De olho no prato

Epidemia de obesidade cresce, mas ações para controle de açúcar e propaganda empacam no Brasil

Marcelle Souza Colaboração para o UOL, em São Paulo
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Na mesa do almoço, tem carne, arroz e feijão, mas a salada não é muito frequente na casa de Ana*, 15. "Meu marido é aposentado e é difícil sobrar dinheiro para ir à feira", diz a mãe Leda, 47, dona de casa. 

Há um ano, Ana, moradora da zona leste de São Paulo, mudou alguns hábitos alimentares e começou a perder peso: dos três ou quatro pães do café da manhã passou a comer apenas um. Na balança, essas e outras mudanças fizeram ela perder quase 40 kg dos 150 kg que tinha há um ano.

O alerta veio com o encaminhamento da escola para o conselho tutelar e, em seguida, uma determinação da Justiça para tratamento a pacientes obesos do Hospital das Clínicas da USP. Assim que chegou, Ana foi diagnosticada com diabetes, mal de que sofre seu pai e sua mãe. "Eu fiquei 12 dias internada, foi bem ruim", lembra a adolescente. 

Em casa, a alimentação da família pouco mudou desde o diagnóstico. Foi Ana que mudou seu comportamento. "Não sou muito de comer besteira, tomar refrigerante, o meu problema era mesmo o pão. Eu comia de manhã, de tarde e de noite. Agora não como mais. Se tem fritura no almoço, não como mais."

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Epidemia de peso

Frutas, verduras e hortaliças não fazem parte do cardápio diário da família. Exercícios também não estão na rotina da adolescente. "A médica disse que eu precisava caminhar, mas eu não gosto muito. Eu prefiro ficar em casa assistindo TV, quando tenho crédito, eu fico na internet no celular."

Ana ilustra a epidemia de obesidade que o Brasil vê avançar nos últimos anos. Segundo a pesquisa Vigitel de 2016, divulgada pelo Ministério da Saúde, 53,8% dos entrevistados tinham excesso de peso e 18,9% eram obesos. Isso significa que em dez anos a obesidade aumentou 60% no país.

O problema é que os números crescentes não têm sido acompanhados por políticas efetivas de combate e prevenção a esse problema.

Enquanto o Ministério da Saúde diz que há distribuição de guias alimentares nas escolas, capacitação nas unidades básicas de saúde e acordos com a indústria para redução de sódio, médicos e movimentos sociais afirmam que as principais ações, como mudanças nos rótulos, regulação de propaganda infantil e aumento de impostos, não saíram do papel.

"Até a década de 1970, a gente tinha preocupação com a desnutrição. A partir de 1980, o cenário começa a ficar diferente. A população passou a ter mais acesso aos alimentos industrializados, que são mais fáceis de preparar e mais baratos", diz Maria Edna de Melo, endocrinologista e presidente da Abeso (Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica).

Ao mesmo tempo, novas comodidades passaram a fazer parte da vida de muitas famílias brasileiras: já não precisamos levantar para mudar o canal da TV, é possível pagar contas, pedir comida e falar com os amigos sentados na poltrona do sofá. No caso de Ana, há ainda o desinteresse pelas atividades físicas aliado à falta de equipamentos esportivos e de lazer nas periferias de São Paulo.

"São poucos os municípios brasileiros que têm uma política voltada para essa questão, que têm equipamentos sociais que acolhem as crianças para brincar no fim de semana", comenta Maria Ângela M. Antonio, médica especialista em obesidade infantil da Unicamp.

Esses pacotes de praticidade, no entanto, carregam mais do que sabor, e o excesso de sódio, açúcar, carboidratos e gorduras trans são um verdadeiro desafio para países que vivem índices alarmantes de obesidade.

As famílias se acostumaram a comprar bolachas recheadas, papinha industrializada para as crianças. Um processo de retomada de hábitos alimentares saudáveis requer uma política forte e bem articulada entre várias áreas, não só saúde."

