no sanatório, enviou ao responsável pelo mosteiro uma longa carta em alemão. “Minha situação se tem tornado insuportável”, dizia. “Todos sabem por que estou aqui, e sou, por isso, alvo de escárnio e desprezo; sou obrigado a ouvir as mais torpes obscenidades e gracejos, e sou assim a todos causa de escândalo e enojo. Não posso mais dirigir aos internos palavra alguma de Deus e de religião, nem tratar com alguém; a todos sou um escândalo, e isto cresce dia por dia sem que possa repará-lo. Assim estou perdido para agora e para a eternidade. Que horror!”

No extenso comunicado ao superior, pede a remoção para Sorocaba (SP) ou para a Alemanha, em outro convento que não saiba de seu passado, porque “em São Paulo não pode mostrar-se ou tem de esconder-se de vergonha”. “Oh, meu Deus, seja clemente comigo para que, por arrependimento e penitência, eu possa voltar a Ti e reparar para o resto de vida o escândalo que eu tenho causado. Meu Deus, que horrível fim da minha vida de sacerdote!", continua.

"O senhor me deixou aqui para penitência, em um verdadeiro purgatório, gosto antecipado das torturas do inferno; porém, o sentimento de estar abandonado de Deus é a coisa mais terrível. Os médicos dizem também que é tempo de retirar-me para recuperar em outro lugar calmo o sossego perdido. Eu sei que aqui não é o lugar, mas sim o meu estado de alma que deve ser tranquilizado. Quanto mais tempo eu fico aqui, tanto pior se torna meu estado. Por amor a Deus, retire-me daqui e mande-me a Sorocaba até o senhor puder resolver algo de definitivo para o meu futuro. Não me abandone e salve-me desta situação.”

Nos outros três retornos, nenhum sinal de melhora. Na primeira alta, o termo usado pelo sanatório foi de “remissão completa”. “Voltando ao trabalho nada mais apresentou até princípios de setembro deste ano, quando começou a manifestar distúrbios psíquicos idênticos aos que apresentara no ano findo, sendo então necessária sua reinternação”, dizia o prontuário de 1931. “Entrou ansioso, dizendo que estava tudo perdido e que não havia mais remédio para o seu mal.”

Dois anos depois, nova internação. “Encontra-se em condições físicas bem precárias. Está bastante desnutrido, edemaciado e em estado de acidose bem marcada. Psiquicamente, é de se notar, depressão melancólica, ansiedade, insônia e sitiofobia (recusa em comer).”

Sua última estada começou em janeiro de 1937. “Acentuada depressão psíquica, acompanhada de insônia rebelde, porém em condições físicas relativamente boas”, conforme o registro. “Nestes últimos tempos vinha se mostrando um tanto excitado, desenvolvendo grande atividade junto à assistência aos pequenos jornaleiros, de que é dirigente, para cair em estado depressivo em que se encontra.” Morreu em 1943.

Purgatório

Meu Deus, que horrível fim da minha vida de sacerdote! O senhor me deixou aqui para penitência, em um verdadeiro purgatório, gosto antecipado das torturas do inferno; porém, o sentimento de estar abandonado de Deus é a coisa mais terrível

Dom Macário, sacerdote internado na clínica

Reprodução/Arquivo Público do Estado de São Paulo Reprodução/Arquivo Público do Estado de São Paulo

A clínica e os "tratamentos"

A longa fachada pintada de azul é a mesma de 1929. Seus casarões mantêm o estilo daquela década. O Pinel, hoje sob comando do governo do Estado, mantém suas atividades, respeitando os códigos atuais de tratamento de doenças mentais. Mas não era assim em seus primeiros anos. A homossexualidade era uma doença a se tratar --e o método mais difundido era o confinamento.

Mesmo antes do Sanatório Pinel, o Hospital Psiquiátrico do Juquery, em Franco da Rocha, “serviu como repositório de homossexuais enviados para lá por seus parentes”, afirma o brasilianista norte-americano James N. Green no livro “Além do Carnaval”, publicado em 2000 e que deverá ter uma nova edição até o fim deste ano. Ele cita o diagnóstico de Archangelo L, internado em 1908: “Desde os 16 anos, é pederasta passivo. Nunca praticou o coito normal com mulher”.

