O modelo da abstinência

Sob críticas, União quer ampliar vagas em comunidades que tratam usuários de drogas com reclusão e religião

Janaina Garcia e Luis Kawaguti Do UOL, em São Paulo
Márcia Ribeiro/ Folhapress

O Governo Federal deve aumentar em mais de 150%, a partir do ano que vem, o repasse de verba a comunidades terapêuticas que prestam atendimento a dependentes químicos. Essas entidades, de natureza privada, baseiam seus tratamentos em abstinência das drogas e práticas espirituais.

O valor passará dos atuais R$ 48 milhões destinados pela União a esse tipo de tratamento para mais de R$ 120 milhões, e abrangerá também um aumento das atuais 4.000 para 16 mil vagas disponíveis. Os números foram confirmados pelo ministro da Justiça, Torquato Jardim, ao blogueiro do UOL Josias de Souza. Segundo o Ministério da Justiça, das mais de 2.000 comunidades que existem hoje no país, 317 recebem recursos federais.

Além de receberem mais vagas e investimentos, as comunidades passarão a integrar a RAPS (Rede de Atenção Psicossocial), conforme resolução anunciada pelo Ministério da Saúde na quinta-feira (14). A rede é formada hoje por unidades como os Caps (Centros de Atenção Psicossocial), que têm modelo totalmente oposto ao das comunidades no tratamento de dependência química. A mudança integra um conjunto de novidades na Política Nacional de Saúde Mental apresentadas na Comissão Intergestores Tripartite (CIT).

As comunidades terapêuticas são residências coletivas temporárias onde usuários de drogas ficam entre quatro e seis meses isolados de relações sociais pré-existentes (exceto em relação à família) e em abstinência do uso de drogas (leia mais abaixo).

No entanto, o método das comunidades, que pregam a abstinência e a reclusão quase total em relação ao mundo exterior, recebe fortes críticas de órgãos como o MPF (Ministério Público Federal) e o CFP (Conselho Federal de Psicologia).

Para a PFDC (Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão) do MPF-DF, a política de isolamento aplicada aos dependentes químicos por essas comunidades dificulta a reinserção social e desrespeita a lei federal que estabelece parâmetros para os atendimentos em saúde mental no país.

Por outro lado, algumas dessas comunidades terapêuticas são citadas por especialistas que as defendem como referência no tratamento a pacientes com dependência grave que não têm emprego, moradia ou suporte familiar. Elas também são consideradas uma alternativa por pacientes que não se adaptam ao modelo da Rede de Atenção Psicossocial composta por UBSs (Unidades Básicas de Saúde), CAPs, hospitais, serviço social, entre outros órgãos públicos.

Comunidades afrontam os direitos humanos, diz MPF

Em outubro passado, a Procuradoria do MPF-DF, em conjunto com o CFP e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos, realizou uma inspeção em 30 comunidades terapêuticas de 11 Estados brasileiros. Em todas elas, segundo o CFP, foram encontradas violações de direitos humanos em diferentes escalas de gravidade.

Para a titular da procuradoria, Déborah Duprat, o aumento de recursos da União a essas entidades causa espanto.

“Essas comunidades tinham que ser espaços que permitissem a reinserção do indivíduo ao meio social. O que temos visto ao longo dos anos, e agora nas comunidades inspecionadas, é a lógica do isolamento, da proibição de os internos falarem com a família. Isso está na contramão da lei da reforma psiquiátrica”, afirmou a procuradora.

“Nesse contexto, é uma temeridade, e, mais do que isso, um desvio de finalidade aumentar esse tipo de recurso, porque o Estado tem que investir em políticas públicas que de fato foram referendadas não só por lei, mas que contam com o apoio de médicos e psicólogos que estão alinhados com uma reforma que é modelo de política de saúde mental no mundo todo”, constatou Duprat.

O relatório da inspeção realizada em comunidades terapêuticas só será divulgado ano que vem. A procuradora, porém, antecipou ao UOL aspectos que chamaram a atenção dos fiscais em pontos considerados cruciais para se aferir a eficiência do tratamento realizado nessas entidades. Entre eles:

  • ausência de fichas médicas individuais;
  • inacessibilidade dos internos aos próprios documentos;
  • práticas irregulares de laborterapia (ou seja, a terapia baseada no trabalho braçal)

“Algumas não têm empregados, cozinheiras, jardineiros, equipe de limpeza, e são os internos que fazem esses trabalhos para manter a comunidade. Isso é outra coisa reveladora de que se está longe de demonstrar que haja alguma eficiência nelas”, disse a procuradora, para quem a ausência de planos individuais de atendimento “indica que todos são tratados em uma espécie de vala comum”.

