"Nunca tivemos água"

A história das famílias que deixaram suas casas com a esperança de uma vida melhor às margens do São Francisco

Andréia Lago e Ítalo Rômany Da Eder Content

Em São José de Piranhas, no sertão da Paraíba, onde não chove há cinco anos, o professor de geografia Claudio Dias, 41 anos, cresceu ouvindo a avó contar que havia um projeto para levar a água do rio São Francisco até a região. A cidade onde Dias nasceu e cresceu está a menos de 200 quilômetros de distância do rio. Em 2004, ele e outras 217 famílias descobriram que precisavam sair do caminho para o São Francisco chegar até eles. 

A pequena Piranhas, com cerca de 20 mil habitantes, é vizinha da Barragem Boa Vista, um dos maiores reservatórios do Eixo Norte da transposição do rio São Francisco. É também o município com a maior área desapropriada pela obra: aproximadamente 300 imóveis numa extensão de 5.200 hectares. São quase 10% da extensão territorial do município.

Salgueiro, em Pernambuco, e Brejo Santo, no Ceará, são os outros dois municípios que mais cederam terreno para receber as águas do Velho Chico. Juntos, removeram 328 imóveis numa área de 8.640 hectares. Apenas nessas três cidades, 478 famílias - a maioria de agricultores que vivia na área rural - deixaram casas e terras para trás para conquistar o direito à água. As obras, iniciadas em 2007, ainda não estão prontas.

"Continua a esperança, esperança que tudo dê certo, esperança que a vila se torne produtiva, esperança que o desenvolvimento chegue na nossa região e que o rio chegue, esperança que essa água chegue, pois muitos se foram nessa esperança", resume o professor Dias.

Cacalos Garrastazu/Eder Content Cacalos Garrastazu/Eder Content

No meio da paisagem árida do sertão pernambucano, a esperada água do São Francisco já inunda o canal

Do rio para lugar nenhum

A água que os moradores de São José de Piranhas aguardam já está sendo canalizada do rio para o Eixo Norte. Em Cabrobó, a 490 quilômetros de Recife (PE), a vegetação abundante indica que o São Francisco está próximo. Ao cruzar a ponte recém-construída sobre a BR-428, surge o canal. No meio da paisagem seca e desértica, o verde claro da água do rio brilha sob o sol de 38º.

De acordo com o projeto da transposição, a água captada no rio em Cabrobó deverá cruzar os municípios pernambucanos de Terra Nova, Salgueiro e Verdejante e a cidade de Penaforte, no Ceará, até o reservatório de Jati. Com 100% da obra concluída, o reservatório está vazio.

A obra parou em Salgueiro em junho de 2016, quando a Mendes Júnior anunciou que abandonaria o canteiro. Investigada na Operação Lava Jato, a empreiteira foi declarada inidônea e ficou sem financiamento para concluir o trecho. 

Cacalos Garrastazu/Eder Content Cacalos Garrastazu/Eder Content

"A localização é bastante inconveniente, se fosse em outro local já estaríamos com funcionalidade para a obra. Mas como fica muito próxima ao início, não podemos fazer a passagem (da água). Vamos estar com a obra pronta adiante, mas não consigo dar funcionalidade para todo o trecho seguinte, ligando até o Rio Grande do Norte", diz o ministro da Integração Nacional, Hélder Barbalho.

Agora, o trecho parado aguarda propostas para licitar a conclusão da obra. A previsão é que as ofertas sejam abertas no começo de fevereiro e o contrato seja assinado logo em seguida. Dos 140 quilômetros de extensão dessa primeira etapa do Eixo Norte, 92,2% estão prontos. Segundo o ministro, a entrega da Meta N1 do Eixo Norte poderá ocorrer no começo do segundo semestre de 2017 - com três anos de atraso em relação ao prazo inicial.

Casa nova, problemas novos

Em Salgueiro, os antigos moradores do Sítio Malícia estão completando dois anos de reassentamento numa das Vilas Produtivas Rurais (VPRs) criadas para acomodar quem teve casas e terrenos desapropriados pela transposição do rio. O agricultor Francisco Vieira Filho, 47 anos, recebeu uma casa em troca do terreno em que vivia e plantava com o pai e os irmãos. Ao redor da nova moradia, improvisou uma pequena horta e cria algumas galinhas - algumas desfrutavam da sombra oferecida pelo imóvel destinado ao posto de saúde da vila, há dois anos abandonado.

Assim como todas as famílias reassentadas no projeto, Vieira Filho recebe mensalmente do governo federal um benefício temporário no valor de R$ 1.300 até que a água do São Francisco permita que volte a plantar num lote irrigado dentro da VPR Malícia. Por enquanto, a água só chega aos sábados, quando o caminhão-pipa abastece as 20 casas do assentamento, e não é suficiente para o intervalo de uma semana até o reabastecimento. "Se eu soubesse que seria desse jeito, não teria aceitado (a desapropriação)", reclama o agricultor.