No Pinel, no entanto, os casos são mais evidentes, porque hoje estão catalogados pelo Arquivo Público do Estado de São Paulo. São 126 caixas com cerca de 3.800 prontuários, dos quais pelo menos 11 são casos que mencionam diretamente a homossexualidade como causa de internação.

Pacheco e Silva, fundador do Pinel, foi defensor contumaz do eugenismo sanitarista --um método de controle para que futuras gerações não tivessem contato com raças, gêneros e supostos desvios que viessem a comprometê-las (algo que o nazismo, por exemplo, utilizou). A Liga Paulista de Higiene Mental, por exemplo, promovia campanhas para “educar” a população sobre os riscos da mistura racial, da entrada de imigrantes “degenerados”, da “anormalidade” de práticas homossexuais e da crença em religiões espíritas.

Nos “Arquivos Paulistas de Higiene Mental”, publicação que divulgava as concepções de médicos que aderiram às ideias de Pacheco, acreditava-se que a “educação eugênica” reduziria o número de doentes mentais.

O primeiro método empregado no sanatório fundado por Pacheco e Silva era o de confinamento. Nada mais era feito. Os internos permaneciam por alguns meses e depois voltavam para os seus lares. A partir da metade dos anos 1930, os médicos passaram a usar a “convulsoterapia” e injeções de insulina (no alto, tabela com as aplicações dessas terapias em um paciente homossexual). Na época, ser homossexual, para aqueles médicos, era ser esquizofrênico.

Na convulsoterapia, o medicamento cardiazol (prescrito para esquizofrênicos) era injetado nas veias dos pacientes em quantidades crescentes para que ataques epiléticos fossem forçados. Seu efeito era semelhante ao de um eletrochoque, mas apenas com o uso de medicamentos.

A insulinoterapia também causava choques, mas hipoglicêmicos, o que induzia o paciente ao coma. Os eletrochoques --primeiro de baixa intensidade; depois, com frequências mais pesadas-- passaram a ser utilizados nas clínicas a partir de 1941. As autorizações das famílias para que os tratamentos fossem aplicados constam nos prontuários encontrados no Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Dois pacientes foram submetidos a eletrochoques apenas por se imaginarem homossexuais. Um deles veio do Rio de Janeiro e era bancário. Outro era filho de um oligarca paulista, que empresta o nome ao campus da maior universidade do Estado. Em nenhum dos casos há registro de “cura”.

Reprodução/Arquivo Público do Estado de São Paulo Reprodução/Arquivo Público do Estado de São Paulo

Internado pelos negócios

Dois médicos assinaram o atestado de internação de Napoleão. Naquele 19 de janeiro de 1935, ele veio trazido à força por inspetores de polícia para o Sanatório Pinel. Ele tremia. O próprio pai, Luiz, havia solicitado a internação.

A justificativa da família era a seguinte: “O senhor Napoleão, rapaz esforçado e trabalhador, fundou com o auxílio da irmã o Liceu Acadêmico de Belo Horizonte. Ultimamente, porém, o senhor Napoleão dispensou os serviços de sua irmã para confiá-lo ao professor João Candido Falleiros, que sobre ele passou a ter domínio absoluto. Abandonou a casa de sua família e passou a residir em companhia desse último, vivendo ambos no mesmo quarto”.

Napoleão não tinha anomalias, apenas gostava e vivia com um homem, o que provocou a ira de sua família. “O mesmo revelava tendências para práticas homossexuais, havendo indícios evidentes de que a elas se entregava com o seu companheiro de quarto”, dizia o prontuário. “Inúteis foram todos os esforços para fazê-los mudar de vida, razão por que se viram na contingência de interná-lo neste sanatório e fazer cessar uma situação deprimente e humilhante para toda a família.”