Maria Ângela M. Antonio, especialista em obesidade infantil da Unicamp

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Propaganda ou rótulo

Entre as iniciativas de prevenção e combate à obesidade que se arrastam nos últimos anos está a mudança nos rótulos dos alimentos industrializados. O principal argumento dos defensores da atualização é que as embalagens hoje não são simples nem claras o suficiente sobre a composição nutricional e, portanto, não ajudam os consumidores a escolher alimentos mais saudáveis.

"Os riscos do consumo desses alimentos ficam escondidos, não aparecem. A gente não sabe mais o que está comendo e isso está levando as pessoas a ficarem cada vez mais doentes. Os índices de hipertensão e diabetes estão aumentando", afirma Ana Paula Bortoletto Martins, pesquisadora em alimentos do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor).

 

Um grupo de trabalho para discutir o assunto foi instituído pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) em julho de 2014, quase um ano após o Consea recomendar tais alterações.

Atualmente, o grupo já apresentou propostas à Anvisa para facilitar a escolha, pelos consumidores, de produtos mais saudáveis. A ideia é colocar alertas padronizados quando o produto tiver alta concentração de açúcar, sódio e gordura trans. 

Apesar da pressão das associações de classe e de grupos que defendem a mudança, a Anvisa ainda não tem data para o próximo passo: a abertura de uma consulta pública sobre o tema.

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Açúcar líquido

Um dos pontos da discussão sobre políticas de combate à obesidade é a proposta de aumentar os impostos de bebidas açucaradas, como refrigerantes e sucos de caixinha. Em setembro, o ministro Ricardo Barros disse que levaria o tema "para uma reunião com integrantes da equipe econômica e Casa Civil". Até agora, no entanto, nada saiu do papel.

A medida foi recomendada no ano passado pela Organização Mundial da Saúde como uma importante estratégia para se reduzir e prevenir a obesidade, além de diminuir a ocorrência de cáries e diabetes tipo 2 da população. A OMS defende o aumento de pelo menos 20% no preço das bebidas açucaradas. O Ministério da Saúde, por sua vez, não disse qual sua sugestão de sobretaxação. 

Isso está sendo debatido junto ao governo, porque é preciso corrigir as distorções de impostos e estimular o consumo de alimentos mais saudáveis

Michele Lessa, Coordenadora de Alimentação e Nutrição do Ministério da Saúde

Em audiência pública realizada na Câmara Federal em outubro, o diretor-presidente da Abir (Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e de Bebidas Não Alcóolicas), Alexandre Jobim, disse que o aumento de peso da população brasileira não é culpa dos refrigerantes e que a carga tributária do setor já é alta, "40% do preço final do produto", segundo ele. 

Para a presidente da Abeso, a medida não pode ser considerada uma solução mágica. "Não adianta só taxar as bebidas açucaradas e não reverter esse dinheiro para incentivar o consumo de frutas e verduras, por exemplo."

Zanone Fraissat/Folhapress Zanone Fraissat/Folhapress

Dieta em família

Na casa de Kenia Borges, 44, não entram salgadinhos ou guloseimas. Isso porque a o peso é uma preocupação desde que as duas filhas, de 14 e 9 anos, eram bebês. 

"As duas já receberam o diagnóstico de obesidade, o que é muito sofrido para a criança e para a gente. Elas não aceitam, não entendem."

No ano passado, após o falecimento do pai, Izabelle exagerou nos doces e atingiu níveis preocupantes de açúcar no sangue e seus 60 kg, aos 9 anos. O tratamento com um endocrinologista veio a tempo e ela conseguiu evitar o diabetes.

Laura, a mais velha, evita sair com a mãe, que desde pequena controla o que ela come. Hoje a adolescente tem 93 kg.

Kenia afirma que, na hora das compras, prefere os produtos integrais, com menos sal e menos açúcar, mas eles também precisam caber no orçamento. "Tento fazer escolhas saudáveis, mas elas costumam ser caras, nem tudo a gente consegue comprar."

