Eu [também] não sabia

Ao UOL, Fernando Henrique Cardoso reconhece que seu governo não escapou da corrupção

Guilherme Azevedo Do UOL, em São Paulo

De camisa clara a essa hora do dia diligentemente amarfanhada (são pouco mais de 17h30 desta quinta-feira, 1º de março), sem gravata, sem o paletó escuro --que vestirá logo depois apenas durante a entrevista--, de jeans escuros e meias roxas, Fernando Henrique Cardoso, 86, chega para o encontro com o UOL.

O local é o sexto andar de um edifício antigo situado junto do Vale do Anhangabaú, centro histórico de São Paulo, onde mantém a fundação que leva o seu nome. Um imponente "O Pensador", a figura masculina negra de madeira, acocorada, com os cotovelos apoiados sobre os joelhos e as mãos envolvendo a cabeça, símbolo de Angola, recebe os convidados na entrada.

Pouco mais de 1,70 m, magro, os cabelos ainda fartos e grisalhos, levemente roxos, o dente incisivo superior direito parcialmente encobrindo o incisivo lateral, o ex-presidente da República responde andando à saudação sobre a boa forma: "Tem muita gente que não está [bem no Brasil]".

Senta-se à poltrona de madeira clara sempre reservada para ele, no meio da sala ampla e retangular, ponteada aqui e ali por telas e esculturas de arte contemporânea. Atrás, a escrivaninha e o aparador com suas obras completas encadernadas em preto e dourado.

Uma fileira de livros com alguns metros de comprimento, entre eles, "A Arte da Política" e "Dependência e Desenvolvimento na América Latina", estudo clássico, em parceria com o chileno Enzo Faletto, que o projetou internacionalmente como sociólogo, no fim dos anos 1960.

Por cerca de uma hora e meia, o "presidente do Plano Real", como ganhou fama e projeção embora o governo da época fosse de Itamar Franco, revê a própria história, o seu lugar nela, o seu modo de governar.

Reconhece que a corrupção de agora "chamuscou" o seu partido, o PSDB, e que houve corrupção também no seu governo (1995-2002). Porém, supostamente diferente do seu sucessor, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), dela não teria se beneficiado.

"Eu é que não participei. Eu que não sabia."

"Eu não sabia"

Ao apontar corrupção no governo Lula, FHC assume que também ocorreu no seu: "Eu é que não participei"

"Pela primeira vez se tem gente poderosa na cadeia"

Embora a tradição seja não democrática, haveria avanços por igualdade

"Temos um sentimento de que a lei não vale para todos. A Constituição diz: 'Todos são iguais perante a lei'. Mas nunca na prática foi assim", aponta Fernando Henrique, para identificar um avanço, trazido pela Operação Lava Jato.

"Pela primeira vez você tem gente poderosa, tanto rica quanto de poder político, na cadeia. É uma novidade. Eu fico pessoalmente feliz? Pessoalmente, não, mas intelectualmente, sim, politicamente, sim. Pela primeira vez o princípio que está na Constituição começa a existir."

Para o ex-presidente, entretanto, apesar de os brasileiros, como povo, possuírem traços democráticos, como a inclinação à tolerância, a cultura em geral ainda não é. Pesam origens hierárquicas e corporativas, entre outras, que atrapalham a democracia.

No alvo de FHC, as elites brasileiras: "É preciso que se eduquem para a democracia, porque elas não são [educadas]. E as novas elites tampouco, que aí é pelo dinheiro, ostensivamente". O ex-presidente, contudo, se mostra esperançoso, por notar "um sentimento mais enraizado de mais igualdade".

"Lula, você falou muito mal de mim"

Ex-presidente relembra jantar, imitando voz do petista

"Corrupção também chamuscou o PSDB"

Sensação é de que participou de algo podre, diz FHC

Ser presidente é...

Saber ouvir e ter o couro duro

FHC - Eu tenho desaconselhado vivamente quem quiser ser presidente da República. É muito chato, muito difícil, muito duro. Chato eu não diria, porque eu gostava, mas é preciso saber, não é para novato.

UOL - Qual é o gosto, o sabor da Presidência?

FHC - [É bom] Porque você faz coisas. E ninguém pode ser político se não gostar de conversar. Se não tiver capacidade não só de falar, mas [também] de ouvir. E metade dos problemas você resolve ouvindo. O outro já sai feliz que você o ouviu e sai achando que você está de acordo, mesmo que você não esteja. Você tem que dar a escuta, ouvir o outro. Enfim, isso precisa de um certo treino.