O diagnóstico, em si, não revelava nenhuma anomalia: Napoleão não revelou distúrbios sensoriais, apenas mostrava-se “amaneirado, afetado, efeminado”. Enquanto era questionado, exigia que os negócios continuassem com o seu companheiro, e não com a família. “Nota-se certa insensibilidade moral, por isso que conversa com naturalidade sobre os motivos que os trouxeram para o hospital.”

Revoltado com a intenção, permaneceu apático e indolente. Nos dias seguintes, se disse, segundo o sanatório, “arrependido da conduta que tivera e disposto a se regenerar”.

Em uma carta enviada à mãe, em 20 de março de 1935 (registrada na imagem), no entanto, ele não demonstrava o arrependimento sugerido no prontuário. “Sinto não poder ser-lhe agradável em resposta à carta que vem com o seu nome. Pois minha cultura intelectual e moral, graças aos seus esforços, não podem arranjar um sentimentalismo fictício para fazer com que, simplesmente, a senhora fique contente.” No meio do texto, ele cita sua internação como “ilegal”, antes de assinar como “filho afetuoso”.

Em outra correspondência, aconselha ao companheiro Falleiros que procure um advogado e se arme contra as ações de sua família.

Sem sentimentalismo fictício

Sinto não poder ser-lhe agradável em resposta à carta que vem com o seu nome. Pois minha cultura intelectual e moral, graças aos seus esforços, não podem arranjar um sentimentalismo fictício para fazer com que, simplesmente, a senhora fique contente

Napoleão, internado à força pela família por morar com outro homem

Arquivo pessoal Arquivo pessoal

Se não há mal, não há cura

Como justificar tratamentos desumanos a comportamentos que não poderiam ser associados a anomalias? O brasilianista James N. Green (na foto acima), autor do maior tratado sobre a homossexualidade no Brasil, “Além do Carnaval”, publicado em 2000, responde que era devido a uma ânsia de pesquisadores locais em se associarem rapidamente ao que era estudado fora do Brasil.

“Na passagem do Império para a República, surgem nas ideologias positivistas uma necessidade de provar que o Brasil estava acompanhando as novidades científicas mundiais”, afirma. “Várias pessoas debatiam assuntos como a homossexualidade e tentavam provar teorias internacionais. O mais famoso deles é Ribeiro de Castro, que tenta provar que o homossexual tem desequilíbrios hormonais e que os homossexuais são fisicamente diferentes dos homens heterossexuais.”

Green, que é norte-americano, foi o primeiro a ter acesso aos documentos do Pinel. Baseado em seus estudos, concluiu que as internações de homossexuais eram uma maneira de as classes médias afastá-los da sociedade. “Fica evidente que não existe cura para algo que é parte de sua natureza. A ideia de uma cura gay é absurda e não funciona. Não existe quem tenha passado por esse processo e tenha saído heterossexual.”

Segundo ele, não havia base médica ou científica. “Eles entupiam os pacientes de pílulas para que ficassem sem raciocinar. Era uma irresponsabilidade total dos médicos que faziam isso. Não havia prova de que isso funcionava --a não ser para justificar a internação.”

Ele cita o caso do médico Leonídio Ribeiro e da ação “científica” que estudou 185 homossexuais presos pela polícia do Rio. “Se você analisa, ela é totalmente malfeita, partindo para uma teoria que não se provou. Só mostra a pobreza de sua investigação científica", diz.

"Essa ideia combinava com uma ideia anterior, religiosa, que considerava um pecado com ideais culturais de gênero adequado para homens e mulheres. Como muitos não se encaixavam no masculino e no feminino, eram considerados como desvios de gêneros. Mas eram desvios de velhas ideias, sociais e culturais, legitimadas por cientistas que não legitimavam os processos científicos. Ao longo dos anos 1940 e 1950, essas ideais permaneceram e só foram contestadas pelos movimentos LGBT nos anos 1960.”