A reportagem apurou que a inspeção também encontrou casos de desrespeito à orientação sexual do sujeito; uso indiscriminado de medicação sem prescrição médica como estratégia de contenção química; castigos e insalubridade; e adolescentes internados em comunidades de adultos sem nenhum comunicado à Justiça – o que afronta o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente).

“Outra coisa que nos chamou muito a atenção diz respeito às internações involuntárias. E a lei da reforma psiquiátrica proíbe qualquer internação sem que, antes, seja feito um diagnóstico médico", apontou Duprat. "Isso vira algo muito perigoso, porque se pode ter um depósito de pessoas colocadas ali sem que haja um teste a respeito da eficácia do tratamento praticado nessa entidade e mesmo sobre a causa da internação. Vimos população LGBT, por exemplo, internada involuntariamente por ser uma pessoa indesejada na própria família”.

De repente, tem-se esse retrocesso muito significativo na política de saúde mental, e, pior que isso, com gravíssimas violações de direitos humanos

Déborah Duprat, procuradora do MPF-DF

Quem fiscaliza as comunidades?

Oficialmente, a fiscalização das comunidades terapêuticas é feita pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e por representantes do poder público apontados pelo Ministério da Justiça.

Mas segundo o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, a fiscalização, especialmente pela Anvisa, não ocorre com frequência, pois depende de seções locais do órgão – que funcionam de forma heterogênea pelas diversas regiões do país.

Questionada, a sede da Anvisa em Brasília disse ao UOL que a responsabilidade pela fiscalização depende de cada ramificação estadual e municipal do órgão, motivo pelo qual a sede não possui, por exemplo, dados sobre quantas comunidades que recebem verbas públicas foram fechadas ou autuadas no último ano.

“Temos o monitoramento das denúncias que chegam à Agência, e as denúncias sobre comunidades terapêuticas são 4,71% do total recebido. As maiores queixas são sobre estrutura física e ambiência inadequadas. Falta de profissionais qualificados, maus tratos e algumas de cárcere privado. Mas é importante ressaltar que esses são dados baseados no que o cidadão comum informa à agência. A Anvisa encaminha essas denúncias para a apuração das vigilâncias locais”, informou o órgão, por nota.

Na prática, trabalhos de fiscalização são feitos por federações e confederações de comunidades terapêuticas e também por entidades como o MPF, e os conselhos regionais e federais de psicologia.

Conselheiro e coordenador do Núcleo de Saúde do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, Ed Otsuka é um crítico do modelo de comunidades terapêuticas e defende que é comum encontrar em fiscalizações diversos abusos, como as que não permitem o contato dos dependentes químicos com suas famílias.

“Há violação de correspondências e monitoramento de ligações. Assim os pacientes não conseguem denunciar eventuais abusos”, relatou.

Ele afirmou ainda que houve casos no passado em que dependentes químicos confeccionavam produtos durante a terapia de trabalho na entidade e o material era vendido sem que o serviço fosse remunerado.

Lógica não é voltada à redução de danos, diz Conselho de Psicologia

Pelo CFP, um dos representantes na inspeção de outubro com o MPF e a SDH foi o psicólogo Paulo Aguiar, conselheiro na entidade que atuou na fiscalização de comunidades em Pernambuco. De acordo com ele, “em todas elas foram constatadas uma série de violações de direitos humanos”. “Fizemos uma inspeção semelhante em 2011. Passados seis anos, constatamos que não mudou absolutamente nada”, declarou.

O conselho emitiu uma nota pública contrária às alterações na política de saúde mental propostas pelo Ministério da Saúde. Assim como o MPF, a entidade insiste que a lógica seguida pelas comunidades terapêuticas, sobretudo pelo isolamento e pelo viés religioso, não traz resultados comprovados na recuperação dos internos.