E também tem que ter o couro duro, porque lá na vida pública é uma arena. Você vai receber pedrada. E se você ficar machucado na primeira pedrada e ficar com medo, está perdido. Vai receber pedrada a vida inteira. É um ofício duro.

Qual foi meu defeito como presidente? Teve vários, mas um é que deveria ter falado mais, me comunicado mais diretamente. Uma das coisas da democracia [é que] o líder tem que estar falando o tempo todo com o liderado. E é muito difícil, uma vez que você é o presidente, tem uma burocracia ao seu redor. Tem limitações ao seu redor. Você tem que quebrar essas limitações.

"Militares foram endoutrinados democraticamente"

Filho de general, tucano descarta risco de ruptura e elogia Forças Armadas

"Temer fez mais mudanças do que eu podia imaginar"

Para ex-presidente, problema do governo é falta de "conexão com a sociedade"

"Não acredito que Temer seja candidato"

Para tucano, emedebista é político realista e não tentará reeleição

A realidade, na opinião de FHC, vai se impor. "Temer é tão realista quanto eu." Assim, com baixíssima popularidade e já denunciado duas vezes por corrupção, o presidente não tentará a reeleição, na visão do tucano.

É eleitoreira a intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro? Para FHC, não. "Temer fez uma coisa que é difícil, que é trabalhar pensando na história: que que eu tenho de fazer? Fez porque tem um problema no Rio de Janeiro, se foi certo ou foi errado é outra coisa."

O ex-presidente diz ser impossível julgar intenções alheias. "Porque intenção você não sabe qual é. Às vezes você mesmo não sabe, quanto mais o outro. Julgue fatos, fez isso e isso."

FHC minimiza também possível contrariedade de Temer com o PSDB, especialmente o de São Paulo, liderado pelo governador e pré-candidato a presidente, Geraldo Alckmin, que votou em peso pela continuidade das investigações sobre o emedebista.

"Um político realista não funciona por causa de ressentimento. Vai ver quais são as possibilidades, as conveniências, os interesses, os valores", opina, assentando caminho para um acordo e apoio de Temer ao candidato tucano.

Procura-se um líder político

Fernando Henrique recusa gestor privado e diz que Brasil precisa de político capaz de liderar e convencer

Conhecer a máquina pública
"Para governar o Brasil, se você não sabe lidar com o Congresso, é muito difícil. O povo não gosta da ligação do Executivo com o Legislativo, porque implica um dá cá, toma lá, mas é da democracia. E se você não for capaz de ter algum relacionamento positivo com o Congresso, você não governa. Se você não for capaz de ter algum conhecimento da máquina pública, também não governa. Porque a máquina pública existe e a pessoa que é de fora do sistema não sabe nada, não sabe nem o que são as Forças Armadas, o que é o Itamaraty, o Banco Central, a Previdência. Essas coisas pesam, existem, tem uma subcultura cada um desses grupos. Para você governar, você precisa deles."

Não ordene, convença
"Não adianta você dar ordem, não é a gestão privada. Quando disse que nós precisamos de melhorar o desempenho, mas o desempenho não é igual à gestão privada. 'Ah, precisa de um gestor...' Gestor público. O gestor público sabe que ele tem de convencer. O que quer dizer convencer etimologicamente? Vencer junto. Então, o político precisa falar, porque as pessoas têm que sentir que eles estão juntos, com você, mesmo simbolicamente."

Sentido como líder = voto
"Povo não quer eleger um gestor, povo quer eleger um líder. Alguém que ele sinta que vai abrir um caminho, esse caminho vai me dar uma vida mais concreta, melhor, mais emprego, mas a educação também vai melhorar, a saúde, ele não vai roubar e eu vou me sentir mais seguro. Quando você tem capacidade de ser sentido como líder, é que você recebe o voto. E recebe também a afetividade. Leva tempo para o líder deixar de ser reconhecido."

Transmitir com verdade
"Nós, no Brasil, precisamos muito, nesse momento, de quem nos conduza. Não é só tecnicamente saber fazer, é mais do que isso: é inspirar, entusiasmar, reencantar a política, dar um sentido à vida pública. Isso depende muito da capacidade que você tenha de transmitir ao outro. Pode ser falso, pode ser verdadeiro. Acho que é melhor que seja verdadeiro, até porque convence mais facilmente."

