Morte antes dos 40 anos

Brasil perdeu 2,7 milhões de jovens em 20 anos para a violência, acidentes de trânsito, AVC, infecções...

Carlos Madeiro, Carolina Farias e Larissa Leiros Baroni Colaboração para o UOL, em Maceió, no Rio, e do UOL, em São Paulo
Sergio Moraes/Reuters

Em duas décadas, 2,7 milhões de jovens entre 15 e 39 anos morreram. Jovens que, em plena fase produtiva da da vida, nos deixaram.

Mas por que há tantas mortes nessa faixa etária, em que se espera que os problemas de saúde ainda não sejam prevalentes a ponto de causar morte?

UOL pesquisou os dados de 20 anos do Datasus --sistema do Ministério da Saúde-- em busca das causas de morte dessa população. O levantamento levou em conta dados de 1996 a 2015 --ano com informações mais recentes nas planilhas.

Entre as principais razões de morte estão agressões, acidentes de trânsito, câncer, doenças circulatórias e as infecções.

Fonte: Ministério da Saúde

Em 1996, morreram 136 mil pessoas entre 15 e 39 anos. Em 2006 foram 130 mil as mortes. Já em 2015, 139 mil. Embora o número se mantenha estável, as causas das mortes mudaram ao longo desses anos.

A primeira constatação é que grande parte dos jovens não morre, é morta. As agressões são a principal responsável por tirar a vida dos jovens no Brasil. Em 2015, 43 mil jovens foram assassinados --ou 31,2% de todas as mortes.

Os acidentes de transporte causaram 20 mil mortes em 2015 --14,6% do total. Somados a outros acidentes, que mataram 7,1 mil jovens, as três causas externas sozinhas respondem por mais da metade das mortes do país nessa faixa etária.

As mortes causadas por acidentes e agressões vêm crescendo ao longo dos anos. Em 1996, elas respondiam por 49% do total de mortes, em 2015 eram razão de 58% dos óbitos.

As vítimas são na maioria das vezes homens. Em 2015, foram 72,8 mil jovens mortos do sexo masculino, contra 8,3 mil jovens mulheres.

O Nordeste é a região do país onde as agressões respondem pelo mais alto percentual de mortes de jovens: 38% das mortes foram "matadas", como se costuma dizer na região. A taxa é bem maior que o Sudeste, por exemplo, onde esse percentual é de 22%.

Para Hélia Kawa, professora da UFF (Universidade Federal Fluminense) e pesquisadora colaboradora do Laboratório de Monitoramento Epidemiológico de Grandes Empreendimentos da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), as mortes por causas externas são, de fato, as que mais chamem a atenção.

Isso não me parece ocorrer pelo subdesenvolvimento, mas por diferenças de oportunidade e consequente projetos de vida destes grupos populacionais nas distintas regiões."

Acervo pessoal Acervo pessoal

Uma briga na madrugada

O fim da vida aos 16 anos

Era madrugada de 23 de novembro de 2010. José Alexystaine Laurindo foi assassinado aos 16 anos com tiros na cabeça no município de Matriz do Camaragibe (AL). Testemunhas falaram que ele teria tentado separar uma briga. Quem atirou foi um jovem de 17 anos, apreendido.

A morte do jovem marcou profundamente a vida de sua mãe, Ana Cláudia Laurindo. "Existem dois lados em mim, aquele comum, que pertence a todas as mães órfãs, que é a diminuição irrecuperável da alegria de viver. Nunca mais somos as mesmas mulheres. Uma parte da gente se vai para sempre. No outro lado tem o aspecto acadêmico e político, que transformou a experiência em bandeira de luta, sou defensora ativa do direito de viver."

Além da perda do filho, houve também a dor de precisar lutar para que o caso tivesse Justiça. "Lutar por justiça parece ser crime. Desgasta de tal modo, que preferi registrar em livros para levar os culpados ao tribunal da história. Esse tribunal social não funciona", afirma a socióloga.

Mais que problema de segurança

Para a coordenadora do Núcleo de Estudos sobre a Violência em Alagoas, Ruth Vasconcelos, o problema do envolvimento da população jovem com a criminalidade deve ser abordada em múltiplas dimensões, e não apenas como um problema de segurança pública.