Há ainda outros dois vilões na casa da assistente social: as refeições fora da casa e as propagadas dos alimentos industrializados.

Não adianta a gente falar, se elas veem as amigas comendo besteira na escola, se na televisão mostra todo mundo rindo e tomando refrigerante, falando que é uma delícia --e realmente é gostoso, mas tudo aquilo engorda, faz mal"

Kenia Borges, assistente social

As crianças e adolescente são os principais focos das ações de prevenção à obesidade no Brasil e no mundo. "Educar as crianças é essencial, porque elas conseguem influenciar os pais", diz a professora e endocrinologista da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), Maria Teresa Zanella. 

Na contramão disso estão as propagandas de industrializados direcionadas ao público infantil. Em muitos casos, brinquedos com temas de desenhos animados são oferecidos como brinde na compra de bolos, bolachas e refrigerantes.

Em 2016, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) condenou a Bauducco pela campanha "É Hora de Shrek", que condicionava a aquisição de relógios do personagem à apresentação de cinco embalagens de bolachas recheadas mais o pagamento de R$ 5.

Os ministros entenderam que a publicidade em torno do produto era abusiva e tirava a autoridade dos pais.

"Temos publicidade abusiva duas vezes: por ser dirigida à criança e de produtos alimentícios. Não se trata de paternalismo sufocante nem moralismo demais, é o contrário: significa reconhecer que a autoridade para decidir sobre a dieta dos filhos é dos pais", afirmou à época do julgamento o ministro Herman Benjamin. 

Para organizações da sociedade civil, no entanto, a decisão do tribunal e as normas existentes não têm sido suficientes para barrar a propaganda abusiva.

Ao menos 12 projetos de lei tramitam na Câmara dos Deputados e no Senado para tentar regulamentar o tema. Um deles é o PL 5.921/2001, proposto por Luiz Carlos Hauly (PSDB/PR), que está parado, apesar de desde maio do ano passado estar pronto para ser apreciado pelo plenário da Casa.

Em 2013, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), vetou um projeto que restringia, em âmbito estadual, a publicidade dirigida a crianças de alimentos com alto teor de açúcar, gorduras saturadas ou sódio.

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Toneladas de sódio

Enquanto estão paradas as principais ações defendidas por organizações da sociedade civil, o Ministério da Saúde defende que tem feito outras ações para a redução da obesidade. Dentre as principais medidas do governo nos últimos anos estão os acordos com indústrias de produtos para a redução de sódio na composição de alguns tipos de alimentos.

"No primeiro acordo, a gente conseguiu alcançar uma redução, entre 2012 e 2016, de 17 mil toneladas de sódio. Foi uma ação muito bem-sucedida, haverá um novo acordo, com metas mais duras, para continuar reduzindo o sódio em produtos como pães de forma e bisnaguinhas", diz a representante do Ministério da Saúde.

Além do acordo com 11 empresas em vigor, que trata do sódio, está em elaboração um plano nos mesmos moldes para diminuir o açúcar dos alimentos. Segundo o ministério, ainda não há prazo para que ele seja assinado.

A eficiência da medida é questionada por especialistas na área. "Acordos voluntários não são eficazes na nossa opinião. A maioria dos alimentos que a gente analisou já cumpria as metas, que eram fracas, muito antes do prazo final. Se você divide essas toneladas pela população brasileira, é um valor ínfimo", diz a representante do Idec.

Além das ações citadas, o Ministério da Saúde diz que há uma câmara interministerial que acompanha o cumprimento do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, com metas até 2019. "Essas ações têm vinculação orçamentária e agenda de implementação", diz a representante do governo. O plano prevê, por exemplo, a implementação de equipamentos públicos para garantir melhor disponibilidade de alimentos in natura.

"A epidemia da obesidade é mundial e demanda várias ações, não só do Ministério da Saúde. Nós, enquanto Governo Federal, tentamos trabalhar em todas as áreas, com diversas medidas para tentar frear ou deter o crescimento da obesidade no Brasil", diz Lessa.

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