Médicos 'de guerra' no Rio

Aumento brutal de violência coloca profissionais de saúde da Cidade de Deus em cotidiano de zona de conflito

Carola Solé Da AFP
Mauro Pimentel/AFP

A UPA (Unidade de Pronto Atendimento) da Cidade de Deus foi criada para atender pequenas emergências como gripes ou infecções estomacais, mas nos últimos meses passou a receber cada vez mais pessoas baleadas e a ter tiroteios como trilha sonora.

Esta pequena unidade pré-fabricada no meio da comunidade se converte, praticamente, em um hospital de campanha aos finais de semana. Na última sexta-feira, às 22h, o primeiro baleado entrou cambaleando: um homem de 38 anos com um tiro na mão, marcas por todo o corpo e que deixou um rastro de sangue em seu caminho até a sala de emergências.

Enquanto os bebês com febre choravam e alguns idosos aguardavam para ser atendidos, médicos e enfermeiros se apressavam para fornecer os cuidados iniciais para depois poder transferi-lo rapidamente a um dos hospitais próximos, com os equipamentos de cirurgia necessários, mas distante desta humilde e violenta comunidade da zona oeste do Rio.

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Dentro de zonas de conflito

A cena voltou a se repetir na madrugada de segunda-feira ainda de forma mais dramática. O intenso tiroteio durante uma ação do Bope (Batalhão de Operações Especiais) contra os traficantes paralisou a comunidade, deixando-a sem aulas, mas não impediu o funcionamento desta UPA 24 horas.

Com somente quatro camas em sua "sala vermelha" de emergência, três baleados chegaram ao local quase simultaneamente. Sem hesitar em meio ao fogo cruzado, a equipe estabilizou a situação e transferiu ao hospital um jovem de 17 anos com um tiro no peito, um homem de 63 anos com um tiro no abdômen e uma idosa de 82 anos que recebeu um tiro no tórax enquanto dormia.

"No momento, nós estamos exercendo uma medicina de guerra, literalmente, já que além dos baleados, as unidades estão localizadas dentro de zonas de conflito", conta à AFP Luiz Alexandre Essinger, diretor médico da RioSaúde, entidade que faz a gestão da UPA, uma das 14 criadas pela Prefeitura do Rio desde 2009, incluindo em favelas.

José Lucena/Futura Press/Estadão Conteúdo José Lucena/Futura Press/Estadão Conteúdo

Armas mais potentes

Este cirurgião, com mais de 30 anos de experiência em atendimentos de emergência, não pôde evitar comparar o momento atual com a difícil situação vivida pelo Rio de Janeiro nos anos 1990.

Com o fim dos Jogos Olímpicos, os tiroteios aumentaram consideravelmente nos últimos meses no Rio, em meio à falência do estado e a paulatina desintegração do programa das UPP (Unidades de Polícia Pacificadora) nas comunidades, iniciado em 2008.

"A política não é de confronto", afirma o secretário de Segurança do Rio, Roberto Sá, assegurando que os policiais apenas se defendem da agressividade dos traficantes.

Mas o retorno a essa "guerra do asfalto" entre policiais, traficantes e milícias pode ser percebido nos atendimentos a pessoas feridas por tiros nos sete hospitais municipais do Rio: os casos passaram de 720 em 2015 para 1.652 em 2016. Nos três primeiros meses de 2017 esse número já era de 593, segundo a RioSaúde.

Embora os números sejam muito menores do que há 30 anos, a gravidade dos feridos é maior.

Os centros médicos, como a UPA da Cidade de Deus, já quase não recebem baleados por revólver ou pistolas de nove milímetros, mas em sua maioria por fuzis com balas que podem perfurar paredes e têm um alcance de quilômetros.
 

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"Antes chegava um paciente baleado, mas na maioria das vezes vivo. Hoje, muitas vezes, chega morto", resume José Roberto Figueiredo, chefe médico na Cidade de Deus.

Com um aumento preocupante dos mortos por balas perdidas, esta UPA recebe cada vez mais mulheres feridas por tiros. Às vezes, também são criadas situações de grande tensão, com policiais buscando criminosos ou traficantes armados, e que exigem uma atenção rápida aos baleados.

Dá vontade de ir embora para sumir daqui, a gente não está aguentando mais não, tem muita violência"

Rogéria Brites, cozinheira de 57 anos, lamenta na sala de espera

Treinamentos contra o pânico

Diante deste panorama, as equipes médicas de algumas UPAs recebem treinamentos específicos de atenção a baleados com bonecos-robô. Manter o equilíbrio emocional é a parte mais difícil.

Muitos funcionários do ambulatório da Cidade de Deus, a maioria muito jovens, não aguentam a pressão apesar do salário competitivo. Três deixaram a UPA em junho alegando "medo" e a cada vez que abrem vagas as da Cidade de Deus são uma das últimas a serem preenchidas.

Iara Viana, médica de 27 anos, lembra ainda nervosa como no final de 2016 a equipe ficou presa e não conseguiu trocar o turno depois que o Comando Vermelho ordenou o toque de recolher, bloqueou as ruas e ficou trocando tiros com a polícia por horas.

A difícil realidade supera a ficção nesta comunidade conhecida internacionalmente pelo filme "Cidade de Deus" (2002).

"É gratificante, no final de tudo, poder ajudar a população, as pessoas carentes que precisam realmente. Aqui dá a impressão que nós somos mais médicos, médicos de verdade", afirma Iara.

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