"Nunca pensei em ser feliz"

Em relato ao UOL, mulher que fugiu duas vezes da Coreia do Norte lembra vida de tortura e sofrimento

Talita Marchao Do UOL, em São Paulo
Reprodução/Twitter @JihyunPark7

Jihyun Park hoje tem uma vida confortável com a sua família no Reino Unido. Mas sua trajetória até Manchester, onde vive, foi marcada por muito sofrimento: ela enfrentou a grande fome da Coreia do Norte, na década de 90 até fugir --pela primeira vez-- do país. Na China, foi vítima do tráfico humano e acabou transformando-se em uma esposa ilegal. Foi obrigada a abandonar o filho pequeno ao ser presa e deportada.

De volta a Coreia do Norte, foi mandada a um dos campos de trabalhos forçados. Conheceu seu marido em sua segunda fuga, depois de resgatar o filho na China. Sua história parece até roteiro de filme, mas as marcas físicas e psicológicas provam o sofrimento desta norte-coreana.

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"A fome lentamente torturava todo mundo"

Jihyun Park e sua família viviam na cidade de Chongjin, na região nordeste da Coreia do Norte, durante a Grande Fome, que matou mais de um milhão de pessoas. "Lá, éramos isolados do resto do mundo e passávamos por uma lavagem cerebral desde o nascimento para obedecer ao Estado. Eu ia para a escola acreditando que a Coreia do Norte era o melhor país do planeta Terra".

Na universidade, estudava para ser professora. Mas, em 1990, deparou-se com a miséria. A comida passou a ser cada vez mais escassa, até que desapareceu quase que completamente.

"Grama, raízes e cascas viravam alimento para pessoas que estavam desesperadas para se manter vivas. Éramos obrigados a buscar na floresta qualquer coisa que desse para comer. Lembro-me de desenterrar as raízes das árvores com as minhas mãos para ferver e comer. [...] Era e ainda é doloroso pensar nos parentes e conhecidos que morreram de fome".

Em 1996, Jihyun viu o seu primeiro parente morrer de fome: seu tio. "Uma pequena lágrima escorreu pelo rosto do meu tio, e alguns momentos depois ele estava morto. Pareceu que ele não sentiu dor. Meu pai fechou os olhos dele. Olhava para o corpo dele e não parecia humano: ele parecia um animal, sua pele estava escura e dura. Os braços e pernas pareciam bastões. A fome lentamente torturava todo mundo".

Ela largou os estudos para ajudar a família a sobreviver quando o pai adoeceu. Mas quando o irmão fugiu do Exército norte-coreano, as coisas pioraram. "Meu pai, em segredo, mandou que meu irmão e eu fugíssemos para qualquer lugar. Obedeci o desejo do meu pai e o deixei deitado, doente, no chão frio, para iniciar uma jornada que nunca mais me trouxe para casa".

Em 1998, Jihyun e o irmão atravessaram o rio Tumen, na fronteira com a China.

"Nunca mais vi meu pai e nunca saberei se ele teve um funeral apropriado".

Mas após atravessar a fronteira, os irmãos norte-coreanos foram enganados pelo homem que contrataram para fugir. Ele passou a exigir mais dinheiro para soltar o irmão de Jihyun, e prometeu a ela um emprego. Jihyun acabou sendo vendida para um homem chinês por cerca de R$ 2.500 (5.000 yuans, na cotação de hoje). Jihyun nunca mais viu o irmão.

"Chineses veem as norte-coreanas como escravas ou brinquedos"

Na China, os norte-coreanos não são vistos como refugiados, mas como imigrantes ilegais. E as mulheres norte-coreanas compradas pelos chineses por meio do tráfico humano são vistas como um produto, correndo o risco de serem revendidas.

"Da hora em que acordam, antes mesmo do café da manhã, até a hora de dormir, estas mulheres trabalham nos campos. No inverno, para que não fujam, elas não recebem nem sapatos apropriados para as baixas temperaturas. Quando uma norte-coreana engravida, como aconteceu comigo, o líder local aconselha o aborto. E elas não têm permissão para dar a luz em um hospital".

