O poder do crime

Preso há 21 anos, Marcinho VP diz que cadeia não regenera e que narcotráfico financia campanhas eleitorais

Flávio Costa e Vinícius Andrade Do UOL, em Mossoró (RN)

O detento 37 deixa o pátio onde jogava bola com outros presos, em uma tarde ensolarada de outubro, para ser escoltado por um agente penitenciário. Ele é levado até uma sala dividida ao meio por uma grade de ferro dentro das instalações do presídio de segurança máxima de Mossoró (RN) -- cidade com 295 mil habitantes localizada no semiárido nordestino.

Condenado a um total de 48 anos de reclusão pelos crimes de tráfico de drogas e por ser mandante de dois assassinatos, Márcio dos Santos Nepomuceno, o Marcinho VP, conhece os procedimentos do sistema penitenciário federal: são 21 anos ininterruptos passando por prisões, mais da metade de sua vida. Vira-se para a parede e as algemas são retiradas pelo agente. Senta-se na cadeira à espera das perguntas do UOL, em uma entrevista exclusiva de duas horas.

Ouve-se o barulho da disputa renhida do futebol no pátio. Marcinho VP sorri. O uniforme azul pálido transparece o suor dele. "A gente precisa aproveitar o pouco tempo que tem fora da cela", diz aquele que é apontado pelas autoridades da segurança pública como um dos chefes do Comando Vermelho, a maior facção criminosa do Rio de Janeiro, fundada em 1979. "Isso é folclore", diz.

Marcinho VP gosta de escrever. Afirma ser alvo de "injustiças" e, para se defender, lançará no sábado (21) o livro "Marcinho Verdades e Posições -- Direito Penal do Inimigo". A obra foi redigida em coautoria com o jornalista Renato Homem. O detento conta sua trajetória no mundo do crime, nega as acusações que lhe pesam, relembra companheiros, comenta sobre política e Operação Lava Jato e ataca o ex-governador Sérgio Cabral Filho (PMDB), a quem diz ter prestado favores eleitorais em 1996. "Ele é o cacique-mor da maior organização criminosa do Rio de Janeiro."

A polícia afirma que Marcinho comandou o tráfico no Complexo do Alemão, na zona norte do Rio. Ele nega. 

Marcinho defende a legalização da maconha. "O tráfico de drogas não acaba porque financia campanhas políticas no Brasil", afirma. "O tráfico é nocivo e funesto, mas a corrupção é o crime que mais mata no Brasil."

"Tráfico de drogas financia campanhas"

Fernando Quevedo - 25.ago.1996/Agência O Globo Fernando Quevedo - 25.ago.1996/Agência O Globo

Inimigo do Estado

Uma infância pobre, marcada pela presença constante da violência.

O pai de Marcinho VP foi assassinado aos 26 anos de idade. A mãe passou cinco anos foragida da Justiça, quando ele era criança. Após largar a escola e fazer vários bicos, Márcio dos Santos Nepomuceno começou a praticar delitos no começo da adolescência.

Quando tinha 16 anos, dois amigos de infância --Rômulo e Jabá-- foram mortos pela Polícia Militar, durante uma ação na Vila Norma, bairro de São João do Meriti, cidade localizada na Baixada Fluminense. Para ele, foi um marco que determinou o rumo de sua vida, conta em seu livro

"Isso me levou a abraçar o submundo do crime como profissão. A quadrilha começou a fazer inúmeros assaltos para se armar porque percebia que cada de um de nós poderia ser o próximo a morrer. E todas as vezes que aqueles policiais militares entravam na Vila Norma era um pega para capar retado, tiroteio para todo lado."

Marcinho VP afirma que na primeira vez em que foi preso, também aos 16 anos, subornou policiais para ser liberado. Sua ascensão como criminoso foi rápida.

"Parei no Alemão, na Mangueira, em Vigário Geral, no Jacarezinho. Parei em várias comunidades do Rio de Janeiro. Eu praticava grandes assaltos e comprava armas para os chefes do tráfico das comunidades e eu fiquei com certa fama, ganhei certa ascendência como líder, mas chefe do tráfico eu nunca fui. Trafiquei na Vila Norma quando tinha 17 anos", diz.

Não é o que diz a Polícia Civil do Rio de Janeiro. Quando foi preso em Porto Alegre, em agosto de 1996, pouco antes de completar 21 anos, ele era considerado o chefe do tráfico no Complexo do Alemão. Mais de duas décadas de prisão não mudaram essa realidade, afirmam relatórios de Inteligência da SSP-RJ (Secretaria da Segurança Pública do Rio de Janeiro).