Expressar o algo além
"Eu sei que um é branco, o outro é negro, um é gay, outro é não sei o quê; um é rico, outro é pobre; tem classe social, tem tudo. Mas tem algo mais, algo além disso, e o líder tem que expressar esse algo além disso. Se nós, como conjunto, como coletivo, Brasil, perdermos a marcha da história, todos vamos perder. O pobre perde mais, mas o rico também perde."

Do pequeno para o grande

Ex-presidente defende mudanças no sistema a partir do voto distrital nos municípios

Como iniciar mudanças efetivas de modo a tornar mais equilibrado e justo o sistema eleitoral brasileiro? Para o presidente-sociólogo, começando pela instituição do voto distrital nos municípios.

"Com a minha experiência de tentar mudar coisas, cheguei à conclusão de que só muda aos poucos e nos pontos-chave. Tem que mudar ponto que no tempo provoque outras mudanças", contextualiza Fernando Henrique.

"No caso desse problema da relação do eleitor com o candidato, precisa começar pelo município, porque é mais natural que, na eleição do vereador, você sinta que o seu bairro não tem ninguém lá dentro [da Câmara], você nunca viu a pessoa. Se você distritalizar São Paulo, [por exemplo], os candidatos vão ter de falar com o eleitor. Para quebrar um pouco essas hierarquias."

Para o ex-presidente, o processo de transformação a partir da base pode ensinar como o sistema funciona e reconstruir a vida política como um todo, depois. "É sonho? É. Utopia? Mas sem utopia não se faz nada vida. Nem política. Você tem que ter uma proposta."

FHC também aponta o número excessivo de partidos existentes como outro ponto-chave a ser enfrentado na reforma do sistema político brasileiro. "Não tem no mundo um país que tenha 28 partidos no Congresso, porque não existem 28 posições ideológicas no espectro, é impossível. O que eles são? Agregados de interesses."

"Povo acha que é cama e deita no buraco"

Para FHC, apoio a Jair Bolsonaro mostra "sociedade inquieta"

Fim da polarização entre PT e PSDB?

Tucano nota emergência de um terceiro elemento: o autoritarismo

Luiz Inácio Lula da Silva, o adversário histórico, disse acreditar que não há viabilidade eleitoral no pleito presidencial de outubro sem o apoio ou a liderança do PT, de um lado, e do PSDB, de outro. Contudo, o patrono tucano relativiza a afirmação do líder petista com a percepção da emergência de outras forças no jogo, sobretudo a de corrente autoritária.

"Eu não minimizaria que tanto um [PSDB] quanto o outro [PT] vão ter voto. Foram polares esse tempo todo. Por circunstância, porque a diferença [entre eles] é mais do podendo [possibilidade], do que do pensamento prático. Talvez agora as coisas sejam um pouco mais complicadas."

"Pela primeira vez, nós temos um sentimento mais autoritário, mais reacionário, que não é nem PT nem PSDB, aí presente. Pode ser que isso aí tenha ganhado algum corpo. Por outro lado, você tem pessoas que abraçaram causas, como a Marina [Marina Silva, pré-candidata a presidente pela Rede], com a coisa ecológica, e deixou uma marca também."

"O MDB sempre foi o grande partido do Estado. Sabe administrar as máquinas, prefeitura e tal. Vai diminuir? É possível. É garantido? Em política nada é garantido. Essa afirmação do Lula, que é até para mim boa, porque PT e PSDB, eu não sei se é verdade."

"Agora, o que vai acontecer no futuro? Precisa ir para a igreja auscultar Deus."

"A história muda de opinião"

Ex-presidente pondera caráter transitório e diz que fez o que acreditou

"Ainda ontem alguém me perguntava: como você se via na história? Eu, na história? Eu não vejo nada. A história muda de opinião. Uma pessoa que numa fase é herói, na outra é vilão. A própria história muda. A Revolução Francesa era sagrada. Numa certa altura, começaram a atacar a Revolução Francesa. A Revolução Bolchevique, meu Deus!, era a redenção da humanidade. Agora... A história vai reavaliando.

O importante é: fez alguma coisa? Fez, está bem, está feito. Porque isso vai ser julgado de maneira diversa por cada um, de um jeito, vai variar. Você é que tem que estar convicto que fez aquilo que achou que era certo. Não é desprezo pela opinião do outro, é saber que os outros vão ter muitas opiniões diferentes da sua e essas opiniões vão variar na história.

E você quer dormir, e você só dorme se achar que aquilo que você fez não fez por motivos menores, fez porque você acreditava. É isso."

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