Recados da escuridão

'É estranho no século 21 ainda ter que explicar que tortura é algo ruim', diz filho de Ricardo Darín

Bruno Aragaki Do UOL, em São Paulo
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Após assistir a “Uma Noite de 12 anos”, filme que conta o período que José “Pepe” Mujica e dois colegas guerrilheiros passaram confinados, o ex-presidente uruguaio telefonou a um deles e disse: “Russo, o filme é muito bom. Mas não vejo de novo. Nunca mais”.

Do outro lado da linha, Mauricio Rosencof, o Russo, respondeu: “Pepe, é melhor ver do que viver isso”.

Com “isso”, Rosencof se referia às condições subumanas a que foram submetidos na prisão durante a ditadura uruguaia (1973-1985): por mais de uma década, foram privados de falar e tiveram pouco acesso a luz, comida e água.

Depois de recuperar os 11 quilos que perdeu para interpretar Rosencof, o ator Chino Darín, filho do astro argentino Ricardo Darín, analisa os seis meses que viveu na pele do ex-guerrilheiro preso. “É estranho, é aberrante, no século 21 ainda ter que explicar para alguém que a tortura é algo ruim, ou que certas coisas não podem ser ditas assim, na brincadeira”, disse por telefone ao UOL.

Lançado no Brasil em 27 de setembro, o filme que revive um dos capítulos mais tristes da história recente do Uruguai já levou 22 mil espectadores ao cinema por aqui.

Recebo muitas manifestações de brasileiros que vão ao cinema e dão ao filme um valor muito oportuno. Adoraria que ele pudesse mudar valores

Chino Darín

Chino Darín, Ator argentino que interpreta o ex-guerrilheiro 'Russo', preso durante 12 anos pela ditadura uruguaia

"Uma noite de 12 anos"

Filme repassa a tortura física e psicológica que Mujica e 2 companheiros enfrentaram durante ditadura no Uruguai

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Nunca mais

"Uma Noite de 12 Anos" é baseado no livro “Memorias del Calabozo” (não traduzido para o português), escrito por dois companheiros de Mujica na prisão --Eleuterio Fernández e Mauricio Rosencof. A trama aborda os anos de chumbo uruguaios do ponto de vista de três rebeldes da guerrilha tupamaro capturados pelo regime.

“Escrevemos o livro por um dever militante. No prólogo, fazemos um chamado para criar uma barricada de testemunhos, em nome do ‘nunca mais'”, disse Rosencof, hoje aos 85 anos, ao UOL.

Versão uruguaia das guerrilhas de extrema-esquerda que disputaram o poder na América Latina nas décadas de 1960 e 1970, os tupamaros são acusados de mais de 60 assassinatos no país vizinho, além de sequestros (incluindo o de um diplomata brasileiro) e roubos. A ditadura militar instalada na sequência matou mais de 400 e prendeu mais de 10 mil – em um país de cerca de 3 milhões de habitantes.

“Na minha humilde opinião, não acredito nessas etiquetas de bons e maus. Salvo alguns iluminados, que já têm as coisas mais claras, acho que a maioria de nós somos pessoas perdidas tentando soluções. O filme não vem para julgar, é uma reflexão sobre uma história de sobrevivência”, diz Chino Darín.

Uruguai em 4 atos

  • 1963 - Surgem os tupamaros

    Para desestabilizar o sistema, praticam sequestros e assaltos. Estima-se que mataram 66 pessoas, incluindo 14 civis.

    Imagem: Reprodução
  • 1973 - Golpe de Estado

    Militares tomam o poder. Nove rebeldes são feitos reféns do regime militar. Milhares de uruguaios desaparecem ou são presos nos anos seguintes.

  • 1985 - Acaba a ditadura no país

    Estimam-se que 465 pessoas foram assassinadas pelo Estado.

    Imagem: Miguel Rojo / AFP
  • 2010 - Mujica presidente

    Ex-líder tupamaro assume a Presidência do Uruguai. Oposição diz que país será "nova Venezuela".

    Imagem: Sergio Lima/Folhapress
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Agonia

Em 1973, nove guerrilheiros do grupo tupamaro, já presos, foram transferidos clandestinamente por militares e feitos "reféns" do governo: caso a guerrilha cometesse mais algum atentado, os prisioneiros seriam assassinados.

