De barraco a minicidade

Voluntários brasileiros constroem vila para abrigar vítimas de fome e sede em Madagascar, na África

Talita Marchao Do UOL, em São Paulo
Divulgação

Quando o grupo liderado pelo comerciante Wagner Moura, 44, chegou a Ambovombe, no sul da ilha de Madagascar, a primeira impressão foi de espanto. A miséria era tão extrema que dezenas de famílias não tinham o que comer, estavam sem tomar banho havia meses, sem qualquer condição básica de higiene, e viviam em barracas improvisadas. Seria exagero chamar aquele amontoado de tábuas de casa.

As pessoas se alimentavam dos frutos dos cactos e de farinha de mandioca, que era desidratada nos telhados e misturada com água que qualquer médico desaconselharia a tomar. Mas, na região, a água é um item de luxo, comercializada por valores altíssimos. Quando os moradores conseguem comprar o caro líquido, a utilizam para cozinhar. Os banhos ocorrem apenas quando chove. Sem sabonete ou xampu.

O saneamento básico inexistente prolifera doenças que agravam os quadros de desnutrição. A diarreia chega a matar.

As crianças andam descalças. Não há dinheiro para sapatos. Em consequência disso, sofrem com feridas e bicheiras nos pés. Algumas até tiveram pequenas amputações.

Diante desse triste cenário, um grupo de voluntários brasileiros decidiu fazer algo em Madagascar. O resultado foi a construção de uma minicidade de cem casas, com capacidade para receber 500 pessoas em situação de vulnerabilidade entre as milhares que passam fome e sede na região.

'Casas pareciam galinheiros'

Wagner Moura, fundador da ONG Fraternidade sem Fronteiras, decidiu conhecer Ambovombe em 2017, quando soube que as pessoas comiam frutos de cactos para sobreviver em meio à seca que atingia a região. Ele só não imaginava que encontraria uma população em um ambiente tão degradante. "Era uma situação tão precária que as pessoas nem tomavam banho", conta o comerciante de Campo Grande (MS).

A primeira da caravana de voluntários foi preparada para alimentar as crianças, mas acabou fazendo algo ainda mais emergencial: compraram um caminhão-pipa e fizeram um banho coletivo nos pequenos. "Tinha criança vestindo sacolinha plástica de supermercado, alguns deles não tomavam banho havia mais de quatro meses", relata a médica Janaíne Camargo, que estava em Madagascar, a caminho de Ambovombe, quando falou com a reportagem do UOL --ela vai morar na cidade até o próximo ano como parte da equipe de apoio de saúde às famílias.

"Foi uma situação muito grave do ponto de vista humano", conta Janaíne. "Era uma pobreza que eu nunca tinha visto em outras partes do mundo", relata Moura.

Fraternidade Sem Fronteiras Fraternidade Sem Fronteiras

Foi criado, então, o Campo da Paz, onde 2.500 pessoas vão diariamente para receber uma refeição na hora do almoço, tomar banho, escovar os dentes e cortar as unhas. O local também oferece água e sabonete, tanto para banho como para lavagem de roupas.

Mesmo mais bem cuidadas, as pessoas viviam em barracos precários e improvisados, feitos de palha, folhas secas e restos de madeira. No voo de volta de Madagascar para o Brasil foi rascunhada em papel a proposta de criar uma vila, como uma pequena cidade, de moradias simples.

Eles viviam em casas que pareciam tocas, galinheiros, com famílias enormes, de 12 pessoas. Se é que podemos chamar aquilo de casa

Priscila Alexandre, arquiteta

"No Campo da Paz, a gente viu que as famílias eram muito necessitadas. As crianças tinham bicho de pé, bicho de mão e sarna, porque nos barracos não há saneamento. Eles fazem as necessidades em qualquer lugar, então é uma situação horrível", conta Moura. "Aí surgiu a ideia de montar uma cidade e levar as famílias extremamente vulneráveis para ter uma vida mais digna."

