À sombra do capitalismo

Em RR, venezuelanos montam mercado paralelo de envio de dinheiro para casa e cobram até 50% dos compatriotas

Gustavo Basso Colaboração para o UOL, em Boa Vista
Gustavo Basso / Colaboração para o UOL

Uma pequena mesa de bar ou um caixote de madeira, um celular com conexão à internet, carregador, um caderninho e um contato de confiança na Venezuela com conta bancária lá.

Com essas ferramentas, nasce um mercado paralelo em Boa Vista, dominado pelos venezuelanos, tendo como público-alvo os próprios venezuelanos: são os intermediadores das transferências financeiras para o país, que cobram até 50% do valor que os compatriotas tentam enviar para os familiares que ficaram no país em crise.

Gustavo Basso / Colaboração para o UOL

Mercado paralelo

A reportagem acompanhou Gabriela (o nome foi alterado a pedido dela) em Boa Vista em uma operação para transferir R$ 10 à conta da irmã, que ficou na Venezuela. Há dois meses, ela trocou El Tigre, a 800 quilômetros da fronteira com o Brasil, por Roraima.

O esquema para a remessa, apesar de clandestino, é fácil de identificar no entorno da rodoviária de Boa Vista, onde muitos venezuelanos moram e trabalham como ambulantes.

As ruas próximas ao terminal se transformaram em uma feira venezuelana: é possível comprar produtos do país vizinho, cigarros, 'harina  pan' (utilizada para o preparo de 'arepas', comida básica no cardápio venezuelano) e até telefonar para a casa. Quem tem um celular aluga o telefone, por minuto, para quem precisa ligar para casa. E é ao redor desses serviços de "llamadas" que se organiza o mercado paralelo de transferências bancárias.

Reprodução Reprodução

Ao ser atendida, Gabriela é informada de que os R$ 10 que tinha renderiam 180 bolívares soberanos -- a nova moeda da Venezuela desde o fim de agosto. 

A intermediária aciona um contato na Venezuela via Whatsapp. Lá, com o número da conta da beneficiada, a 'correspondente' faz a transferência e envia um comprovante de volta.

Dessa forma, a pessoa tem duas certezas: uma, a de que o dinheiro foi depositado; a outra, que quase metade do que havia economizado ficou nas mãos dos intermediadores.

Dias antes de a reportagem acompanhar a operação, R$ 10 compravam 340 bolívares soberanos na fronteira de Pacaraima, no Brasil, com Santa Elena de Uairén, na Venezuela. Isso significa que, dos R$ 10 que Gabriela enviou, apenas R$ 4,70 chegaram à sua família.

Gustavo Basso / Colaboração para o UOL Gustavo Basso / Colaboração para o UOL

"O pior é eles são todos venezuelanos", reclama Larri Marval, recém-chegado a Boa Vista - ele foi um dos migrantes expulsos de Pacaraima em agosto, após confronto com os brasileiros.

Antes de embarcar para a capital de Roraima, ele transferiu R$ 50 ao filho que ficou em Caracas. À reportagem, reclamou das taxas cobradas, enquanto procurava um lugar para dormir.

Só interessa para eles (intermediadores) a 'grana', não importa se a pessoa está vivendo na rua, só tiram proveito da situação. É o que dizem: com a crise que se faz dinheiro

Um desses banqueiros informais atende em uma pequena banca na avenida das Guianas, a poucos metros da rodoviária e dos principais abrigos da Acnur (a agência da ONU para refugiados). Ele pede para não ter o nome divulgado e diz que faz cerca de 40 transações do tipo, com valores que vão de R$ 20 a R$ 100.

"Depois, vou a Santa Elena (do outro lado da fronteira), troco os reais por soberanos e alimento a conta bancária que tenho com minha esposa, que ficou na Venezuela. E assim vou ajudando minha família".

Outro intermediário conta que, com o lucro das transações, viaja 130 quilômetros até Lethem, na Guiana, para comprar eletrônicos mais baratos e revender no Brasil

Gustavo Basso / Colaboração para o UOL Gustavo Basso / Colaboração para o UOL
Reprodução Reprodução

Venezuela proibiu envios do exterior

O sistema de transferência informal se assemelha àqueles existentes em partes do mundo onde as transações eletrônicas são restritas. Desde 27 de agosto, por correntes de Whatsapp, os venezuelanos de Boa Vista souberam que o governo Maduro ordenou o bloqueio de contas acessadas de fora do país, se a pessoa não tiver informado por quanto tempo estará viajando.

Outra alternativa, o envio de dinheiro por meio de casas de câmbio ou agentes financeiros, não funciona na Venezuela: a Western Union, uma das grandes operadoras do segmento, é proibida no país vizinho, já que tem origem norte-americana.

Além da dificuldade para enviar, o dinheiro lá não compra nada. Melhor comprar comida e mandar para minha esposa e 3 filhos que ficaram em Maturín.

Octavio Guerra, Venezuelano que mora em Pacaraima

Gustavo Basso / Colaboração para o UOL Gustavo Basso / Colaboração para o UOL

Na fronteira

O custo da transferência do dinheiro, entre outras dificuldades na capital inflada de venezuelanos, leva muitos a saírem de Boa Vista e voltarem para perto da fronteira. Manaus surge como opção para procurar emprego.

Edi Garcia, engenheiro elétrico, se mostrava animado com a passagem de ônibus que, depois de três meses fazendo pequenos bicos, conseguiu comprar.

"Como é Manaus? Tem mais indústrias? Escutei falar da Zona Franca, tomara que lá tenhamos algo melhor do que em Boa Vista", perguntava.

Antes do drama para mandar dinheiro para casa, vem a dificuldade de ganhar o suficiente para economizar. Os venezuelanos relatam que muitos brasileiros querem contratá-los para serviços simples e oferecem R$ 30 pela diária - mas há relatos também de pagamento de R$ 15 e R$ 10.

"Um senhor me ofereceu isso para capinar um terreno durante todo o dia, trabalho que um brasileiro faria por R$ 80. Não aceitei, seria exploração", diz Frank Rico, que deixou Maracay, na Venezuela, para morar ao lado da Cadeia Pública, num terreno baldio em Boa Vista. É um dos poucos espaços com água corrente, que muitos imigrantes usam para tomar banho e lavar roupas.

"Ainda assim, vale a pena", diz.

Os relatos de cobrança de taxas para envio de dinheiro ou oferecimento de trabalhos a valores baixos mostram que, em meio a uma das maiores crises humanitárias do continente, não falta gente, brasileira ou venezuelana, disposta a lucrar.

Curtiu? Compartilhe.

Topo