Mantidos isolados e proibidos de falar entre si e com os guardas devido ao seu "alto potencial de periculosidade e convencimento", os rebeldes foram submetidos a agressões físicas, fome e sede. Diversas vezes estiveram à beira da morte ou, no melhor das hipóteses, a um passo da loucura.

"Eles nos transferiram 47 vezes entre os quartéis (para evitar operações de resgate ou contato com as famílias)", conta Rosencof em entrevista por e-mail.

Nossa história parece de ficção científica. Para falar entre nós, desenvolvemos um código baseado em batidas de dedos contra a parede

É nesse ambiente de isolamento, escuridão, agonia e privação que o espectador passa a maior parte das duas horas que compõem o filme, dirigido pelo uruguaio Álvaro Brechner. O roteiro lança uma lupa sobre a história de três dos prisioneiros: Pepe Mujica, eleito em 2009 presidente do Uruguai; Mauricio Rosencof, hoje diretor de Cultura de Montevidéu, e Eleuterio "Ñato" Fernández, que foi ministro da Defesa no governo de Mujica e morreu de causas naturais em 2016.

Arte e vida

Vivi a história de um homem submetido a um nível de torturas e aberrações que tira da pessoa tudo aquilo que é humano. Chocar-se com isso é apartidário

Chino Darín, 29

Chino Darín, 29, intérprete de Rosencof no filme

Sem comida, viramos 'insectívoros'. Sem água, aprendemos a reciclar nossa urina. É possível cair, mas uma vez no chão, só resta escalar

Rosencof, 85

Rosencof, 85, ex-guerrilheiro tupamaro, hoje jornalista e dramaturgo

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A atmosfera sombria do filme se completa pela trilha sonora melancólica: uma versão de The Sounds of Silence, lançada pela primeira vez em 1964 --ano do início da ditadura militar no Brasil. 

"Olá, escuridão, minha velha companheira. Vim falar com você de novo", diz a canção em inglês claro e pausado interpretado, no filme, pela catalã Silvia Perez Cruz. 

Na plateia, escutam-se choros e soluços. 

"É uma história forte, mostra tudo aquilo de que o ser humano é capaz, para o bem e para o mal", resume Chino Darín.

Apesar da crítica sobretudo positiva que o filme arrebanhou, no Uruguai, conta Darín, houve também comentários negativos --sobretudo de setores para quem a obra não dá o devido peso aos crimes cometidos pelos guerrilheiros.

"Ouvi que o filme conta 90% da história. Querem um rigor histórico que o filme não tem obrigação de trazer. Não é documentário, não é livro, não é jornalismo", diz Chino.

Polarizações

'Nas redes sociais, as pessoas tiram conclusões muito rápidas. Sou alguém que tem poucas certezas', diz Chino

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Não podemos esquecer o que as massas organizadas são capazes de fazer. A história está cheia de exemplos, e o filme traz alguns deles --para ambos os lados.

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As pessoas são livres, mas ir a um show do Roger Waters e achar que é Disneylândia é tão paradoxal, revela um desconhecimento. Sou fã do Pink Floyd e sei do que se trata.

Arquivo pessoal / Reprodução Arquivo pessoal / Reprodução

Gosto de coisas de um lado, outras de outro, não me identifico com nenhum partido. Sou contra os fanatismos, a favor da paz e do amor. Pode dizer que sou 'morno'.

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Contra a parede

O filme me mudou profundamente, por me fazer comparar a situação (dos prisioneiros) com a minha própria vida, meus erros, meus acertos, meus limites. É uma questão puramente humanística

sobre o impacto do fime

Mas não acredito que um filme mude a opinião política de alguém. Eu já tenho as minhas e continuo tendo. E vê esse tipo de filme quem pensa de uma certa maneira

sobre o potencial de sensibilizar sobre a ditadura

Marcelo Singer / Divulgação Marcelo Singer / Divulgação

A diretora da Vitrine Filmes, distribuidora do título no Brasil, Silvia Cruz, diz esperar que "o filme provoque aqui reflexões sobre a ditadura e suas consequências".

Darín rejeita esse potencial.

"No Brasil e no Uruguai, sobretudo, o filme ganhou um matiz político especial. Mas não acredito que o filme tenha esse poder (de mudar opiniões), nem muito menos. A história está aí para nos iluminar. Este é um espaço para refletir, uma história intimista, mas claro que depende do ponto de vista. Toda interpretação é válida."

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