Cacalos Garrastazu/Eder Content Cacalos Garrastazu/Eder Content

A VPR Malícia é uma das 18 vilas do Projeto de Integração do rio São Francisco criado pelo governo federal para reassentar 848 famílias deslocadas pelas obras da transposição nos Estados do Ceará, Pernambuco e Paraíba. 

Além da água racionada e escassa, os moradores da VPR Malícia enfrentam um conflito territorial gerado pelo reassentamento. O terreno em que a vila foi construída está localizado na divisa de dois municípios. Com um agravante: os municípios de Salgueiro e Penaforte pertencem a Estados diferentes, Pernambuco e Ceará, respectivamente. O imbróglio impede que os moradores recebam os documentos dos novos imóveis.

"Todas as vilas estão sem documentos ainda, ninguém tem local de plantio demarcado. Isso piora as condições para esses moradores, que ficam sem acesso a programas sociais, como Bolsa Família, e às políticas de conquista da agricultura, como garantia de safra", resume o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Salgueiro, Manoel de Sá.

O ministro diz que a área foi escolhida pela viabilidade de produção, mas reconhece que a solução escapa ao governo federal. A negociação envolve as Assembleias Legislativas dos dois Estados. "Estamos dialogando há algum tempo, com possibilidade de permuta entre os Estados para que a Vila (Malícia) possa pertencer a Pernambuco, tanto a área produtiva quanto a residencial. Mas questões territoriais precisam ser resolvidas pelos Estados, então somente eles podem resolver", diz Helder Barbalho.

Cacalos Garrastazu/Eder Content Cacalos Garrastazu/Eder Content

Pórtico de entrada da VPR Vassouras, o maior dos assentamentos de deslocados pela transposição

"Era uma riqueza viver aqui"

Brejo Santo é um município cearense à beira da BR-116, localizado no menor trecho do Eixo Norte da transposição. Com apenas 39 quilômetros de extensão, a Meta N2 da obra concentra seis reservatórios ao redor da cidade. Até dezembro de 2016, 95,3% das obras estavam concluídas. Com as obras paradas no trecho anterior, em Salgueiro, os 48 mil habitantes de Brejo Santo enfrentam racionamento diário no abastecimento de água.

O assentamento das 145 famílias deslocadas pela transposição fica a 20 minutos de carro, em estrada de terra, do centro da cidade. O asfalto, diz o presidente da Associação de Moradores da VPR Vassouras, Rinaldo Cardozo de Oliveira, foi destruído pelo tráfego intenso de caminhões e máquinas a caminho do canteiro de obras do Reservatório dos Porcos.

O nome do reservatório é o mesmo do riacho que corria na área desmatada para ser inundada com água do São Francisco. O antigo leito do Riacho dos Porcos está totalmente seco, para tristeza dos antigos moradores do local. O agricultor Juarez Francisco da Silva, 45 anos, conta saudoso que plantava e colhia de seis a sete safras de feijão por ano, e ainda criava gado, bodes, porcos e galinhas. A água, "limpa e cristalina", vinha de um açude próximo. "A gente morava numa riqueza", relembra, em meio ao terreno desmatado à espera do rio.

Com uma propriedade avaliada em R$ 55 mil no distrito de Poço do Pau, o agricultor abriu mão dos recursos em troca de uma moradia na VPR. Nos últimos três anos, viveu morando de aluguel e fazendo bicos de pedreiro para sustentar a família. "Só o benefício mensal que o governo paga não dá para pagar as contas", reclama.

A nova moradia de Juarez na VPR Vassouras ficou pronta no primeiro semestre de 2016, mas a família continuou no aluguel. Com rachaduras nas paredes, a casa não foi liberada até que os reparos fossem feitos. Quando a chave foi entregue, a mudança da família ainda teve de aguardar a inauguração oficial da vila pelo ministro Helder Barbalho, no final de outubro. 

Cacalos Garrastazu/Eder Content Cacalos Garrastazu/Eder Content

Com as casas entregues, os reassentados na VPR Vassouras têm outra preocupação. Os lotes para produção não estão demarcados ou cercados, e a vegetação nativa que cerca as casas impede que as famílias retomem os cultivos e criações que tinham nas áreas desapropriadas pela transposição.

"Fomos informados que a retirada dessa vegetação não pode ser feita como é nosso costume, na foice, derruba e depois coloca fogo", explica Oliveira, da Associação da VPR. Segundo ele, seria necessário contratar uma empresa para limpar a área conforme prevê o Código Florestal Brasileiro. "Mas não temos condições, então como vamos colocar esses lotes para produzir?"