"A reversão desta realidade que se agravou nesta última década pressupõe o reconhecimento de que esse é um problema de toda a sociedade, e não apenas da juventude", pontua.

Para ela, a entrada dos jovens nos índices de violência encontra explicações, entre outras coisas, na garantia e oportunidade de acesso a bens e serviços coletivos de qualidade. 

"Estamos diante de uma questão de segurança pública, evidentemente, mas precisamos pensar essa segurança como um direito, e também como um dever de todo cidadão, no sentido de que cada sujeito precisa sentir-se responsável pela construção de uma sociedade mais justa, igualitária e pacificada. Esta é a condição para reverter tamanha crueldade social", finaliza.

Arquivo Pessoal Arquivo Pessoal

Trajeto sem volta

Havia um caminhão na contramão

Ele tinha apenas 26 anos. Saiu de casa para visitar a namorada, como habitualmente fazia às sextas-feiras, mas nunca mais voltou. Foi impedido por um caminhão, que, ao tentar ultrapassar um outro veículo, bateu de frente com a caminhonete do catarinense Rafael Bortolon. O jovem morreu na hora e entrou para as estatísticas, que colocam os acidentes de trânsito na lista das principais causas de morte dos brasileiros.

Em 2015, segundo o Ministério da Saúde, 20.441 pessoas de 15 a 39 anos morreram nas estradas brasileiras. O número representa 14,61% das mortes nessa faixa etária. No Sul, os acidentes de trânsito têm uma representatividade maior do que a média nacional: 18,2%.  

O acidente de Bortolon ocorreu na madrugada do dia 17 de dezembro de 2016, na estrada entre os municípios de Tapejara e Cruzeiro do Oeste (SC). "Ele fazia esse trajeto habitualmente há pelo menos um ano, quando começou a namorar", afirma Janiele Belquiqui, 30, prima do catarinense.

Segundo ela, o motorista que fez a ultrapassagem proibida tentou fugir do local da batida, mas foi impedido.

O catarinense era filho único e, cuidava da fazenda da família. "Ele dizia que queria casar aos 30 anos e ter filhos, para ser um paizão igual ao pai dele", conta a prima. 

Não são apenas acidentais

A maioria das vítimas de acidente de trânsito morre durante seu período produtivo, afirma José Montal, vice-presidente da Abramet (Associação Brasileira de Medicina de Tráfego). "Esse é um tipo de mal que geralmente mata no esplendor da vida."

Como acrescenta Montal, esse tipo de morte não é nada acidental. "Tem causas e poderiam ser totalmente evitáveis", destaca o especialista, que diz que às transgressões ao código de trânsito, o gosto pelas altas velocidades, bem como o álcool, as drogas, a fadiga e a sonolência potencializam esses riscos. 

Segundo ele, a resistência do corpo humano não é compatível com a velocidades acima de 40 km/h. "Quem é que hoje dirige a uma velocidade inferior? Não à toa 60% dos leitos do país estão ocupados pelas vítimas de acidentes de trânsito."

Arquivo Pessoal Arquivo Pessoal

Parece sem explicação

Um AVC deitado na cama

A história do jogador de basquete Richard da Silva Lourenço (primeiro à dir.) foi interrompida por causa de um AVC (Acidente Vascular Cerebral) aos 22 anos. Ele estava deitado em sua cama quando foi encontrado morto pelo pai em uma manhã de julho de 2017.

"Estranhei que não tinha acordado no horário habitual, fui até o quarto dele e brinquei: 'oh, acorda dorminhoco'. Como não respondeu, toquei nele e senti o rosto dele gelado", relembra Robinson de Brito Lourenço, 49, pai do jovem, que morava em Jundiaí, no interior de São Paulo.

Richard trabalhava como paisagista junto com o pai, mas tinha planos para sua carreira esportiva. "Ele treinava desde os 10 anos de idade", conta o pai. "Ele tinha uma saúde de ferro, até febre era difícil ele pegar."

Em 2015, 10.766 brasileiros de 15 a 39 anos morreram em decorrência de doenças do aparelho circulatório. O número representa 7,7% das mortes nessa faixa etária, mas o índice chega a 9,96% considerando apenas os moradores do Sudeste. 