“Entendemos que o tratamento passa pelo sujeito, que pode se beneficiar do que é oferecido nessas comunidades. Mas a lógica que se trabalha nelas é totalmente voltada à abstinência como única saída, e não à redução de danos. Não acreditamos que esse tipo de cuidado tenha efeito efetivo, porque se trata apenas de tirar a pessoa de sua realidade convicto de que, trancado, ela não vai usar drogas.”

No entendimento de organismos técnicos como o CFP, define Aguiar, é preciso mudar a relação do usuário com a droga –daí a importância, constata, de equipamentos da RAPS estarem inseridos em realidades de consumo do produto, como as cracolândias. Em São Paulo, por exemplo, unidades do programa Recomeço, do governo do Estado, e do Redenção, da Prefeitura, estão a poucos metros do fluxo de usuários, na região da Luz (centro da cidade).

Indagado sobre um fato que o tenha marcado na inspeção, Aguiar respondeu: “Estávamos em uma comunidade que tem como base a religião e que ia totalmente na contramão do que ela prega, que, basicamente, era o amor ao próximo. Alguns internos nos pediram ajuda. Quando nos viram, disseram: ‘Foi Deus quem mandou vocês aqui, a gente está sofrendo demais’. Isso nos parece não só uma grande incoerência, como uma grande hipocrisia”, afirmou.

O que são comunidades terapêuticas?

As comunidades terapêuticas são residências coletivas temporárias onde usuários de drogas permanecem entre quatro e seis meses isolados de relações sociais pré-existentes (exceto em relação à família) e em abstinência do uso de entorpecentes.

Em geral, combinam o exercício “terapêutico” do trabalho (atividades de manutenção da própria comunidade) com sessões com psicólogos e médicos, além de práticas espirituais ligadas ou não a uma religião específica.

As primeiras experiências com modelos sociais de recuperação começaram na Europa na década de 1950 e nos Estados Unidos nos anos 60. No Brasil, surgiram na década de 90, inspiradas nas experiências estrangeiras. Em 2011, começaram a receber mais recursos federais – na época da chamada “epidemia do crack”.

Segundo o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), o modelo ideal não deve aceitar internações forçadas. “A comunidade terapêutica é um lugar aberto e a adesão é voluntária. A família deve vir visitar toda semana, para que seja retomado o contato familiar”, argumentou. 

De acordo com o presidente da Febract (Federação brasileira de Comunidades Terapêuticas) e da comunidade Instituto Padre Haroldo, de Campinas (SP), Luis Roberto Sdoia, o índice de recuperação dos dependentes químicos é em média de 30% - podendo chegar a 40% nas comunidades mais bem-estruturadas.

“A recuperação parte do reconhecimento da pessoa de que está doente e do desejo de sair dessa situação”, analisou.

Entretanto, os dois especialistas ponderam que esse seria um modelo ideal de comunidade, mas não é necessariamente a realidade encontrada pelo país.

A propaganda das comunidades terapêuticas é a de que elas trazem uma solução simplificada, e isso, é sabido, não funciona

Paulo Aguiar, membro do Conselho Federal de Psicologia

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Espiritualidade ou religião?

Segundo levantamento feito pelo Ministério da Saúde no primeiro semestre de 2017, todas as cerca de 2.000 comunidades terapêuticas adotam práticas espirituais, mesmo que não sejam ligadas a uma religião específica.

Mas a maioria delas, 40%, possui orientação religiosa pentecostal. Em segundo lugar vêm as comunidades católicas (27%). As entidades que se declaram sem orientação religiosa específica representam 18% das unidades. As restantes têm outras orientações.

A maioria das entidades adota práticas espirituais em sua rotina diária e incentiva a participação dos dependentes químicos.

Para o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, a espiritualidade pode ser um componente eficaz do tratamento, mas não pode ser o objetivo da entidade. Ou seja, não pode haver uma tentativa de conversão religiosa.

O psiólogo Ed Otsuka, entretanto, afirmou que já foram constatados no passado casos em que moradores de comunidades terapêuticas sofreram punições, como executar serviços de limpeza ou ser privado de atividades de lazer, por não frequentarem os cultos religiosos.

Roniel Felipe/UOL Roniel Felipe/UOL

"Tenho medo de uma recaída, mas me sinto uma vitoriosa"

Ana Paula da Lus começou a usar crack aos 22 anos. “Experimentei com um grupo de amigos em uma balada. No começo eu só fumava nos fins de semana. Mas comecei a faltar no emprego, em uma metalúrgica. Primeiro um dia, depois quase um mês inteiro seguido”.