Jihyun sabia que outras cinco norte-coreanas viviam na mesma situação que ela na aldeia, mas nenhuma delas tinha permissão de seus donos para conversar. "Uma destas mulheres foi comprada por dois homens que juntaram dinheiro. Ela era mantida em um cômodo e nunca tinha permissão para sair".

"Os chineses veem as norte-coreanas como suas escravas e seus brinquedos. Eles nunca se referem a elas como suas famílias. Elas não tem permissão para comer na mesa de jantar e são privadas de necessidades básicas".

O marido chinês de Jihyun --seu proprietário-- era viciado em jogo e nunca trabalhava. Quem buscava o sustento da família era a norte-coreana. "Nós não tínhamos nem mesmo uma casa. Um dia, um homem nos ofereceu uma cabana de pouco menos de 2 metros quadrados, incluindo quarto e cozinha. Era uma casa de madeira fria. Eu tive que cavar o chão para encontrar um pedaço de madeira podre para usar como combustível para fazer fogo".

Em 1999, Jihyun manteve sua gravidez em segredo até onde foi possível e conseguiu convencer o seu dono a não vender o menino. Passou então a criar o seu filho, uma criança sem nome e sem pátria, já que não tinha status legal na China, pois o governo não reconhece a cidadania de um filho de uma norte-coreana. Na Coreia do Norte, o bebê seria morto por ser filho de um estrangeiro.

Em abril de 2004, a polícia invadiu a casa em que a norte-coreana vivia. Ela foi presa, separada de seu filho e mandada para a prisão, onde ficou por três semanas. De lá, foi transferida para uma prisão chinesa para norte-coreanos, onde relatou ter sido revistada nua, agredida e humilhada por mais uma semana, até ser deportada para a Coreia do Norte

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"Eu vivia como se fosse menos do que um animal"

Na prisão norte-coreana, as guardas tomaram tudo o que poderia ter algum valor --sabão, pasta de dente, toalhas. "Dormir era ainda pior. Não tinha espaço suficiente. Se alguém quisesse usar o banheiro, precisava pedir permissão ao guarda, e ele sempre ignorava".

"Um dia, eu estava desesperada para usar o banheiro. Pedi multas vezes, e ninguém respondeu. Não aguentei e corri para o banheiro. Como punição, eles me forçaram a limpar o banheiro com as minhas mãos, sem usar água. Não era um banheiro comum, com água corrente. É impossível de descrever como aquele lugar era sujo".

Segundo Jihyun, durante o período menstrual, as mulheres improvisavam toalhas cortadas como forma de improvisar um absorvente. Mas não tinha água para lavá-las. "Um dia, os guardas me pegaram lavando a minha toalha e me puniram. Todas as manhãs eu era obrigada a colocar o pano sujo de sangue na cabeça e dizer ‘sinto muito’".

Depois de 13 dias de jejum, ela foi transferida para o campo de trabalhos forçados em Onsung, o "gulag da morte".

O local era próximo de onde Jihyun cresceu e passava nos arredores sem se dar conta de que era uma prisão de trabalhos forçados. Lá, ela dormia em um salão com mais de 100 pessoas, e os guardas deixavam dois baldes como banheiro. Ela foi mandada para a fazenda. O trabalho começava às 4h30 da manhã e só terminava às 23h30, com três pausas de menos de meia hora para refeições. As idas ao banheiro eram controladas, e os guardas agrediam qualquer um que demorasse demais.

"Eu não conseguia nem mesmo pensar no meu filho. Só pensava em sobreviver. Eu tinha que viver como se fosse menos do que um animal e só sobrevivia. As pessoas morriam, uma a uma."

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No campo, todos trabalhavam descalços. "Era o puro inferno. O solo era cheio de pedras e vidro. Se você se cortasse, teria que trabalhar sangrando. Um dia, acordei sem conseguir mexer uma das pernas, e o meu pé estava muito inchado. Eu não tinha condições de trabalhar, e os guardas me bateram, dizendo que eu não queria ir para o campo". Naquele dia, Jihyun conta que precisou se arrastar pelo milharal em que estava trabalhando.

Quando a perna de Jihyun começou a gangrenar, os guardas a mandaram para o médico, que sugeriu a amputação. Para evitar uma morte no campo de trabalho, ela foi libertada sob a supervisão de um tio, que assinou a sua soltura e a abandonou, afirmando que nunca mais queria vê-la.