"Eles precisavam de um lar em que pudessem entrar por uma porta. Era uma questão muito forte, que bate na dignidade de ter um lar. O hábito deles não é de ficar dentro de casa. Eles ficam mais do lado de fora [durante o dia] e usam a casa para dormir", explica a arquiteta Priscila Alexandre, 32. Ela trabalhou no projeto das casas e volta para Madagascar em setembro.

Outra questão era a falta de água. Apesar de haver poços artesianos, é raro achar água que não seja salobra. Os poucos poços de água doce são abastecidos pelas chuvas, ou seja, não é água totalmente potável.

Muitas pessoas acumulam água da chuva em galões de 200 litros e saem vendendo pelas vilas em carroças. "Quando esses moradores conseguem comprar, é essa água da chuva. E ela é usada para beber ou cozinhar, nunca para tomar banho. Banho ali é só mesmo quando chove", diz Wagner.

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A médica da família Janaíne Camargo (foto) trabalhava em São Paulo com atendimentos públicos e na formação de profissionais da área quando decidiu conhecer o trabalho da ONG em Madagascar. Esteve pela primeira vez em missão no país em fevereiro e quis voltar: embarcou novamente para Ambovombe no início de agosto e fica durante o ano de 2019.

Morando em uma casa em condições semelhantes às dos malgaxes: uma casa simples e sem eletricidade. Quando fala com a família, usa o sinal de internet da sede da ONG, onde são feitos os atendimentos médicos.

Ter um médico especializado em saúde da família é importante para lidar com o impacto da falta de condições básicas de higiene e de estrutura das moradias.

"A gente atendeu uma família com quatro crianças com sintomas de doenças respiratórias, queixas típicas de alergia. A mãe tinha um quadro clínico de uma doença mais grave de pulmão, a DPOC, que é uma enfisema. Logo pensei: como a mãe tem uma doença tão grave e os quatro filhos têm sintomas? Aí fomos entender o contexto: eles moravam em uma cozinha com chão de areia, onde tinha um fogão de carvão. Ou seja: respiravam pó e fumaça o tempo todo", conta Janaíne. Esta família é uma das que receberam uma nova casa na Cidade da Fraternidade.

Mas o principal problema em Ambovombe é a fome. O primeiro levantamento dos voluntários mostrou que metade das crianças tinha desnutrição grave ou moderada. Mas praticamente todas possuíam algum grau de má alimentação.

A maioria das crianças tem uma coisa que a gente chama de nanismo nutricional. Elas já têm comprometimento do crescimento, não só do peso, e são mais baixinhas do que o esperado por conta da desnutrição crônica. Isso é um dado muito grave, porque mostra que elas já foram afetadas de um jeito irreversível. Quando afeta só o peso, é recuperável

Janaíne Camargo, médica

Fraternidade sem Fronteiras

O pouco repartido

A médica conta que um grupo de 30 crianças avaliadas pela ONG tinha comprometimento neurológico e corria risco de morte. "Uma criança de dois anos de idade, que deveria levantar, correr e comer sozinha, chegava com o desenvolvimento de um bebê que não sustenta a própria cabeça, o que seria equivalente ao de um bebê de três meses, sem conseguir sentar", afirma Janaíne. "Algumas até sabiam sentar, mas não tinham forças, por conta da desnutrição", relata.

Para tentar combater o problema, as famílias recebem uma refeição por dia, formada por um carboidrato, geralmente arroz ou macarrão, feijão ou ervilha, para ter algum grão, e leite ou ovos, para trazer alguma proteína. O leite pode ser acrescentado no preparo da comida ou servido separadamente. As crianças com casos mais graves de desnutrição ainda recebem por cerca de 20 dias um reforço, preparado com leite diluído em água, açúcar, óleo e vitaminas.

A médica fala que é difícil saber se as mães dão a fórmula especial para a criança mais doente ou se repartem entre todos os filhos. "E não há que se julgar como certo ou errado quando uma mãe divide o alimento entre seus filhos com fome", diz. Por isso as profissionais do Campo da Paz explicam às mães que o preparado especial é um remédio ou dão um pouco a mais da fórmula quando percebem existe a divisão entre os integrantes da família.