"Hoje o Comando Vermelho tem dono. E ele se chama Marcinho VP", disse, sob sigilo, um policial civil do Estado, atuante há mais de 20 anos. "Nada é feito sem autorização dele."

À época de sua prisão era comum a imprensa confundi-lo com outro Marcinho VP, mais famoso do que ele. Márcio Amaro de Oliveira comandava o tráfico no Morro da Santa Marta, na zona sul do Rio de Janeiro, onde Michael Jackson gravou cenas do clipe da música "They Don't Care About Us". Ele teve sua trajetória retratada pelo jornalista Caco Barcellos no livro "Abusado". Dois meses após o lançamento do livro, em julho de 2003, o Marcinho da Santa Marta foi estrangulado no presídio de Bangu III. Seu corpo foi encontrado dentro de uma lixeira.

Investigações policiais apontaram o Marcinho VP do Complexo do Alemão como um dos possíveis mandantes do assassinato do xará de apelido. "Um absurdo, um descalabro. Eu não tinha motivo algum para querer vê-lo morto. Éramos amigos, companheiros de galeria".

Marcinho VP do Complexo do Alemão teve seu nome envolvido em outra morte de traficante ocorrida dentro de um presídio. Em 11 de setembro de 2002, Marcinho VP e Fernandinho Beira-Mar comandaram uma rebelião no presídio de Bangu 1, que resultou na destruição da unidade de prisão e na morte de quatro rivais, entre eles
Ernaldo Pinto de Medeiros, o "Uê". Beira-Mar já foi condenado por esse crime. Marcinho VP ainda enfrentará um julgamento sobre o caso.

"Me arrumam processo em cima de processo. Consegue-se resolver dois, eles me arrumam mais três. Resolvi um, eles me arrumam mais dois. E nunca para. É uma forma de me perpetuar na cadeia", afirma.

Ao se defender das acusações, ele usa termos jurídicos, cita leis e usa uma expressão recorrente: "direito penal do inimigo".

"O direito penal do inimigo é a antítese do Estado Democrático de Direito. Se a dignidade da pessoa humana é o eixo estrutural do Estado Democrático de Direito, no direito penal do inimigo, nós perdemos todos o status de cidadão e somos tratados como presos de guerra, como inimigos do Estado", afirma.

"Cadeia não regenera ninguém"

As opiniões de Marcinho VP

  • Leonel Brizola

    "Era um político exemplar, sem mancha de corrupção"

    Imagem: Reprodução/TVGlobo
  • Fernandinho Beira-Mar

    "O tamanho do seu coração é proporcional à sua fama"

    Imagem: Arte/UOL
  • Sérgio Cabral Filho

    "O maior charlatão que tive o desprazer de conhecer"

    Imagem: Arte UOL
  • Marcinho VP, o "original"

    "Eu não tinha motivo algum para querer vê-lo morto"

    Imagem: Carlos Eduardo / Folhapress

"Corruptos formam a maior organização criminosa"

Henrique Esteves - 7.ago.2007/Folhapress Henrique Esteves - 7.ago.2007/Folhapress

Guerra de facções

O PCC (Primeiro Comando da Capital) está em guerra com o Comando Vermelho e seus aliados.

Ao ser questionado sobre o assunto Marcinho VP se esquiva. Para ele, não existem facções criminosas e sim "grupos antiopressão". 

A disputa entre os dois principais grupos criminosos do país se intensificou no ano passado. Eles lutam pelo controle dos presídios brasileiros e pelas principais rotas de tráfico. De acordo com o promotor de Justiça de São Paulo Lincoln Gakiya e com investigações da Polícia Federal, o PCC enviou recados aos chefes do Comando Vermelho propondo um acordo que evitasse o confronto. Entre os líderes procurados, estaria o próprio Marcinho VP. A tentativa de acordo não deu certo.

Os massacres nos presídios de Manaus (AM) e o de Alcaçuz (RN), no início do ano, e o aumento dos índices de violência na região da fronteira com o Paraguai são reflexos diretos desse conflito.

"Se está ocorrendo essa guerra, não chegou ao meu conhecimento". Ele nega ser um dos líderes da facção carioca. "Eu não sou líder, eu fui integrante no passado, fui um menino soldado." 

"Nós respeitamos a todos, sem exceção, independente de grupo antiopressão. Somos da paz", afima. "Um de nossos lemas desde o princípio [do Comando Vermelho] é Paz, Justiça e Liberdade. Se essa rivalidade está ocorrendo, não chegou ao meu conhecimento. E é lamentável, os próprios presos se destruindo. Preso oprimindo preso."

Nessa mesma toada, ele afirma desconhecer eventuais planos do PCC para tomar comunidades cariocas, e aproveita para falar do projeto da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora).