Sedentarismo, diabetes, pressão alta são vilões

"O controle dos fatores de riscos minimiza em até 90% as chances de se ter um AVC", afirma Gisele Sampaio, neurologista do Hospital Israelita Albert Einstein. Segundo ela, a pressão alta, a diabetes, o descontrole do colesterol, o sedentarismo, a obesidade e o alcoolismo são alguns dos principais fatores de risco.

O desafio maior, nesse caso, é romper com os padrões da sociedade atual. De acordo com o Ministério da Saúde, no mesmo ano, 53,8% dos brasileiros tinham excesso de peso e 18,9% eram obesos. E mais: cerca de 10% da população brasileira entre 25 a 34 anos tinha o diagnóstico de hipertensão arterial.

"A saúde é um contínuo e precisa ser acompanhada periodicamente para que os 'pequenos fatores' podem ser detectados a tempo de serem tratados. Com o controle de todos esses fatores, as possibilidades de uma desagradável surpresa são muito menores."

Acervo pessoal Acervo pessoal

"Foi crueldade com a Juliana"

Adolescente morreu após o parto

Mesmo com o pré-natal em dia e nenhuma previsão de problemas, Juliana Rodrigues, 16, não resistiu às consequências do parto de Kaique, em setembro de 2014, e morreu dez dias depois de dar à luz ao menino. 

“Ela morreu de sepse (infecção generalizada), na técnica, mas foi negligência médica. Ela foi abandonada e deixada lá para morrer”, diz, indignada, Samanta Santos, de 42 anos, tia que ajudou a criar a adolescente e criou o movimento Mães do Hospital de Acari, na zona norte do Rio de Janeiro, onde Juliana teve o filho e morreu.

O coletivo reúne relatos de outros casos de morte de mães e crianças em decorrência de suposta negligência e descaso da unidade. O caso de Juliana virou processo contra o hospital e está sob análise do Ministério Público.

De acordo com Samanta, sua sobrinha chegou à maternidade do Hospital Municipal Ronaldo Gazolla após sentir-se mal, aos sete meses de gestação. 

“Foi um parto traumático, demorado, com xingamentos (da equipe). Minha irmã não pode acompanhar. O bebê foi transferido para um hospital de referência e ela transferida dois dias depois”, contou Samanta.

Juliana foi submetida a uma cesariana pois já estava expelindo mecônio, que são as fezes da criança junto ao líquido amniótico, que representa perigo ao bebê.

Kaique nasceu com o intestino para fora do corpo e precisou de cirurgia logo nos primeiros dias de vida. A mãe foi para a casa mesmo se queixando de falta de ar e dores. Nenhum exame foi feito.

“Ela voltou ao hospital, mas não tinha ninguém para atendê-la porque era atendimento só para gestantes. Ela teve convulsão, estava com a pressão mínima e máxima juntas. Ela estava gritando um dia quando um médico da CTI (Centro de Terapia Intensiva) a ouviu gritar e foi examiná-la. Eles abriram e ela estava com ovário e trompas necrosados. Eles fecharam e ela morreu em dias”, afirma a tia.

Diferentemente de Samanta, a mãe de Juliana, Samara Santos, não consegue falar do caso. O neto morreu meses depois.

Atualmente a página no Facebook Mães do Hospital de Acari reúne três mil mulheres, médicos, profissionais da saúde e mães que tiveram problemas na unidade, hoje administrada pela ONG Viva Rio. Graças às denúncias do movimento, a empresa que administrava o hospital foi afastada da unidade. Samanta faz parte atualmente do Colegiado Gestor do hospital. Além do caso de Juliana, outras mulheres denunciaram o hospital ao Ministério Público.

A morte vai acontecer com todo mundo, mas foi crueldade com a Juliana. A gravidez dela não era de risco”

Por meio de nota, a Superintendência de Maternidades da Secretaria Municipal de Saúde esclarece que o caso de Juliana dos Santos foi investigado pela Comissão Regional de Óbito Materno, que confirmou o laudo da causa da morte como choque séptico e salpingite (inflamação na trompa de falópio). Segundo a nota, a instituição que administrava o hospital já não presta mais serviços para a secretaria.