Outra novidade foi a explicação de como usar uma escova de dente, que ninguém ali tinha. Também ganharam calçados para evitar as doenças de pés. "Como todos andam descalços, fazem feridas e infeccionam", relata a médica.

Para conseguir roupas e sapatos para todo mundo, eles têm de se virar na logística. Segundo Janaíne, as últimas doações chegaram a Ambovombe nas malas dos próprios voluntários. "Despachar por contêiner é muito caro, de avião também. Então, se cada voluntário tem direito a duas malas com 32 kg, pelo menos uma delas vai reservada para as doações."

Tudo é bancado com o que a ONG consegue arrecadar, até medicamentos, já que o governo da ilha não tem essa distribuição no sistema público de saúde. "O dinheiro vem por apadrinhamento, ou seja, a pessoa escolhe doar para um determinado projeto ou até mesmo ação dentro de um projeto. Por exemplo, doaram para que as casas fossem construídas, doam para a compra específica de remédios, de alimentos", diz a médica.

Unicef, IBGE, ONU e Banco Mundial

Diário de uma médica na África

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'O 1º pré-natal veio na 5ª gravidez'

"Em sua quinta gestação, Tendrasoa vem para a primeira consulta de pré-natal de sua vida. Ela não sabia bem o que esperar de nosso encontro. Confesso que eu tampouco. Conversamos, examinamos e chegamos ao momento que lhe parecia impossível: ela não acreditava que eu teria um aparelho capaz de ouvir o som de seu bebê! Sem palavras, o olhar ressabiado se abriu em sincero sorriso! De pronto reconheceu as batidas de coração em sua barriga! Saiu da sala com vitaminas para romper com o ciclo de desnutrição. Ela se despediu dizendo na sua língua: 'Muito prazer em conhecê-la'"

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'Após uma diarreia de 6 dias, ele sobreviveu'

"Faringtatsoa chegou já prostrado, desidratado, cianótico e com quadro de sepse de foco abdominal. O bebê de sete meses dava sinais de que já não mais resistia aos episódios de diarreia e vômito que perduravam por seis longos dias e noites mal dormidas de sua mãe. Anoitecia e eu me deparava com o limite de meus conhecimentos. Minhas mãos trêmulas tocaram o pequenino músculo adutor da coxa e sentiram o líquido que lhe penetrava. Mãe cabisbaixa, bebê chorando e médica sorrindo. Tudo havia corrido bem. Eu havia feito o que estava ao meu alcance. Mas e o bebê? O que conseguiria fazer?"

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'Um estudante que agora enxerga'

"Chega um jovenzinho de oito anos e, articulado, fala comigo em francês: 'Je suis étudiant' [sou estudante]! Tojo conta da dificuldade por não enxergar o quadro. Ele se esforça, mas tem dores de cabeça. É o único que ia à escola em toda aquela semana de trabalho. Tinha que fazer algo. Um teste de Snellen modificado diagnosticou a miopia. Aflita, digo que ele precisa de óculos, mas não podemos oferecer. Falamos com um padre e conseguimos mais um parceiro. Uma semana depois, Tojo retorna. Queixa principal: mãozinha que segura um pacote, um sorriso que não pode ser contido e um abraço apertado"

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E quando um deles não aparece para brincar?

"Gosto dos dias em que consigo sair da clínica antes do anoitecer. Como a região não tem energia elétrica, os últimos raios de sol nos permitem brincar um pouco com as crianças! Posso dizer que tenho alguns amigos aqui, e alguns são pequeninos!

Eles acordam cedo para me procurar em casa, me espiam pela janela no trabalho ao longo do dia e não deixam de realizar suas pequenas invasões à clínica para me tirarem de lá quando veem que não temos mais pacientes.