Com a perna completamente deteriorada, ela precisou mendigar e passou a viver em um orfanato, onde contava com a ajuda das crianças para caminhar. Até que um homem, especializado em ervas medicinais, decidiu ajudá-la. "Rezo por este homem sempre. Seja lá onde ele estiver, rezo para que ele seja feliz e saudável".

Ferida e preocupada com o filho que foi obrigada a deixar na China, decidiu fugir outra vez --agora, para buscá-lo e viver na Coreia do Sul.

Em março de 2005, Jihyun não teve problemas para retirar a criança do pai -- Yong Joon era um filho ilegítimo, sem qualquer direito e negligenciado.

"A partir dai, nossa jornada era muito perigosa. Decidi que fugiríamos pela Mongólia, e lá buscaríamos ajuda na embaixada sul-coreana. Mas, para atravessar da China para a Mongólia, era preciso subir uma cerca de mais de dois metros de altura. Todos conseguiram passar, mas meu filho e eu ficamos para trás, em território chinês."

Até que, segundo Jihyun, um homem voltou para ajudá-la. O norte-coreano conseguiu abrir um buraco na cerca e mãe e filho puderam passar --e foi assim que Jihyun conheceu seu marido.

Na Mongólia, eles caminharam por três dias no deserto sem encontrar qualquer pessoa. "Nós não tínhamos comida ou água, e meu filho tinha sede. Ele tinha só cinco anos, com fome e frio. Então não dava para passar mais dias na Mongólia desse jeito. Acabamos voltando para a China".

Eles se casaram em Pequim, onde viviam escondidos. Com o apoio de uma ONG, conseguiram contato com um oficial da ONU e receberam o asilo do governo britânico.

"Felicidade vem das pequenas coisas"

"Eu abria os olhos de manhã e via a minha família. Se não tivesse virado uma refugiada, eu nunca teria sentido felicidade".

Mas a vida no Reino Unido, a partir de 2008, não foi fácil desde o começo. Viver em um mundo em que a cultura a língua eram completamente diferentes do que a família estava costumada foi difícil, segundo Jihyun. Para aprender a falar inglês, ela participou de programas universitários e cursos em centros de línguas.

Ela tinha medo de ser tratada no Reino Unido como os norte-coreanos são tratados na China, onde a família viva ilegalmente. "Quando o governo me deu o meu visto de refúgio e a minha identificação, chorei muito. Não tinha palavras para descrever o que sentia".

"Quando cheguei ao Reino Unido, algumas pessoas viam meu status de refugiada de forma positiva. Outras olhavam o meu cartão de identificação com curiosidade. Talvez não tivessem sentimentos positivos em relação aos refugiados, ou nunca tenham encontrado um refugiado norte-coreano antes, não sei. Mas a curiosidade me pareceu positiva".

Jihyun tentou trabalhar em um restaurante coreano, mas acabou sentindo preconceito de outros coreanos. Mandou currículos, mas não conseguia emprego por não falar inglês direito.

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Ela hoje trabalha na ONG Aliança Europeia para os Direitos Humanos na Coreia do Norte (EAHRNK, na sigla em inglês) e tem mais dois filhos. Jihyun tenta ajudar outros refugiados norte-coreanos, mas enfrenta dificuldades para financiar as atividades, como aulas de inglês. Ela agora tenta abrir um centro comunitário norte-coreano onde vive.

"Antes de me tornar uma refugiada, nunca pensei em ser feliz. Então tive medo da minha felicidade. No entanto, percebi que a felicidade vem das coisas pequenas que estão a nosso redor".

Perguntada sobre em quais circunstâncias voltaria para a Coreia do Norte, Jihyun diz que se existir uma unificação, ela gostaria de ver o local em que seu pai está enterrado e procurar por seu irmão, que ela não vê desde a primeira fuga para a China.

"Toda ação que te leva para a liberdade vem com enormes riscos e dores. O progresso leva tempo, e não há garantia de sucesso. No entanto, é mais provável que você seja bem-sucedido se explorar a fraqueza de uma ditadura do que enfrentá-la cara a cara. A estratégia mais importante é divulgar conhecimento e informação de fora para os cidadãos norte-coreanos", diz.

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