Paulo Reis dos Santos usou os arquivos do Sanatório Pinel para sua tese, apresentada em 2015 na Faculdade de Educação da Unicamp. “Nesse período, você tem discurso médico e religioso dizendo que sexo é para criar. É um discurso de que o sexo é para procriação. O que não for feito dentro de determinados parâmetros é um sexo anormal. Se é anormal, se caracteriza como doença e se tem várias técnicas e tratamentos e possibilidades de cura. Como se pudesse retomar a pessoa para a normalidade. Nesse momento, há uma disputa ideológica entre a medicina e a religiosidade e o curandeirismo. Quem está autorizado a tratar doenças? A curandeira ou o branco que estudou?”

Pelo fato de o Sanatório Pinel ser destinado às classes mais ricas, ele conclui que a sexualidade dos pobres não importava. “O Pinel era um hospital particular, só gente de posses que ia para lá. Tem algumas peculiaridades: o prontuário normalmente tem um lugar em que aparece o diagnóstico. Nenhum dos prontuários que peguei da década de 1930 tem o diagnóstico na capa. Lendo os prontuários, fui descobrindo as anomalias sexuais. Um deles está a lápis, em um canto, ‘parece que é pederasta’. É toda uma tentativa de ocultamento desse sujeito. Essa família que interna seu parente não quer que ninguém saiba. Ter alguém que vai para um hospital psiquiátrico é uma mancha.”

“O Sanatório Pinel era um hospital para mulheres, e tratavam homens totalmente escondido”, diz. “Provavelmente à base de suborno, para esconder as pessoas ali --por questão de heranças, de brigas familiares. Esses dados gritam: o que esses homens iam fazer em um sanatório feminino? Não aparecem narrativas dos pacientes. Ele não é consultado, não conta a versão de sua história. É sempre a narrativa de quem o internou. É isso que dá a invisibilidade, porque retira a voz do sujeito. Dos 11 prontuários, nenhum deles teve alta. Nenhum saiu curado. Ou fugiram ou foram retirados.”

Marcelo Justo/UOL Marcelo Justo/UOL

Médicos forçavam "diagnósticos"

Em três situações, jovens foram encaminhados para o Sanatório Pinel (na imagem, a janela de um dos prédios da instituição hoje) por práticas que não justificavam internação em hospital psiquiátrico. Em todas elas, “diagnósticos” como pederastia e inversão sexual eram utilizados para que esses adolescentes permanecessem em Pirituba.

José Alberto Sucupira Silva tinha 20 anos quando entrou no Pinel. Vinha de Espírito Santo do Pinhal (SP). Nada do que era descrito em seu prontuário sugeria uma deficiência mental.

“Obediência automática para certos atos; negativismo para outros, desconfiança, mutismo quase permanente, catatonia, risos imotivados, atenção difusa, depois de grande resistência, deu algumas respostas apreciáveis. Tem dificuldade de síntese. Desconfiado, a prestar atenção em qualquer ruído, dá a impressão de que é vítima de ideias delirantes, talvez de fundo persecutório”, diz a ficha, que acrescentava: “Demonstrava extraordinária predileção por um prato, passando então dias e dias a se alimentar exclusivamente dele. Quando entrou no Sanatório, só se alimentava de batatas”.

O que chamou a atenção da família é que Sucupira estava mais calado e retraído, o que determinava mais insistência para que falasse algo. Para justificar a internação, o sanatório descreve: “Tem leve inclinação para a pederastia passiva”.

Adalberto também tinha 20 anos quando entrou no Pinel. Vinha de Uberlândia (MG). Ficou um mês e meio, até fugir do sanatório. “Invertido sexual”, dizia o prontuário.

“Diz que tornou-se pederasta passivo há quatro anos contra sua vontade e somente por capricho, para desmoralizar o pai com o qual não combinava. Procurava sempre que seus atos de passividade fossem observados pelo pai ou ao menos deles ficasse ciente. Afirma peremptoriamente que não sente prazer e que não é invertido constitucional, e assim praticou exclusivamente como vingança de muitos atos do pai que o contrariavam. Foi somente com cinco pessoas que teve relações durante esses quatro anos. Ele mesmo quem os convidava, explicando o motivo porque era assim que procedia. A nosso ver, procura dissimular a perversão, alegando motivo que julga justo.”