Aids, tuberculose e infecções

Apesar da queda no percentual de causas, as mortes naturais também respondem por boa parte dos óbitos de jovens no país. Em 2015, os cânceres, as doenças circulatórias e as infecções responderam por 29,9 mil mortes de mortes --ou 21% do total. Entre esses índices, as infecções são a que mais tiveram mudança ao longo de duas décadas. Em 1996, morreram 15,2 mil jovens por essa causa. Já em 2015 esse número foi de 8,5 mil.

Para a pesquisadora da UFF, essas mortes devem ser consideradas como ponto importante da estatística. "Nesta faixa etária, as doenças infecciosas se referem principalmente às septicemias (infecções generalizadas), Aids e tuberculose, estas últimas, com políticas de prevenção já estabelecida no país".

A especialista diz que o Brasil falha na prevenção de mortes da população nesse faixa etária. "Isso ocorre, de um modo geral, pela falta de perspectiva das populações mais jovens, cada vez mais distante dos sonhos prometidos pelo mercado e pela mídia induz este quadro. Políticas de promoção à saúde como lazer, esporte e artes poderiam contribuir fortemente para aumentar a autoestima e reforçar a coesão social".

Além disso, ela diz que é preciso também assegurar o acesso aos serviços de saúde e unidades de pronto-atendimento para trauma e doenças cardíacas. 

Mortes no parto são evitáveis

Olímpio Barbosa de Moraes Filho, presidente da comissão de Assistência Pré-Natal da Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia), afirma que as mortes por parto são evitáveis e o alto índice brasileiro apontam para um subdesenvolvimento do país.

"A OMS [Organização Mundial de Saúde] mostra que 98% das mortes maternas são em países em desenvolvimento. E o Brasil está nisso. sem contar os problemas que não matam mas resultam procedimentos cirúrgico que causam sequela", afirma.

Para ele, praticamente todas as mortes maternas ocorreram por alguma falha. "Isso passa por vários fatores: a falta de planejamento da gravidez, o pré-natal de baixa qualidade, às vezes quando faz o pré-natal não consegue encaminhar para o lugar certo, para um exame; e tem falta de leito nessa crise do SUS. Isso faz com que não se consiga diminuir no Brasil, e as principais vítimas são mulheres jovens"

O especialista aponta que os cinco itens que mais matam mulheres nessa fase são: hipertensão na gravidez, hemorragias, infecção, doenças não-obstétricas --como as cardíacas que levam a um infarto na hora do porta-- e o aborto.

No caso do aborto, há um detalhe que chama a atenção de Olímpio: a pouca confiabilidade nos números oficiais.

"A gente acha que o número o muito maior, há uma subnotificação porque no Brasil é crime. O que mata não é aborto feito em hospital, mas sim o aborto em condições clandestinas, porque aí tem uma infecção, tem medo de tratar porque isso é um crime e não vai ou demora a procurar um hospital. De todas as causas, é a mais fácil de evitar, basta mudar a lei", aponta.

Ministério da Saúde foca em ações de prevenção

O Ministério da Saúde informou que tem realizado ações para diminuir a morte por causas evitáveis de jovens com foco nas ações de promoção da saúde e prevenção de agravos, em nota enviada ao UOL.

"A rede do SUS constitui-se espaço privilegiado para a identificação, acolhimento, atendimento, notificação, cuidados e proteção de pessoas em situação de violências. As políticas voltadas à promoção da saúde e da cultura da paz baseiam-se em princípios de respeito pleno à vida e na promoção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, na prática da não-violência por meio da educação, do diálogo e da cooperação", disse.

Entre os itens citados pelo órgõa estão a prevenção do uso de álcool e outras drogas, envolvendo outros setores da sociedade. 

Outro item citado é o investimento no projeto "Vida no Trânsito", que em parceria com os Estados. Desde 2010, a ação ampliou a fiscalização, principalmente no que se refere ao "álcool e direção" e à velocidade excessiva e/ou inadequada.

Também desde 2001, o Ministério informou que investe na Política Nacional de Redução da Mortalidade por Acidentes e Violências. Desde agosto de 2012, a pasta diz que repassou de R$ 31 milhões para ações de vigilância e prevenção de violências e acidentes.

Curtiu? Compartilhe.

Topo