Ela foi demitida e, na mesma época, terminou com o namorado. “Terminamos e eu não tentei voltar. Eu já estava namorando com a droga”.

“Meus pais perceberam que eu saía de casa e demorava para voltar, então eu contei que estava usando crack e que queria ajuda. Mas era mentira, eu não queria parar de fumar”.

Ela disse que ficou sem usar drogas por cerca de um ano e meio, mas teve uma recaída ao começar um novo namoro. Foi internada em uma clínica na cidade onde morava, no interior de São Paulo, mas fugiu e foi parar na cracolândia, na capital paulista.

“Eu me lembro que a minha família foi me buscar lá cinco vezes, mas depois de três dias eu voltava. Eu cheguei a pesar só 38 quilos”, disse.

No Réveillon de 2016, Ana Paula disse ter sido agredida e decidiu deixar a cracolândia. Ela ficou internada voluntariamente entre fevereiro e agosto daquele ano no Instituto Padre Haroldo, em Campinas, uma comunidade terapêutica.

“Foi difícil, no começo, dividir um quarto com pessoas que eu nunca vi. Dizer 'não' para o mundo lá fora é difícil. Contar a sua vida (em terapia de grupo) para alguém que você nunca viu era difícil”, disse.

“Mas o contato com as outras pessoas é benéfico. Você troca muita informação e quando uma não está bem a outra dá suporte”, contou ela. “Também não era fácil acordar às 5h30. Eu era preguiçosa, mas hoje vejo que ter uma rotina foi muito bom para mim”.

Ana Paula disse que a prática espiritual ajudou muito em sua recuperação. Ela vem de uma família católica, mas tinha se afastado da religião. “No começo foi difícil, eu sentia culpa pelas coisas erradas que fiz”.

Apoiada na fé, nas colegas e na equipe de profissionais da instituição ela se estabilizou, deixou a comunidade terapêutica e foi morar com uma amiga em uma casa alugada em Campinas.

Hoje ela tem 30 anos e foi contratada pela mesma comunidade terapêutica para atuar como educadora social. Ana Paula diz querer tentar ajudar outras dependentes químicas.

“Tenho medo de uma recaída, mas me sinto uma vitoriosa. Fui escolhida por Deus, tenho certeza”.

Rivaldo Gomes/Folhapress Rivaldo Gomes/Folhapress

As redes de atenção psicossocial (RAPS)

Um modelo diferente das comunidades terapêuticas para tratar dependentes químicos é chamado de Rede Atenção Psicossocial. Ele é oferecido no serviço público de saúde do Brasil

Ao contrário das comunidades terapêuticas que pregam a abstinência total, a rede não visa que a pessoa pare abruptamente de usar drogas.

A ideia é que ela passe por tratamento e consiga viver, trabalhar e fazer um projeto de vida, diz o psicólogo Moacyr Miniussi Bertolino Neto, membro da Frente Estadual Antimanicomial de São Paulo.

“O consumo da droga não é um problema se isso não atrapalhar a vida da pessoa”, explicou.

O atendimento dessa rede é oferecido em UBSs, CAPs, UPAs (Unidades de Pronto Atendimento), hospitais gerais, unidades de acolhimento transitório, e com apoio da rede de Assistência Social. O paciente só fica internado em casos mais agudos, e por tempo mais restrito.

A ideia é que quando o usuário de drogas entrar na rede de atendimento, ele receba atendimento de uma equipe multidisciplinar. “É feito um projeto terapêutico singular. A equipe discute um projeto de tratamento com o qual a pessoa concorde”, complementou Bertolino.

O psicólogo disse que é difícil mensurar a eficácia da rede, mas citou como exemplo uma pesquisa acadêmica que realizou no município de Mauá, na Grande São Paulo.

Segundo ele, a implantação da rede reduziu o número de internações de dependentes químicos em hospitais gerais e psiquiátricos de cerca de 950 casos em 2013 para aproximadamente 500 em 2016. Nacionalmente, analisou, o sistema de redes de atenção psicossocial é eficiente, mas sua vulnerabilidade é a falta de investimentos. “Falta financiamento pelos governos estaduais”, apontou.

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