"Querendo ou não, o crime exerce um papel social muito grande nas comunidades. A UPP foi apenas uma ocupação policial. Tudo o que crime proporcionava às comunidades, o Estado tinha que ao menos repor. Por exemplo, cesta básica, remédios, médicos, internação das pessoas que ficam doentes. Todo o tipo de ajuda. O crime ocupa o vácuo deixado pelo Estado."

E completa: "O crime não é contrário a que houvesse ocupação social pelo Estado. O que é bom para o povo é bom para nós, nós é povão, nós é favelado. As pessoas da comunidade são meus vizinhos, me viram crescer, eu vi essas mesmas pessoas crescerem. A comunidade não vê a gente como criminoso. A convivência é normal, não existe conivência."

"Bangu é pior lugar onde já estive preso"

Vinícius Andrade/UOL Vinícius Andrade/UOL

Vida na prisão federal

5 de janeiro de 2007. Começo do mandato do então governador Sérgio Cabral Filho (PMDB-RJ). Marcinho VP é transferido para o presídio federal de Catanduvas (PR). Ele passa por todas as unidades federais até chegar à de Mossoró, onde se encontra detido há dois anos e meio. Já são quase 11 anos no sistema penitenciário federal. Das 24 horas do dia, ele passa 22 horas sozinho em sua cela.

"Se a inclusão do preso no sistema penitenciário federal, de acordo com o artigo 10, parágrafo 1ª da Lei 11.671/2008, já é uma excepcionalidade, a renovação por si já é a excepcionalidade da excepcionalidade", afirma Marcinho, usando palavreado de teor jurídico --resultado das leituras no cárcere.

Em 2006, ele foi considerado um dos mandantes de uma série de ataques orquestrados pelo Comando Vermelho às instalações da Polícia Militar, delegacias e outros prédios públicos que resultou na morte de 19 pessoas. O caso teve influência direta em sua transferência.

Marcinho culpa Cabral pela ida para Mossoró. Atualmente preso em decorrência das investigações da Operação Lava Jato, o ex-governador é alvo constante de críticas no livro. "Ele é o maior Judas que já conheci", escreve Marcinho VP, em determinado trecho.

No livro, ele afirma que prestou favores eleitorais ao político, durante o ano de 1996, quando houve a disputa para a Prefeitura do Rio. "Ele esteve no meu camarote, comeu, bebeu, me elogiou. Ajudei ele com uma equipe de cabos eleitorais. Não ganhei um tostão", diz. "Dei uns 50 mil votos a ele lá do Complexo do Alemão", acrescenta.

O advogado Rodrigo Henrique Roca Pires, que defende Cabral, afirmou que a história contada por Márcio dos Santos Nepomuceno é falsa. "A trajetória carcerária dele revela que essa é uma tentativa tosca de enlamear a honra do ex-governador com objetivo de promover esse livro. Cabral foi o governador do Rio de Janeiro que mais enfrentou o tráfico de drogas", diz o advogado. "Não houve nenhum encontro entre os dois".

A última renovação de permanência de Marcinho VP no sistema penitenciário federal vence no próximo dia 29 de novembro. O Depen (Departamento Penitenciário Nacional) já enviou ofício à Vara de Execuções Penais do Rio de Janeiro questionando se haverá novo pedido de permanência. A Secretaria de Segurança Pública do Rio (SSP-RJ) deve pedir, por meio da Justiça fluminense, que ele permaneça em Mossoró. Investigações da polícia do Estado dão conta de que ele continua a comandar esquemas de tráfico, mesmo trancafiado em uma cela federal.

Por sua vez, a defesa de Marcinho VP tenta obter na Justiça uma decisão de retorno do chefe do Comando Vermelho ao seu Estado natal - o que pode resultar em ele sendo colega de presídio do próprio Sérgio Cabral. "Resta claro que o objetivo de isolamento de supostas forças da criminalidade não auxiliou no índice de melhoria da qualidade de vida carioca", afirma a advogada Paloma Gurgel, defensora de Marcinho. "Essa permanência infinita em um presídio federal é uma forma de tortura cruel."

Após duas horas, a entrevista está para terminar. Marcinho VP repete que não é chefe do Comando Vermelho. "Este estigma que me atribuíram não era verdade no passado, não é verdade hoje". Por fim, profere uma frase comum a todo homem preso: afirma querer a liberdade para reconstruir sua vida. Ele se despede, e, escoltado por um agente penitenciário, volta para sua cela onde lerá documentos dos vários processos em que é réu e, provavelmente, outro livro de direito.

"Sérgio Cabral é o maior criminoso do Rio"

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