“Diante de uma sociedade hostil que condenava e por vezes punia a homossexualidade, Adalberto tentava defender a si mesmo construindo uma história que legitimasse sua sexualidade, atribuindo-a a uma atitude de mera vingança”, afirma James N. Green, em “Além do Carnaval”.

Já Sidney da Silva Freire, 15, entrou magro e anemiado em 1º de agosto de 1933. Tinha olheiras e cicatrizes no rosto e nas pernas. “Tem 15 anos apenas e já tantos foram os atos anormais praticados que a necessidade da internação se impôs de modo categórico. Sempre se revelou pouco propenso ao estudo, nunca tendo se importado com as admoestações dos seus pais e professores. Entrou no Sanatório muito pálido e abatido, asseverando a sua progenitora que ele entrega-se excessivamente à prática do onanismo”, afirma o prontuário.

Dias depois de internado, foi flagrado tentando praticar um ato sexual com outro interno. Foi repreendido, mas suportou o incidente com certa naturalidade. “Mostra-se apreciavelmente orientado, respondendo às perguntas que lhe são feitas de modo aceitável, embora a idade mental pareça uns três anos a menos que a que tem”, dizia sua ficha no sanatório.

Sidney foi submetido a um longo questionário. Todas as possibilidades que pudessem enquadrá-lo em distúrbios psíquicos foram respondidos com "não". Menos uma:

- Manifestava satisfação ou contentamento, sem motivo justificado?

- Sim. Ria por qualquer motivo, especialmente ouvindo “conversas apimentadas”.

“A internação de Sidney no Pinel tinha mais a ver com a falta de habilidade de sua família em controlar o comportamento turbulento de um adolescente do que com qualquer problema psíquico”, afirma James N. Green, ao analisar a internação em “Além do Carnaval”.

Manifestava satisfação ou contentamento, sem motivo justificado? Sim. Ria por qualquer motivo, especialmente ouvindo "conversas apimentadas"

Questionário de adolescente de 15 anos no Pinel

O fim do terror

Em 1945, a administração do Sanatório Pinel, em Pirituba, foi passada para o Estado. A partir daquele ano, o hospital passou a cumprir seu objetivo inicial: internação de mulheres com problemas psiquiátricos. O abuso contra homossexuais homens deixou de ocorrer no local, e não há sinal de que outros centros tenham praticado essa política --o arquivo paulista concentra apenas os prontuários da clínica da zona norte.

Somente com a organização de movimentos de defesa LGBT os abusos de gênero passaram a ocorrer com menor frequência. As internações tornaram-se ilegais depois de o Brasil deixar de reconhecer a homossexualidade como doença em 1985, antes mesmo da OMS (Organização Mundial de Saúde), que só o fez quatro anos depois. No entanto, ainda há luta contra a violência contra homossexuais e a LGTBfobia, que envolve preconceitos contra gays, transgêneros e lésbicas.

Desde 1999, o Conselho Federal de Psicologia veda psicólogos a incentivarem ou proporem tratamento de homossexualidade.

Recentemente, a causa tem angariado oposição de frentes evangélicas e de entidades que ainda defendem ideias do século passado.

No dia 15 de setembro, decisão do juiz Waldemar Cláudio de Carvalho, da Justiça Federal do Distrito Federal, autorizou, em liminar, psicólogos a terapias de “reversão sexual”, sem censura de conselhos de classe, acatando o pedido de uma ação popular. Para o Conselho Federal de Psicologia, a decisão representa “uma violação dos direitos humanos e não têm qualquer embasamento científico”.

“Isso é uma calúnia e uma maneira de destilar preconceito. Casos de pedofilia são heterossexuais. Vamos fazer curas para heterossexuais que abusam crianças? O número de meninas violadas pelos padrastos é enorme. Mas a heterossexualidade não é questionada”, afirma James N. Green.

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