Cacalos Garrastazu/Eder Content Cacalos Garrastazu/Eder Content

A insegurança dos reassentados em Brejo Santo é que a entrega das casas acelere a suspensão do benefício pago pelo governo às famílias, antes mesmo que as áreas de cultivo voltem a gerar renda. Oliveira afirma que já foram alertados para a perda do benefício nos seis a oito meses seguintes à entrega das moradias. No Ministério há pouco mais de seis meses, Helder Barbalho diz que os recursos para os projetos atrelados à transposição do rio São Francisco estão garantidos e em dia. "Essa obra é prioridade, nosso planejamento é que possamos garantir esse benefício até que haja a passagem da água", afirma.

Nada disso conforta a servidora municipal Maria Lívia Carvalho da Silva, 28 anos. Removida da casa de taipa onde morava com o filho pequeno, a poucos metros do agora seco Riacho dos Porcos, ela não era casada quando o cadastro foi feito pelo governo federal, em 2004. A obra demorou e ela formou sua própria família, mas o prazo para requerer o reassentamento já tinha se encerrado.

"Minha casa era de barro, caindo aos pedaços, mas era minha. Agora, eu vivo de aluguel na cidade com uma renda de meio salário mínimo. Nunca recebi nenhuma ajuda de custo ou indenização", reclama. Em dezembro de 2016, Lívia e sua família invadiram uma das 145 casas da vila construída pelo governo. Até o fechamento desta edição, não houve remoção.

Barragem pronta e torneiras secas

As queixas e dificuldades comuns aos reassentados de Salgueiro e Brejo Santo não chegaram a São José de Piranhas. A cidade, que é a menor entre as três com maior área desapropriada pela transposição e também a que cedeu mais terreno para receber água do São Francisco, recebeu investimento de R$ 60 milhões do governo federal. Em Cacaré, a segunda maior VPR do projeto, a escola está funcionando, há uma pequena praça e há planos de construir uma igreja. "Antes eu não acreditava que isso ia acontecer, fiquei deprimida de deixar minha casa, mas agora eu acho que melhorou", diz a agricultora Helena dos Ramos Alves, 55 anos, moradora de Cacaré. "Só falta a água."

Cacalos Garrastazu/Eder Content Cacalos Garrastazu/Eder Content

O caminhão-pipa chegou junto com a reportagem à VPR. Claudio Dias, o professor que preside a associação de moradores de Cacaré, diz que o poço perfurado na região logo secou, deixando as 120 casas da vila na dependência do caminhão-pipa. "É uma água que simplesmente só dá para manter a casa. Se um morador quiser plantar uma horta hoje, não tem condições, porque não tem acesso à água."

Essa é a única queixa do agricultor Edval Pereira Lins, 55 anos. Reassentado em Cacaré, ele diz que a casa que recebeu é melhor e que a vida está boa. "Mas sábado e domingo falta água. O rio tem que chegar, pra produzir tem que ter bastante água. Trabalhar com pouca água não resolve o problema, não." Assim como nas VPRs Malícia e Vassouras, em Cacaré os lotes produtivos ainda não foram demarcados. Dias teme pelos desdobramentos do projeto das VPRs quando a transposição estiver concluída. "Nossa grande preocupação é que, após a  conclusão do projeto, essas famílias que estão nas vilas produtivas tenham condições de produzir e que o projeto da integração possa cumprir seu papel de tirar da pobreza essas famílias que foram afetadas", afirma. 

Cacalos Garrastazu/Eder Content Cacalos Garrastazu/Eder Content

Em Irapuá I, vila com 30 casas a poucos quilômetros da VPR Cacaré, a água nunca chegou. "Disseram que a gente já mudaria pra cá com água, mas não foi o que aconteceu", conta o representante dos moradores Damião Ferreira Fernandes, 26 anos. Segundo ele, os dois poços perfurados na comunidade secaram logo após a entrega das casas. "Desde a primeira semana até hoje, estamos sendo abastecidos exclusivamente com carros-pipa, a gente não sabe nem a procedência dessa água", afirma. Segundo ele, são três carros-pipa de 9.000 litros por semana, volume de água que se esgota em dois dias. 

Dias lembra que a vida do sertanejo é feita de esperança - palavra que o dicionário define como "sentimento de quem vê como possível aquilo que deseja". Quando precisa resumir a situação dos assentados, usa outra palavra: espera. Fernandes, de Irapuá I, é mais objetivo: "Todo mundo tá feliz aqui. O problema é a água, que nunca tivemos".

Curtiu? Compartilhe.

Topo