Mas um dia faltou alguém na turminha: Manovorae não podia brincar. No dia anterior, foi trazido às pressas com abdome distendido. A criança de 4 anos vomitava sem parar, a desidratação já se instalara, e o pequeno não reagia. Seu intestino estava obstruído. O diagnóstico era abdome agudo por bolo de ascáris. Ele foi levado ao hospital local para uma cirurgia de urgência --esses procedimentos em Madagascar custam, em média, de R$ 300 a R$ 500."

Fraternidade Sem Fronteiras

Improviso e banheiro coletivo

A construção da minicidade não foi uma empreitada fácil. Era preciso construir as casas com o material disponível na ilha, aproveitar a mão de obra local e evitar os altos custos de importações.

Cada moradia custou R$ 3.000 e outros R$ 1.200 para a mobília. Todos participaram, tanto voluntários quanto pessoas contratadas para a missão --moradores e não frequentadores do Campo da Paz receberam salário pelo trabalho.

O terreno foi doado por um empresário brasileiro que quis permanecer anônimo. Cem casas foram erguidas e uma equipe treinada pela ONG fez a seleção de quem seriam os sortudos ganhadores entre as famílias mais necessitadas.

A arquiteta Priscila conta que a Cidade da Fraternidade foi projetada e adaptada levando em conta os costumes locais e o valor do material. As casas são feitas de madeira e telha metálica, têm cerca 6 m x 6 m de área, com dois cômodos e uma varanda.

"São basicamente dois quartos e uma varanda porque eles ficam o tempo todo do lado de fora de casa. O lado de dentro é só para dormir. O fogão a lenha fica na varanda", explica a arquiteta. As casas são mobiliadas com beliches e camas de casal dependendo do tamanho das famílias. Cada casa é de uma cor, o que deixa a vila toda colorida.

Talvez o melhor recurso não fosse a madeira e a telha metálica, principalmente por causa do calor. Mas era o que tinha disponível e o material com o qual eles sabiam trabalhar
Priscila Alexandre, arquiteta

Fraternidade Sem Fronteiras Fraternidade Sem Fronteiras

A arquiteta conta que, como o clima de Madagascar é similar ao do sertão, com dias muito quentes e noites muito frias, a telha metálica não é um grande problema. "Eles também podem adaptar, por exemplo, uma cobertura de palha sobre as telhas para aliviar o calor dentro das casas durante o dia", diz.

"A construção de uma casinha como essa no Brasil, por exemplo, seria inviável. Mas nosso costume é ficar o dia todo dentro de casa e seria quente demais permanecer ali."

Nenhuma das casas possui banheiro ou lavanderia. Foram construídos dois blocos, cada um deles com dez duchas, dez sanitários e uma lavanderia coletiva --para as 500 pessoas. "Não dá para todo mundo tomar banho todo dia, mas um banho por semana, por exemplo, já faz muita diferença para quem não tomava banho por quatro meses."

O grande problema do saneamento é que a minicidade toda é abastecida por um único poço artesiano. "A gente sabe que ali não tem muita água. Não sabemos qual é a vazão, então não temos ideia por quanto tempo a água vai durar", explica.

Uma das alternativas é adotar o próprio sistema já usado pelos locais: acumular a água da chuva, mas com cisternas adequadas e planejadas para isso. Outra opção é a adoção de banheiros secos, mas o projeto ainda está em estudo.

"Um banheiro seco é algo bem simples, mas, se não for manejado de forma correta, pode contaminar o solo e a água subterrânea e causar mais doenças", diz. Os banheiros e chuveiros atualmente funcionam com fossas.

"A gente tinha um caso emergencial em Ambovombe. As pessoas que vivem lá sabem construir casas desse jeito, era o que já existia na ilha. Temos que olhar não só para o sustentável, para a natureza, mas também para o social", reflete a arquiteta.

A ideia dos voluntários da ONG é ampliar a cidade e criar um espaço de cultivo, para que eles possam plantar e colher alimentos --e até vender o excedente, quem sabe? A ideia é plantar, em sequência, árvores, hortaliças e frutas para cultivar sem ter a necessidade de muita irrigação e, ao mesmo tempo, oxigenar o solo. A água permanece sendo o principal desafio.

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